'A LEITORA Valdelice Silva Pyetra enviou-nos a seguinte pergunta:
"Olá, Paz de Cristo. Eu quero tirar uma dúvida, (...) eu já ouvi muito falar de Sodoma e Gomorra e os anjos caídos do céu. Algumas crenças religiosas afirmam que esses anjos tiveram relações sexuais com humanos dos quais surgiram os gigantes, enquanto outras crenças negam a possibilidade de que os anjos tenham tido relações. Embora o texto realmente dê a entender que realmente isso tenha acontecido. Como todos sabem essa história se encontra em Gênesis 6,1-4 Me parece um tanto complicado e eu gostaria mesmo de saber a verdadeira tradução por nossos irmãos católicos. Aguardo respostas, obrigada."
Prezada Valdelice,
Em primeiro lugar, é preciso manter sempre em mente que nem tudo o que está escrito na Bíblia, especialmente as narrativas do Antigo Testamento, devem ser tomadas ao pé da letra. Há muita simbologia, analogia e alegoria nesses escritos. Por isso mesmo, tudo deve ser compreendido à luz do Magistério da Igreja, que é nossa mãe e mestra.
Pois bem, a passagem que você nos propõe é sem dúvida das mais difíceis, e para ela existem variadas interpretações que nos apresentam os teólogos e pesquisadores de linhas diversas:
1. Influência das mitologias pagãs
Para alguns estudiosos, o trecho de Gênesis em questão poderia ter origem mitológica, ou seja, ter sido transcrito pelo autor sagrado, com objetivo de ilustrar uma ideia teológica (que não abordaremos aqui), sem a indicação da fonte original. Assim fazendo, estaria o hagiógrafo salientando, por exemplo e entre outras coisas, que o mundo ia de mal a pior e precisava da intervenção de Deus, o que acabou por culminar no Dilúvio.
Os defensores desta interpretação entendem que os "filhos de Deus" seriam então, originalmente e segundo essa suposta fonte extrabíblica, deuses mitológicos que se uniram às "filhas dos homens" (=mulheres). De fato, a tradição pagã contemporânea a esses textos é rica em mitologias envolvendo deuses e semideuses que se envolvem com humanas e tem filhos com elas, que depois se tornam heróis e guerreiros prodigiosos. Os católicos tradicionais, evidentemente, não aceitam esta interpretação mitológica, que traduz por "deuses" a expressão "filhos de Deus".
2. Filhos de anjos
Alguns cristãos primitivos, fazendo eco a uma tradição rabínica, chegaram a interpretar "filhos de Deus" como anjos que teriam se unido às "filhas dos homens", gerando descendentes gigantes. Isso parece ser ratificado por Judas 1,6 e 2Pedro 2,4, embora tais passagens de fato não abonem esse modo de interpretação.
Muito cedo na história da Igreja, porém, já a partir do século IV, autores cristãos levantaram entendimentos contrários a esta interpretação, até porque, sendo seres espirituais, sem corpo material, os anjos não teriam como manter cópula carnal com mulheres. Diz Nosso Senhor: "Na ressurreição (os homens e mulheres) não se casarão nem serão dados em casamento; mas serão como os anjos de Deus no Céu" (Mt 22,30).
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Imagens forjadas que circulam pela internet, como esta e a do cabeçalho, simulam achados arqueológicos espetaculares, que comprovariam a existência dos gigantes bíblicos... |
3. Filhos de Set e filhas de Caim
Esta interpretação, que parece ser a mais alinhada com a Tradição da Igreja, vê nos "filhos de Deus" os descendentes de Set (população fiel ao Senhor) e, nas "filhas dos homens", os descendentes de Caim (uma população infiel). O resultado dessa união seria uma geração de "gigantes" (em hebraico nefilim; em grego: gigas), o que pode expressar um elemento da mitologia dos povos pagãos primitivos que existiram nas circunvizinhanças (enaquim, enim, refaim, zonzomin), tidos como de alta estatura e realizadores de monumentos megalíticos. – Aliás, provêm dos primitivos povos ugaríticos textos que apresentam gigantes mitológicos (os "refaim") como heróis míticos e fundadores de dinastias.
