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O Dogma da Virgindade Perpétua de Maria
1. Introdução
Todos nós estamos habituados a falar da mãe de Jesus como “a Virgem Maria”. Ela é invocada com esse nome em ambientes cristão-católicos e, aqui no Brasil (e não só aqui), por boa parte da população, ainda que inconscientemente. Alguns estudos da língua portuguesa mostram a influência da invocação à “Virgem Maria” em expressões populares da linguagem, por exemplo, no popular “Vixi Maria!” ou, simplesmente "Vix!"1. Contudo, falar da virgindade perpétua de Maria aos ouvidos modernos não é tarefa simples.
O teólogo Carlos Ignacio González nos lembra que “o fato de Maria ter concebido virginalmente em seu seio o Filho de Deus e ter permanecido virgem até o fim de sua vida, em total entrega ao serviço da obra messiânica de seu Filho, é uma verdade que pertence à integridade da confissão de nossa fé cristã”2. E por “integridade” considera: 1) que essa verdade não é fundamental, mas está a serviço de outra mais alta: a Encarnação do Filho de Deus; 2) que essa verdade não pode ser prescindida da confissão de fé sem o risco de não sermos fiéis à totalidade do Mistério salvífico de Deus para com a humanidade.
Contudo, se já é difícil para a nossa cultura confessar integralmente o conteúdo da fé cristã, quanto mais difícil será a aceitação desse dogma mariano em particular. Vejamos algumas razões para as dificuldades em explicar a virgindade de Maria:
a) A supervalorização das ciências impede pensar qualquer intervenção gratuita e livre de Deus na História factual. Essa dificuldade, evidentemente, não é estritamente mariológica, mas afeta todo o campo da disciplina História da Salvação. Com o avanço das pesquisas científicas, o ser humano, inconscientemente, acabou por assumir a pretensão de ter alcançado as chaves de explicação de todos os mistérios do universo de modo puramente "racional", não sobrando espaço, nesta equação, para o encantamento e a reverência para com o Sagrado.
b) Com a afirmação deste dogma, a Igreja é acusada de menosprezo a dignidade do matrimônio.
c) Além do matrimônio, outros, que consideram a sexualidade como uma dimensão superimportante da existência humana, imaginam que “a Igreja tivesse criado o dogma para manter a repressão sexual” 3.
d) Há ainda a desvalorização da castidade (e consequentemente do valor intrínseco da virgindade) numa cultura que considera o sexo como um valor indiscutível, quase absoluto, e dos principais produtos de mercado.
e) O movimento influenciado pela teologia liberal do século passado também contribuiu para essa desconfiança, uma vez que procurou reduzir a mensagem bíblica aos mitos e expressões literárias de povos antigos, como as dos gregos, dos egípcios e das religiões médio-orientais. Para esse movimento, “a verdade” estaria sobretudo (ou exclusivamente) na mensagem que os escritores bíblicos tentaram transmitir, e não nos fatos narrados em si.
f) Existem ainda aqueles que viram na concepção virginal de Jesus a “expressão simbólica de uma verdade transcendente”4. A historicidade da afirmação de fé não é negada, mas considerada secundária. Aqui inclui-se o questionamento que procuramos responder em nosso artigo anterior (leia aqui): "Por que a virgindade de Maria é considerada tão importante, se este 'detalhe' não afeta em nada a Missão de Cristo e o pleno cumprimento do Plano de Salvação de Deus, pelo mesmo Cristo?".
Diante desse quadro de desconfiança, que vai desde a cultura moderna, que valoriza o sexo como um valioso produto de mercado, passando pela crítica científica e chegando inclusive a alguns ambientes da teologia e da pastoral, não é sem importância perguntar: o dogma da virgindade de Maria tem alguma coisa a dizer aos homens e mulheres de hoje? Se conseguirmos apontar alguns caminhos para responder afirmativamente a essa questão, então teremos alcançado o objetivo deste trabalho.
