RECEBEMOS DO LEITOR Carlos Alberto Silva a pergunta que reproduzimos abaixo, e respondemos a seguir:
“Outro dia fui á uma igreja protestante (sou católico) e logo depois dos louvores alguém levantou e começou a falar numa linguagem para mim desconhecida, e em seguida como em uníssono o Pastor começou a traduzir o que o rapaz falava, mais tarde perguntei o que era aquilo e informaram que o mesmo estava falando em línguas. Fico pensando e não entendo, será que só na igreja dos "evangelicos" DEUS se manifesta, não é isto que entendo quando Paulo diz sobre "dons". Gostaria de maiores esclarecimentos sobre este fato. Obrigado.”
Caríssimo Carlos, há determinados grupos inseridos na Igreja Católica entre os quais também ocorre o fenômeno ao qual você se refere: muitos membros do movimento denominado "Renovação Carismática Católica" (RCC) falam "em línguas”. Esta, porém, é uma prática vista com muito cuidado pela Igreja, e não poderia ser diferente. O então Cardeal Ratzinger, quando Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, tratou do assunto no prefácio do Documento de Malines. Abaixo, alguns trechos do referido documento que consideramos particularmente esclarecedores (atenção às partes destacadas em negrito):
“Qual é a relação entre a experiência pessoal e a fé comum da igreja? Ambos fatores são importantes. A fé dogmática que não esteja baseada em uma experiência pessoal é vazia.
Por outro lado, a mera experiência pessoal que não esteja relacionada com a fé da Igreja permanece cega.
(...) O Espírito Santo, que é dado a toda a Igreja, faz-se visível e tangível através de diversos Ministérios; todavia, não se confunde com eles. Como manifestações visíveis do Espírito, os carismas estão ordenados para o serviço da Igreja e do mundo, mais do que para a perfeição dos indivíduos que os recebem. Como tais, eles pertencem à própria natureza da Igreja. Está portanto fora de questão que um grupo ou movimento particular, no seio da Igreja, reivindique uma espécie de monopólio do Espírito e dos seus carismas.
Se o Espírito e os seus carismas são inerentes à Igreja no seu conjunto, então são constitutivos da vida cristã e das suas diversas expressões, comunitárias ou individuais. Na comunidade cristã não há, em termos de direito, membros passivos, desprovidos de função ou Ministério. 'Há diversidade de Dons, mas é o mesmo Espírito; diversidade de Ministérios, mas é o mesmo Senhor; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito em vista do bem de todos' (1Cor 12, 4-7).
Neste sentido, todos os cristãos são carismáticos, e todos são desde logo investidos num Ministério ao serviço da Igreja e do mundo.
Os carismas são, contudo, de importância desigual. Aqueles que estão mais diretamente ordenados para a edificação da comunidade possuem maior dignidade. 'Vós sois o Corpo de Cristo; cada um por sua parte é os seus membros. Aqueles que Deus estabeleceu na Igreja são, primeiramente, os Apóstolos, em segundo lugar, os profetas, e em terceiro lugar os que estão encarregados de ensinar; vêm de seguida, o dom dos milagres, depois o de cura, o de assistência, o de direção e [por último] o dom de falar em línguas (1Cor 12, 27-28).”
(Documento de Malines I, Bélgica, coord. Cardeal Suenens, ed. Pneuma, 1974)
Também existe um documento da CNBB, intitulado "Orientações Pastorais Sobre a Renovação Carismática Católica" (doc. 53), com recomendações disciplinando certas práticas místicas no contexto da RCC, e explicações e orientações sobre o assunto. – Aqui está o link para a leitura e
download do documento na íntegra:
Orientações Pastorais Sobre a Renovação Carismática Católica. – Abaixo, um trecho do referido documento:
“62. Orar e falar em línguas: O destinatário da oração em línguas é o próprio Deus, por ser uma atitude da pessoa absorvida em conversa particular com Deus. E o destinatário do falar em línguas é a comunidade. Como é difícil discernir, na prática, entre inspiração do Espírito Santo e os apelos do animador ao grupo reunido, não se incentive a chamada oração em línguas e nunca se fale em línguas sem que haja intérprete.”