Ora, diversas passagens do Antigo Testamento demonstram que os hebreus acreditavam na existência de povos de altíssima estatura, ao mesmo tempo fortes, soberbos e revoltados contra Deus. Podemos vê-lo, por exemplo, em: Números 13,3; Deuteronômio 2,20-21; 3,11; 1Samuel 17,4; 1Crônicas 11,23; etc. Também encontramos referências a esses "gigantes" nos livros deuterocanônicos: Eclesiástico 16,7; Judite 16,6 e Sabedoria 14,6.
Para que se tenha ideia da altíssima estatura destes "gigantes", o texto de Deuteronômio 3,11 descreve como Og, um remanescente dos refaim, tinha uma cama de ferro que media 9 côvados de comprimento, – o que equivale a 4 metros!
Retomando a análise da última interpretação, esta é favorecida também pelo fato de o antiquíssimo tratado rabínico Bereshitrabba (26,7) afirmar que refaim é o nome primitivo dado ao nefilim, heróis nascidos de mulheres engravidadas pelos "filhos dos deuses" (há um forte e inegável traço de influência mitológica aqui). Diante disto, é bem possível e razoável supor que os israelitas tenham preferido usar a palavra nefilim para designar os refaim da mitologia pagã. – Tal substituição de palavras não deve causar estranhamento no contexto escriturístico. De modo semelhante, podemos ver em 1Crônicas (8,33), por exemplo, que Saul gerou Esbaal, que significa "homem de Baal"; Como este nome tinha conotação pagã, porém, o autor de 1Samuel (14,49), sem cerimônia, verte-o para Isvi, ou seja, "homem de Javé"!
Em resumo: uma interpretação bastante provável para a passagem de Gênesis 6,1-4 é que da união entre o povo descendente de Set (=filhos de Deus) e o povo descendente de Caim (=filhas dos homens) surgiu o povo dos refaim, que tinha como principal característica sua alta estatura, talvez até decorrente de alguma desordem biológica. Além do mais, estudos arqueológicos e genéticos demonstram que a estatura dos homens da antiguidade era muito menor do que a atual, e o contato com uma raça de homens de média de dois metros de altura, por exemplo, seria chocante. Some-se a isso o hábito cultural dos semitas de supervalorizar ou exagerar os fatos, e temos uma boa explicação. – Comparativamente, se uma tribo de pigmeus se deparasse com os jogadores de um time de basquete profissional, poderiam tranquilamente considerá-los "gigantes". – E da mesma forma como os bons costumam se corromper andando na companhia dos maus, desta união entre os descendentes de Set e os de Caim resultou a crescente corrupção da espécie humana. É assim que os Padres e Escritores eclesiásticos têm entendido esse difícil texto, ao menos desde o séc. IV.
Importa dizer, por fim, que essa interpretação não esgota o assunto. Futuros estudos, pesquisas, descobertas arqueológicas e filológicas poderão trazer novas possibilidades. Não há como nós termos sempre 100% de certeza a respeito dos detalhes e minúcias de textos veterotestamentários tão antigos, cujos significados, por vezes, acabam-se perdendo nas brumas dos séculos. Isso não deve ser motivo de preocupação para nós. Tais detalhes não irão influir no percurso da nossa salvação, nem nos embaraçar no Caminho que leva ao Céu, que é Nosso Senhor Jesus Cristo. E este deve ser sempre o fundamento da nossa fé, do nosso ânimo e de todas as nossas ações. Estudos como estes são interessantes; entretanto, servem mais como complemento ao conhecimento que realmente importa: o conhecimento da Vontade de Deus.
Deus a abençoe e guarde, Valdelice, e Maria Santíssima interceda por sua vida!