2. A virgindade de Maria na Escritura
A conceição virginal de Jesus não é um fato tranquilamente aceito por todos os biblistas. “Os textos do NT que falam diretamente de Maria são escassos e controvertidos do ponto de vista exegético”5. O texto de Paulo que se refere ao nascimento de Jesus ('nascido de mulher', cf. Gl 4,4) não contêm uma referência explicita ao tema da virgindade. Marcos refere-se a Jesus como “o filho de Maria” (Mc 6,3). O Evangelho segundo João traz (1,13) uma expressão complicada: “Eles, que não foram gerados nem do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. A leitura no singular nos leva a pensar em Jesus, nascido segundo Deus. Contudo, a Bíblia de Jerusalém, entre outras fontes, confirma em nota que “A leitura no plural é atestada pela maioria dos manuscritos gregos”6.
As afirmações diretas sobre a virgindade de Maria cabem a Mateus e Lucas. Mateus (1,18) diz que Maria, antes de coabitar com José, “achou-se grávida pelo Espírito Santo”. No versículo 25 afirma ainda que José “não a conheceu até que ela deu à Luz um filho”7. Também em Lucas a concepção virginal é envolta no Mistério do Espírito Santo. À Maria, que não conhece homem algum (cf 1,34) é anunciado: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus” (1,35).
O que podemos afirmar dessas narrações evangélicas? Segundo A. Murad, “embora contenham muitos elementos simbólicos, os Evangelhos da infância de Jesus (cf. Mt 1-2 e Lc 1-2) não são lendas ou mitos, mas uma reflexão que parte de acontecimentos verdadeiros. A concepção virginal não seria uma invenção piedosa, mas algo real em que a comunidade cristã acreditava”, e em que ainda crê8.
Tanto Mateus como Lucas partem da fé da Igreja primitiva. Sua intenção com relação às narrativas evangélicas é preponderantemente teológica, e também cristológica: querem enfatizar uma relação única de Jesus com Deus Pai, e ao mesmo tempo enfatizar o novo começo da humanidade, que só se pode realizar a partir dEle. Mas seria esse o único objetivo dos autores sagrados? A resposta pode ser não. – Nem Lucas nem Mateus fazem especulações sobre a virgindade de Maria; claramente tomam-na como pressuposto, um fato que é aceito sem discussão. Os textos de Mt (1,18) e Lc (1,35) que se referem diretamente à conceição virginal de Jesus, indiretamente apontam para para Maria. – As teólogas I. Gebara e M. C. Bingemer assim analisaram os dados do NT:
“Com toda a certeza os Evangelhos não querem nos dar uma detalhada descrição, para saciar a nossa curiosidade malsã, sobre as particularidades genéticas e biológicas que cercaram a Concepção e o Nascimento de Jesus. Querem, sim, em consonância com todo o conjunto de seus relatos, pôr-nos diante dos olhos um sinal que interpela nossa fé, escapando à nossa compreensão. Sinal esse que, assim como os milagres que Jesus realizava quando andava pelo mundo, não têm sua medida em si mesmos, mas apontam para algo maior, para as maravilhas que Deus opera em favor daqueles e daquelas que ama.”9
Assim, os testemunhos da fé em favor da virgindade de Maria no NT ganham clareza, se os analisarmos a partir de uma visão mais honesta que a daqueles que os querem rebaixar ao plano do mito, como o fazem os “desmitologizadores” modernizantes10. É com tal clareza que a Tradição eclesial do período pós-apostólico toma o dado bíblico para proclamar sua doutrina sobre a virgindade de Maria.