Já o estudo das Sagradas Escrituras vai revelar que elas não contém orientações a respeito dessa prática: não há clareza quanto ao assunto. Apenas mencionam que, na época dos Apóstolos, um certo fenômeno acontecia numa igreja bastante problemática: a de Corinto (conf. 1Cor 14). Nota: quando dizemos "Apóstolos", evidentemente nos referimos aos verdadeiros Apóstolos, instituídos por Cristo, e não a qualquer pessoa que interprete a Bíblia por conta própria e se intitule a si mesma "bispo" ou "apóstolo fulano" da "igreja de tal".
Além do silêncio das Escrituras, a Tradição cristã parece ter-se desenvolvido como que ao largo do fenômeno. Nos documentos antigos e registros históricos, praticamente não encontramos menção a ele. Com o passar dos séculos, o costume parece ter caído no esquecimento. Por tudo isso, a compreensão do assunto varia muito entre teólogos, tanto protestantes (muitas comunidades protestantes não aceitam a prática) quanto católicos. Alguns líderes "evangélicos" chegam a exortar às suas comunidades que estejam atentas para que não sejam iludidas por Satanás. O fato é que precisamos de prudência; devemos tomar muitíssimo cuidado ao analisar a questão, antes de tomarmos qualquer posição radical.
Nos primórdios, S. Paulo Apóstolo não parecia muito entusiasmado com o fenômeno, nem se mostra favorável a divulgação e perpetuação da prática do “falar em línguas”. Vejamos:
“Assim também vós: se vossa língua só profere palavras ininteligíveis, como se compreenderá o que dizeis? Sereis como quem fala ao vento.”
Qual o valor de se repetir palavras que ninguém entende, numa oração? A Bíblia diz que devemos rezar com inteligência, fazendo uso da razão. Diz que devemos orar e cantar "em espírito, mas também com o entendimento" (conf. 1Cor 14,15). Não cabe abrir a boca e proferir palavras que ninguém, nem mesmo a pessoa que está falando, compreende. Os coríntios, de fato indo contra o que Paulo ensinava, falavam em línguas desconhecidas durante suas celebrações; uma confusão de palavras que não diziam nada, mas que contagiavam o povo. Por isso Paulo quis botar ordem nessa casa, dizendo com firmeza:
“Se alguém falar língua estranha, que haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, que se cale na igreja, e fale consigo mesmo e com Deus.”
O que Paulo diz é: “Fiquem em Comunhão com Deus e entre si”, isto é, todos juntos unidos ao SENHOR no coração e em pensamento. Mais adiante, ele vai afirmar que isto é melhor do que falar em línguas.
Mesmo assim, esse costume chegou até nós, e nos últimos tempos ganhou força. Hoje, existem “pastores” que começam a pregar e, de repente, no meio da fala, passam a repetir frases que ninguém entende, supostamente em “línguas estranhas”. Os mais impressionados ficam logo entusiasmados, são rápidos em afirmar que é manifestação do Espírito, e com isso todos se contagiam. Também existem aqueles que começam a rezar em voz alta e, de repente, passam a repetir certas frases já conhecidas (curiosamente, são sempre as mesmas), também supostamente em “línguas estranhas”. São frases curtas, ditas em meio ao sermão ou à oração. Mas o que diz a Bíblia Sagrada, que essas pessoas alegam seguir?
“...Como dirá ‘Amém’ sobre a tua ação de graças aquele que ocupa o lugar dos simples, se ele não sabe o que dizes?”
“Prefiro falar na assembléia cinco palavras que compreendo, para instruir também aos outros, do que falar dez mil palavras em línguas estranhas.”
