Tradução de Euro B. de Barros
Santo Tomás de Aquino, pintura espanhola anônima do séc. XIX |
Artigo 4º — O verdadeiro e o bem
ESTE ARTIGO ESTENDERÁ o problema da verdade a todo o agir humano.
A vontade é, de fato, o princípio imediato de toda ação humana. Um ato é dito propriamente “humano” quando é voluntário. Ora, o objeto da vontade é o bem. A vontade é um “apetite”, um desejo de bem que o faz ser procurado quando dele se é privado, e que faz repousar quando já está este possuído.
A questão das relações entre o verdadeiro e o bem põe em causa toda a nossa conduta. Se o verdadeiro tem precedência sobre o bem, então toda a vida humana deverá deixar-se dirigir pela verdade.
Dar, ao contrário, prioridade ao bem sobre o verdadeiro é dar o papel determinante à vontade. É ela que será a regra primeira da qualidade dos nossos atos. Será suficiente ter querido autenticamente uma coisa para que ela seja boa.
Vê-se, facilmente, o abismo que separa esses dois pontos de vista, e as consequências desastrosas que traria um erro quanto a essa questão. Isto aparece mais claramente, ainda, quando se consideram as três teses mais aceitas na atualidade a esse respeito. Elas abordam, respectivamente, por três aspectos diferentes, o problema seguinte: a vontade em si mesma (o voluntarismo), a ação (o pragmatismo), a “vida” (o existencialismo).
• O voluntarismo põe a vontade acima da inteligência. O ato da vontade será bom já não em razão do objeto a que ele visa, mas pela sua conformidade a uma lei arbitrária, ou a outra vontade. A vontade já não será boa ou má por referência à verdade. Mons. Lefebvre (foto) contava uma anedota que dá um exemplo convincente dessa tortura espiritual: encontrando, um dia, um alto prelado, apresentou-lhe as razões das suas polêmicas reações públicas, a saber, as heresias toleradas ou até propaladas pelas mais altas autoridades dentro da Igreja. O prelado assim respondeu: “Eu prefiro errar com o Papa a ter razão contra o Papa”. Em outros termos, segundo este raciocínio, valeria mais sacrificar a verdade do que contrariar a vontade da autoridade. O bem, objeto da vontade, seria então superior à verdade e independente dela.
• O pragmatismo põe a verdade a serviço da ação. A verdade é o que é útil no presente, o que é eficaz, o que funciona. Seus representantes mais conhecidos são Friedrich Nietzsche (1844-1900), William James (1842-1910), Edward Le Roy (1870-1954), Maurice Blondel (1861-1949). Citemos, como exemplo, esta declaração de Napoleão I: “Acabei com a Guerra da Vendeia fazendo-me católico; estabeleci-me no Egito fazendo-me muçulmano, ganhei os espíritos na Itália fazendo-me ultramontano. Se governasse um povo de judeus, reconstruiria o templo de Salomão”.
• O existencialismo põe a vida (o que é vivido) acima da verdade objetiva. O “vivido” seria a expressão livre e espontânea do eu, o desenvolvimento “vital” da pessoa. Vejamos dois exemplos famosos:
Dostoievsky disse: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Aí está o ponto de partida do existencialismo. Se a existência precede a essência, não se poderá jamais explicar por referência a uma natureza humana imóvel; dito de outra maneira, não há determinismo, o homem é livre, é libertado, suprime-se Deus, qualquer um pode inventar seus próprios valores. E, aliás, dizer que inventamos os valores não significa outra coisa senão isto: a vida não tem sentido a priori. Cabe a você dar-lhe um sentido, e o valor nada mais é do que esse sentido que você escolher.
Dostoievsky, em "O Espírito Subterrâneo", põe estas palavras na boca de um dos seus heróis:
Essas citações bastam para verificarmos a origem comum dessas três teorias. Trata-se de uma inversão do verdadeiro e do bem. Ou seja, um ato de vontade, uma ação, uma vida não são boas com referência à verdade objetiva, e, por ela, ao real, mas encontram em si mesmas, no seu dinamismo próprio, a sua legitimidade. Tornam-se valores absolutos.