3. A virgindade de Maria na Tradição da Igreja e a formulação do dogma
É confissão de fé de toda a Igreja, testemunhada pelos Padres sem exceção, a doutrina revelada pela Palavra de Deus segundo a qual Jesus foi concebido pelo Espírito Santo no seio da virgem Maria, e por isso mesmo pertence ao depósito da fé
11. Contudo, é preciso uma observação. O Vaticano II fala de uma “hierarquia das verdades” (
Unitatis Reintegratio – UR 11). Assim, é preciso perguntar primeiro, no que concerne à doutrina da virgindade de Maria:
“...Pelos diferentes graus de comprometimento de uma reflexão teológica que, em termos formais, deveria ser medida em sua fundamentação nos escritos bíblicos e na expressividade de seu testemunho nos documentos da tradição doutrinária da Igreja, e, sob a perspectiva de seu conteúdo, em sua importância para a confissão das centrais convicções de fé.”12
Tendo em vista esse contexto, é importante perceber que nem a pergunta pela virgindade de Maria antes do parto nem a pergunta pela virgindade no parto ou depois do parto foi objeto de uma definição magisterial direta por parte de um concílio ecumênico de toda a Igreja. “Manifestações nesse sentido aparecem, muito antes, de modo acidental, em textos conciliares ou sinodais, ou são – como se deveria constatar sobretudo com vistas à pergunta por um nascimento extraordinário de Jesus, no qual a virgindade de Maria foi preservada intacta – doutrina de um concílio particular”13, a saber, o Sínodo de Latrão, de 64914. Esse fato atesta que os teólogos da Igreja antiga, em seu empenho pela formação da confissão de fé da Igreja nascente, se referiram à linguagem e a enunciados bíblicos, nos quais a maternidade virginal de Maria está claramente testemunhada, como vimos acima.
A elaboração teológica dos primeiros séculos avança gradualmente no sentido de consolidar a aquisição teológica da virgindade de Maria. Enquanto o Símbolo de Niceia (325) ainda confessa sem especificação a “encarnação e 'humanação' do Filho de Deus”, o Credo de Constantinopla (381) amplia o enunciado e formula que o Logos “encarnou-se, pelo Espírito Santo, na Virgem Maria”15. O Concílio de Éfeso decreta que Maria deve ser chamada “Progenitora (Theotokos) de Deus”, visto que “a Santa Virgem” teria “gerado segundo a carne a Palavra que vem de Deus e se fez carne”16. Em Calcedônia (451) temos a seguinte afirmação:
“Ensinamos todos unanimemente que nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na divindade, perfeito na humanidade, Deus verdadeiro e homem verdadeiro; (…) gerado pelo Pai segundo a divindade antes de todos os séculos, nos últimos dias por nós, os homens, e por nossa salvação (foi gerado) da Virgem Maria, Mãe de Deus, no que diz respeito a sua humanidade.”17
Já o Concílio Constantinopolitano II (553) introduz a referência explícita à virgindade perpétua: “Encarnou-se da gloriosa Theotókos e sempre virgem Maria”18. Com maior clareza ainda formula depois um cânone do Sínodo de Latrão, de 649, citado acima:
“Quem não confessa, de acordo com os santos Padres, no sentido genuíno e verdadeiro, a santa, permanentemente virgem e imaculada Maria como progenitora de Deus, visto que concebeu e deu à luz, de modo incólume, nos últimos tempos, sem sêmen, do Espírito Santo, no sentido genuíno e verdadeiro, ao próprio Deus, a Palavra, nascida, antes de todos os tempos, de Deus, o Pai, sendo que sua virgindade também permaneceu incólume depois de seu nascimento, seja anátema.”19
Por fim, diz a Constituição Cum Quorumdam Hominum, de Paulo IV, em que condena a heresia dos unitários (antitrinitários) e socinianos (7 de agosto de 1555):
“Nós, com a autoridade apostólica e de parte de Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, requeremos e admoestamos aqueles que afirmaram (…) que nosso Senhor não é o verdadeiro Deus e da mesma substância em tudo igual ao Pai e ao Espírito Santo; ou que não fosse concebido segundo a carne no útero da beatíssima e sempre virgem Maria, pelo Espírito Santo, mas que nasceu do sêmem de José como todo ser humano; (…) ou que a mesma beatíssima Virgem Maria não permaneceu sempre na integridade virginal, antes, durante e depois do parto.”20
Pelo que vimos, o desenvolvimento teológico da mariologia patrística percorre uma trajetória inicialmente determinada mais por motivos cristológico-histórico-salvíficos, até um interesse direto na pessoa Maria. Por uma voz mais autorizada, concluímos esta seção:
“Influenciado pela veneração de mártires e santos, que assumia paulatinamente formas litúrgicas definidas, e sob a influência de tendências ascéticas, o artigo de fé 'nascido da Virgem Maria', que, originariamente, tematizou sobretudo a conceição do Filho de Deus do Espírito Santo, transformou-se, em termos de conteúdo, em discurso da virgindade de Maria antes, durante e depois do nascimento de Jesus (virginitas ante partum, in partu, post partum). Enquanto o título Theotokos (progenitora de Deus) se encontra no contexto da discussão cristológica, a designação de Maria como a Aeiparthenos (sempre virgem) reflete a situação modificada.”21
4. Sentido teológico e antropológico da virgindade
Ao tentarmos encontrar um sentido teológico e antropológico da virgindade, é preciso sempre tentar recuperar o seu “sentido originário”, ou seja, o sentido dado pela “Maria dos Evangelhos”, uma vez que, como vimos, existem grandes dificuldades para se compreender e aceitar a virgindade como valor nos dias hodiernos.