“Assim, as línguas são sinal, não para os fiéis, mas para os infiéis; enquanto as profecias são um sinal, não para os infiéis, mas para os fiéis. Se, pois, numa assembléia da Igreja todos falarem em línguas, e se entrarem homens simples ou infiéis, não dirão que estais loucos?”
A Palavra de Deus escrita não poderia ser mais clara do que isso. Na verdadeira Religião, não devemos nos deixar levar apenas pela emoção ('mas também com o entendimento', como diz S. Paulo, isto é, sem perder a razão). Somente a razão, centrada na Verdade (que é Cristo), pode nos livrar da histeria, da atração hipnótica das multidões que integram certas comunidades carismáticas, conduzidas por verdadeiros atores disfarçados de mestres, com suas frases de efeito e shows ensaiados.
O conselho é ouvir à sua própria consciência. Até que ponto é sensato confiar naquilo que uma pessoa diz, e no que uma outra está supostamente "traduzindo"? Para quê precisaríamos disso, se Deus fala direto às nossas consciências, aos nossos corações e almas, quando rezamos sinceramente e com toda a fé e confiança?
A ação de Deus não depende dos dons carismáticos, nem se limita a eles. Deus não está "mais presente" onde ocorram fenômenos inexplicáveis, e nem a verdadeira Comunhão com Deus depende ou se mede através das emoções humanas.
Além de tudo isso, é muito importante observar que, segundo a Bíblia, em Pentecostes cada um dos discípulos falava ao povo presente, gente de diversas nações, em sua própria língua: todos entendiam o que eles diziam. Não se tratava de um alarido ininteligível, não era um berrar de palavras sem sentido que ninguém entendia, ao contrário. Cada um dos presentes ouviu o Evangelho e o compreendeu em seu próprio idioma, que os pregadores não conheciam.
Uma das grandes incoerências de certas comunidades é afirmar que o seu falar ininteligível é a "língua dos anjos"... Eis um grande absurdo. Em primeiro lugar, existem estudos publicados que demonstram que, em cada país onde ocorre essa prática, entre comunidades protestantes, surgem certas palavras que são repetidas sempre, e coincidem conforme o país de origem. Não se trata de linguagem realmente estranha, mas característica de determinada região.
Além disso, os mesmos estudos apontam que este falar em línguas muda com o passar dos tempos. Gravações de décadas passadas mostram um falar de determinado modo, com certas palavras-chave sendo continuamente repetidas; com o passar do tempo, essa linguagem muda, e novas palavras vão sucessivamente tomando o lugar das antigas. Depois de algum tempo, a suposta "língua dos anjos" muda completamente. Reproduzimos abaixo um trecho bastante esclarecedor do livro "Ímpio", de Fábio Marton, ex-protestante pentecostal atualmente ateu, que trata sobre o tema com a propriedade de quem teve o "falar em línguas" como base de sua fé e viveu no interior de seitas que têm esta mesma crença desde a infância e por muitos anos:
“A questão (do 'falar em línguas') foi estudada pela ciência. Em seu livro de 1973, 'Tongues of men and angels' (Línguas de homens e anjos), o linguista canadense W. J. Samarin provou que a glossolalia não é uma língua de verdade. Ela não tem sintaxe gramatical de qualquer tipo, seu vocabulário é de apenas umas duas dezenas de palavras.
Alguém poderia dizer que, por ser a língua dos anjos, é normal que a glossolalia não tenha sintaxe humana. Acontece que também teríamos de admitir que existem muitas línguas dos anjos. Samarim também descobriu que essas palavras mudam completamente conforme a língua de quem fala, e os sons sempre se parecem com os da fala nativa. Ou seja, um pentecostal falando línguas estranhas nos Estados Unidos usa palavras completamente diferentes de outro que fala essa língua na Coreia do Sul ou no Brasil.