A primeira distinção a ser feita aqui é entre a “virgindade fecunda” de Maria, ou seja, o fato de ela, permanecendo virgem, conceber e dar à luz, e o carisma-opção da virgindade, entendida como estado de vida22. O dogma mariano naturalmente se encontra na primeira afirmação, – ainda que a experiência única de Maria tenha inspirado grande número de discípulos a seguir seu exemplo, assumindo a virgindade como estado de vida.
Ligada a isso está a diferenciação de uma virgindade vivida como “virtude moral”. Para o estoicismo, a virgindade era o meio para o homem alcançar um controle perfeito das próprias emoções e desejos da alma sobre o corpo. Assim, livre das paixões carnais, elevar-se até a divindade. Esse modo de viver a virgindade pode alimentar um grande ideal ou ocultar a soberba.
Há ainda a virgindade entendida a partir do culto. As vestais da tradição greco-romana “deviam servir à sua deusa Vesta pelo menos 30 anos após a sua consagração, em perfeita virgindade”23. Essa virgens tinham, ademais, um status dos mais prestigiosos: “Elas prestavam ao Estado o serviço considerado como o mais elevado: manter sempre aceso o fogo sagrado, símbolo vivo da grande família pátria, renovando-o em todo dia primeiro de março, início do novo ano”24.
4.1 Virgindade como dom de si a Deus
A virgindade de Maria a diferencia radicalmente das três concepções acima enumeradas: a virgindade entendida como estado de vida, virtude moral e serviço de culto.
Para entendê-la, há que se situar sua virgindade no ambiente do judaísmo do AT, do qual Maria é filha dileta. Nesse mundo cultural, a virgindade é vista como maldição para toda mulher. A esterilidade provocava o desprezo da comunidade e era sinal de que Deus não estava com aquela mulher (cf. Jz 11,37-40). Seria completamente impensável a alguma judia verdadeira, vivendo neste mundo e ambiente cultural, assumir um voto celibatário. Os que assim o fizeram (como Jeremias), foi apenas como um sinal profético de denúncia e de desolação para o povo (cf. Jr 16,1-4).
Por isso a virgindade de Maria se faz empobrecimento, desprezado pelos seus contemporâneos. Maria não canta sua virgindade, mas as grandes coisas que o Senhor fez nela (cf. Lc 1,59). “A virgindade biológica de Maria pertence à estrutura da kenose (humilhação como esvaziamento de si, da própria vontade, pela aceitação da Vontade divina) da qual participou também seu Filho Jesus. Não supõe nenhum valor proclamado pela sociedade e pela religião. Maria fez desta sua situação de “baixeza” caminho de humildade, de serena entrega e de confiança ilimitada em Deus. Ela nada pretende; apenas coloca-se em total disponibilidade. Foi esta atitude que permitiu que, – simplesmente, – Deus nascesse em Maria, primeiro em seu coração e alma, depois em seu seio puríssimo”25.
Do que foi dito percebemos que a virgindade de Maria não possuía nenhum valor em si e por si mesma. Era um meio para que a Vontade de Deus se pudesse realizar em sua vida, na vida de seu povo e na vida da humanidade como um todo: nas vidas de cada um de nós.
4.2 Virgindade como Nova Criação
À pergunta sobre a necessidade de Deus escolher nascer de uma virgem para realizar o seu plano salvífico, algumas respostas são evocadas e precisam de uma consideração clara.
A primeira consideração é que não há nenhuma necessidade a priori para Jesus não ter nascido de pai biológico. Essa posição é defendida, por exemplo, por Joseph Ratzinger, segundo o qual “a condição de Jesus como Filho de Deus (…) não (se baseia), de acordo com a fé da Igreja, no fato de Jesus não ter conhecido pai biológico; a doutrina da divindade de Jesus não seria atingida se Jesus tivesse nascido de um matrimônio humano normal. Pois a condição de Filho de Deus, da qual fala a fé, não é um fato biológico, e, sim, ontológico”26.
Assim sendo, o nascimento virginal em termos fisiológico-biológicos (no sentido da ausência do esperma masculino) não seria nenhuma necessidade indispensável para a confissão de fé em Jesus como verdadeiro Filho de Deus.
Também não há nenhuma visão negativa para com o sexo. Antes, a procriação era sinal de benção para o judaísmo, ao contrário da virgindade, vista como esterilidade maldita.
Muitos santos Padres achavam que o nascimento virginal de Jesus era uma condição necessária para que Ele não fosse contaminado pelo pecado original. Com o avanço da crítica teológica, o fator biológico do Pecado Original dificilmente se sustenta em nossos dias. Deus mesmo, por sua exclusiva Presença, não purificaria total e completamente a qualquer corpo humano? Assim, as razões para a Concepção virginal devem ser buscadas na Cristologia além da Mariologia: com essa criança, com Jesus de Nazaré, o próprio Deus estabelece um novo início salvífico na história da humanidade. Um novo começo da graça salvífica, que independe da ação humana, mas se deve somente à iniciativa de Deus, a seu Espírito criador. A virgindade biológica de Maria de Nazaré está a serviço da realização deste Desígnio divino. O biológico é sinal, suporte, expressão de outra realidade: o surgimento de uma nova humanidade. A virgindade, como é evidente, não está a serviço de sua própria exaltação, mas totalmente a serviço de Cristo e de seu significado universal.
4.3 Virgindade de Maria como modelo de sociedade integrada: virgindade e autonomia
A virgindade de Maria também pode ser apreciada como paradigma de vida e liberdade. Analisando os textos bíblicos, vemos que Maria viveu a corajosa experiência de assumir, com todos os seus (grandes) riscos, o desafio que a conceição sob o Espírito Santo lhe colocava. Sob essa luz, podemos dizer que a virgindade é, de algum modo, afirmação de autonomia, de liberdade e de disposição de si mesmo. Virgem é quem age a partir de dentro, não a partir de fora. Define-se a partir de si, e não pelas reações do outro ou com o outro. O virgem é aquele que se possui e se contém, porque é dono de si. Daí é que vem o sentido originário da palavra "continência".
O primeiro momento do ser-virgem é a autonomia. A etapa posterior é a abertura de si e a livre auto-entrega: “Eis aqui a serva do Senhor”, diz a Virgem. A virgindade, assim, não é renúncia ao amor, mas sim aos apegos egoístas, ao narcisismo dependente e possessivo. A virgindade sob este prisma é expressão do amor que é senhor de si e que se dá, não por carência, mas por generosidade e plenitude.
4.4 A virgindade e fecundidade
Virgindade, no caso incomparável de Maria, não é só autonomia e abertura. É essencialmente geração de vida, fecundidade. Por isso é sempre materna: Isso aparece claro na forma particular de virgindade que é o celibato presbiteral, potencialmente rico de fecundidade apostólica. Também do ponto de vista estritamente social, a virgindade possui sua potencialidade. É capacidade de produzir frutos nos mais diversos campos: filosófico, científico, social, político e religioso.
Há ainda um outro exemplo de fecundidade que podemos contemplar na Mãe de Jesus e que é modelo para a sociedade de hoje, tão marcada pela autossuficiência. A virgindade no AT e mesmo no tempo de Maria é expressão da pobreza do povo. E Maria é, biblicamente, o tipo do povo pobre, impotente e aparentemente sem futuro. É justamente nesta pobreza que Deus age e gera seu Filho, Aquele que veio para que “todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Assim, a virgindade mariana aparece como fecundidade capaz de gerar vida nova, para si e para o seu povo. É Deus agindo para tirar, da impotência, a Vida, pois para Ele “nada é impossível” (Lc 1,37).