Faça o teste você mesmo: veja um culto americano e preste atenção às línguas; depois, compare-as com o que é ouvido nas igrejas do Brasil. Pode ser no YouTube. Não só 'os anjos' falam uma língua em cada país, como sua língua muda rapidamente ao longo dos anos. Meu tio Isaque é o único cético na família, além de eu mesmo. Ele me contou que o som da língua estranha mudou muito desde os anos de 1960, quando meu avô começou a ser pastor. Então, soava mais como um 'salalai'. Vendo as igrejas hoje em dia, parece-me que o 'surimicanta' também já saiu de moda.
A suposta 'língua dos anjos' é o que ocorre quando se articulam sons aleatoriamente, num momento de grande excitação. Não chega nem mesmo a ser um idioma fictício, como o 'klingon' (da série televisiva e cinematográfica 'Jornada nas Estrelas') ou o 'élfico' (de 'O Senhor dos Anéis' e outros): estes têm sintaxe, e não são diferentes em cada país ou época. Falar em línguas é certamente resultado do fervor religioso, mas um resultado físico, como o suor na testa do pastor, que não guarda qualquer mistério. Quinze anos após ter deixado a igreja, ainda posso falar línguas estranhas a quem pedir.
Ainda que tivesse sido milagre e fosse mencionado na Bíblia, certamente não foi o que aconteceu em Pentecostes, portanto devo concluir que não existe Igreja Pentecostal. Ao menos até que se tenha notícia de alguém em Franco da Rocha falando sânscrito, por exemplo – aí, então, teríamos a primeira Igreja Pentecostal do mundo [pois em Pentecostes os discípulos falavam em idiomas estrangeiros que nunca tinham conhecido, e todos entendiam o que eles diziam.”
Outro aspecto é o fato de o próprio Apóstolo Paulo, um dos teólogos mais influentes de toda a História e verdadeiro Pilar da Igreja, apesar de em 1Cor 14,18 dizer: "Falo mais línguas do que vós todos", dá claramente a entender que ele mesmo não falava a dita "língua dos anjos", ao afirmar com muita clareza: "Ainda que eu falasse (logo, não fala) a língua dos anjos..." (1Cor 13,1). Como acreditar, então, que nessas comunidades qualquer novo "convertido" seja abençoado de maneira tão especial e com tamanha facilidade? Sim, porque sabemos que o "falar em línguas" é coisa comum e corriqueira para os pentecostais. Estariam todos sendo agraciados, assim tão facilmente, com o Dom divino de falar a língua dos anjos, uma Graça que nem o santo Apóstolo recebeu?
Além de toda essa análise mais superficial, que apresentamos até aqui, evidentemente nós poderíamos e até deveríamos, numa contemplação mais aprofundada, considerar em que sentido se poderia afirmar que os anjos teriam uma linguagem própria, no sentido de idioma como instrumento de comunicação linguística de um povo, um grupo étnico ou social, assim como é entre nós, seres humanos. Sendo os anjos seres essencialmente espirituais, isto seria teologicamente bastante discutível. É certo que os anjos de Deus são capazes de se comunicar por meio de inspirações mentais/espirituais, e é exatamente assim que os maus anjos, por exemplo, nos tentam e procuram nos levar a praticar o mal. A Teologia nos diz que a população angélica, portanto, não usa de uma língua falada, fonética, com vocabulário e regras gramaticais próprias, para se comunicar. De fato, isto seria absurdo.
Por fim, use a inteligência que o Criador lhe deu, e a sua reta consciência. Peça pelo Dom do entendimento. Assim você saberá se vale a pena confiar em afirmações de homens ou se é melhor manter-se fiel na primeira e única Igreja de Jesus Cristo (una e indivisível), e ouvir o que Deus fala por intermédio do Corpo Místico do Cristo, que é a mesma Igreja (e cuja Cabeça é o próprio Senhor Jesus)... E também diretamente ao seu coração.
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Fontes e ref.:
• MARTON, Fábio. Ímpio: o evangelho de um ateu, São Paulo: Leya, 2011.
• SAMARIN, William J. Tongues of men and angels, London: The Macmillan Company, 1973.
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