De modo semelhante à Virgem, podemos dizer que também o povo pobre e fraco pode ser fecundado pelo Espírito de Deus e gerar vida e liberdade. O santo Pneuma faz o deserto florescer (cf. Is 32,15), tira água da rocha (cf. Sl 105,41; 114,8), faz os mortos ressurgirem (cf. Rm 4,17; Hb 11,19), faz a Virgem conceber e dar á luz. Pode então fecundar o fraco, o pobre, o iletrado... Eu e você.
5. Conclusão – a fé é o fundamento
Cabe reconhecer que as propostas de explicação sobre o dogma da virgindade perpétua de Maria, apresentadas pelo Magistério e pela Teologia, aqui sintetizadas, não são simples, e também não são óbvias; assim como tantas outras doutrinas fundamentais da fé cristã. – Devem ser aceitas ou não, pela fé, que sempre e ao final é Dom de Deus. – Pois "o justo viverá pela sua fé" (Hab 2,4; Rm 1,17; Hb 10,38).
A fé é a nossa vitória sobre o mundo (1Jo 5,4). A fé é o fundamento da esperança, é certeza a respeito do que não se vê (Hb 11,1). Ora, a fé conquistou reinos, fez justiça, obteve Promessas divinas, fechou a boca de leões, aplacou a violência do fogo, escapou ao fio da espada, recuperou forças na fraqueza, tornou valentes os covardes, conquistou batalhas e guerras, pôs exércitos para correr, fez andar sobre as águas, ressuscitou os mortos.
Conta-se que o Papa Paulo VI caminhou pelos corredores do Vaticano repetindo e repetindo: "Quando vier o Filho do Homem, ainda achará fé sobre a terra?" (Lc 18,8)... – O Dom da Fé vem diretamente de Deus, e Ele o dá livremente a todos os homens. É um Dom Infuso, como o da Esperança e o da Caridade. A fé é como uma semente. Quando nascemos Deus planta em nós a semente da fé, e nós nascemos com esta semente. É uma semente em potencial, que ainda não é ato, mas compete-nos dar condições materiais para que a fé cresça. Isto é, a fé é Dom de Deus que não nasce separadamente da vontade humana, porque ninguém crê se não quiser, – assim como também ninguém crê sem que Deus o permita.
A fé também precisa ser estimulada, exercitada, e isto requer certas atitudes. Assim como o dom para tocar algum instrumento musical, com o qual algumas pessoas inegavelmente já nascem, mas que precisa ser exercitado: cabe ao indivíduo, que já tem o dom, estudar e praticar sempre, se quiser atingir a perfeição.
Para cultivar e exercitar a fé
• Para cultivar e exercitar a fé precisamos viver o Amor-caridade, pois a fé cresce na prática da caridade.
• Precisamos da vivência sacramental, buscar os Sacramentos da Confissão e da Comunhão, mesmo que não tenhamos vontade. – Isto não deve ser feito por uma questão de sentimento, não depende de "sentir-se bem" ou de se emocionar. Santa Teresa D’Ávila ensinava que quando se tem vontade de ir à Missa, então se deve ir; mas se no domingo seguinte não se tem a mesma vontade, ainda maior é a razão para ir sem falta, porque é justamente quando se vai sem ter vontade que se vai pela fé. – Assim como ocorre com a oração; quando se reza sem vontade, sem prazer, então se age pela fé, e o valor desta oração é dobrado. – Não se pode reduzir a fé a uma simples questão de sentir prazer ou não: é uma questão de atitude. Fé não se relaciona com sensacionalismo, empolgação, histeria.
• Leitura das Sagradas Escrituras e das obras piedosas, já que a fé depende de ouvir, e de ouvir a Palavra do Cristo (Rm 10,17). A fé unida à inteligência e à razão pode alçar altos vôos com maior facilidade.
Deus age com gratuidade para aquele que tem fé. É Ele a medida da Graça, a todos que a pedem. É um Dom que pode e deve, portanto, ser pedido por cada um de nós a Deus, e constantemente estimulado e exercitado.
Oxalá todos nós, ao contemplarmos o mistério da virgindade perpétua de Maria, coloquemos nossos dons a serviço da geração da vida e do bem geral no mundo, em humildade, na doação de si e na solicitude pelo outro. Sempre sabendo, porém, que onde nossas possibilidades humanas parecem perder a força e a vitalidade, ali a Graça transformadora de Deus pode gerar uma vida nova.
Adaptado do artigo "O Dogma da Virgindade de Maria", do Pe. Rodrigo Assis Rosa, OMV
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Notas:
1. Desde a pregação dos jesuítas, somos um povo que adquiriu muito do linguajar católico. Quando ocorre um infortúnio qualquer, é quase instintivo apelarmos para santos, anjos ou o próprio Deus. Uma das santas mais requisitadas é a Virgem Maria (...). Daí o apelo à 'Virgem Maria!'; invocação feita há séculos, mas que foi se desconstruindo com as corruptelas naturais da língua, até chegar ao ponto em que chegou. Se um sujeito perde um ônibus e diz 'vixi!', 'vix!' ou 'xí!', na verdade está clamando por Virgem Maria. Acompanhe as sucessivas desconstruções que levaram à versão mínima da expressão da Santa: 'Virgem Maria!'; 'Virgem!'; 'Virgi!'; 'Vígi!'; 'Víxi!'; 'Íxi!'; 'Xi!'; 'Iíí'; 'Chhhh'. Construções mistas também são usuais, como 'Vixi Maria' ou 'Íxi Maria'.
2. GONZÁLEZ, Ignacio. Maria Evangelizada e Evangelizadora, Loyola, 1990, p. 239.
3. MURAD, Afonso. Maria, Toda de Deus e tão humana. São Paulo: Paulinas, 2004.
4. González, op. cit., p. 242.
5. GEBARA, M. C. Bingemer, Maria Mãe de Deus e Mãe dos Pobres, Vozes, 1987, p. 121.
6. Nova edição, revista e ampliada, Nota 'c'.
7. “O texto não considera o período ulterior e por si não afirma a virgindade perpétua de Maria, mas o resto do Evangelho, bem como a Tradição da Igreja, a supõem”. Ibid., nota 'h'.
8. op. cit., p, 113.
9. Ibid., p. 148.
10. Cf. C. Boff, Mariologia social, Paulus, 2006, p. 476.
11. Cf. C. I. González, op. cit., p. 243.
12. A. Müller e D. Sattler, “Mariologia”. In: T. Schneider (Org), Manual de Dogmática, Vol. II, Vozes, 2002, p. 164.
13. Ibid., p. 164.
14. Conforme formulação logo abaixo.
15. Ibid., p. 155.
16. Ibid., p. 155.
17. C. I. González, op. cit., pp. 244.
18. Gebara, M. C. Bingemer, op. cit., p. 122.
19. A. Müller e D. Sattler, op. cit., p. 156.
20. I. González, op. cit., pp. 246.
21. Müller e D. Sattler, op. cit., p. 156.
22. Cf. C. Boff, op. cit., p. 475.
23. Ibid., p. 149.
24. Citado em A. Müller e D. Sattler, op. cit., p. 165.
25. Cf. C. I. González, op. cit., p. 242.
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Bibliografia:
• Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. Paulus, 2003.
• Gebara, Ivone, Bingemer, Maria C.. Maria Mãe de Deus e Mãe dos Pobres, Vozes, 1987.
• Gonzáles, Carlos Ignacio. Maria Evangelizada e Evangelizadora, Loyola, 1990
• Meo, Salvatore, De Fiores, Stefano. Dicionário de mariologia. Trad.: Álvaro A. Cunha et al. São Paulo, Paulus, 1995.
• Murad, Afonso. Maria, Toda de Deus e tão humana. São Paulo, Paulinas, 2004.
• Boff, Clodovis. Mariologia social, Paulus, 2006.
• Schneider, Theodor (Org). Manual de Dogmática, Vol. II, 2ª. Ed. Petrópolis, Vozes, 2002.
www.ofielcatolico.com.br