Para responder a isso, bastará reproduzir, quase palavra por palavra, o seguinte texto de Santo Tomás. O verdadeiro é primeiro com relação ao bem de maneira absoluta. Por duas razões:
1) Pelo fato de que o verdadeiro está mais próximo ao ser, que é anterior ao bem. Certamente, o verdadeiro observa o próprio ser, absoluta e imediatamente. A inteligência alcança diretamente o ser tal qual ele é. Ao passo que o ser é dito "bem" de acordo com certa perfeição. É, por certo, enquanto tem certa perfeição que o ser é desejável e, portanto, é ‘bom’.
2) Isso decorre do fato de que, de acordo com sua natureza, o conhecimento precede o apetite. É famoso o adágio “nihil volitum nisi praecognitum”, nada pode ser desejado se não é antes conhecido. Ora, como a verdade se relaciona ao conhecimento, e o bem ao apetite, o verdadeiro é primeiro com relação ao bem. Ainda que seja a mesma realidade concreta que é, que é verdadeira, e que é boa.
Vejamos como responder às correntes do pensamento expostas acima. A verdade precede o bem, e isto quer dizer que, assim como a inteligência não está no bem senão quando se submete ao real, assim também a vontade não é boa se não se adapta à verdade.
É na medida em que o homem se deixa conduzir pela verdade, isto é, pelo conhecimento do real tal qual ele é, que pode alcançar o bem, e daí uma verdadeira felicidade.
Ao contrário, pôr o bem fora do verdadeiro é emancipar-se de toda regra objetiva, é deixar o capricho correr solto; é, por isto mesmo, proibir-se da felicidade autêntica.
A sociedade contemporânea dá-nos de tudo isso abundantes confirmações, que se encontram, entre outras:
• Na multiplicação dos casos de câncer devido ao desprezo às mais elementares regras da higiene corporal (abuso do álcool, do fumo, contraceptivos);
• Nas terríveis epidemias, como a da AIDS;
• No crescimento assustador da delinquência e dos traumas psicológicos, frutos dos falsos princípios da educação e do divórcio;
• Nas falências sucessivas dos regimes socialistas;
• Na morte dos perseguidores da fé, que sobrevivem, frequentemente, com doenças repugnantes ou até na loucura.
Não há verdadeira felicidade que não seja uma felicidade verdadeira, isto é, uma felicidade fundada na verdade, nascida dela como o fruto nasce da flor.
Conclusão
A vontade é, de fato, o princípio imediato de toda ação humana. Um ato é dito propriamente “humano” quando é voluntário. Ora, o objeto da vontade é o bem. A vontade é um “apetite”, um desejo de bem que o faz ser procurado quando dele se é privado, e que faz repousar quando já está este possuído.
A questão das relações entre o verdadeiro e o bem põe em causa toda a nossa conduta. Se o verdadeiro tem precedência sobre o bem, então toda a vida humana deverá deixar-se dirigir pela verdade.
Dar, ao contrário, prioridade ao bem sobre o verdadeiro é dar o papel determinante à vontade. É ela que será a regra primeira da qualidade dos nossos atos. Será suficiente ter querido autenticamente uma coisa para que ela seja boa.
Vê-se, facilmente, o abismo que separa esses dois pontos de vista, e as consequências desastrosas que traria um erro quanto a essa questão. Isto aparece mais claramente, ainda, quando se consideram as três teses mais aceitas na atualidade a esse respeito. Elas abordam, respectivamente, por três aspectos diferentes, o problema seguinte: a vontade em si mesma (o voluntarismo), a ação (o pragmatismo), a “vida” (o existencialismo).
• O voluntarismo põe a vontade acima da inteligência. O ato da vontade será bom já não em razão do objeto a que ele visa, mas pela sua conformidade a uma lei arbitrária, ou a outra vontade. A vontade já não será boa ou má por referência à verdade. Mons. Lefebvre (foto) contava uma anedota que dá um exemplo convincente dessa tortura espiritual: encontrando, um dia, um alto prelado, apresentou-lhe as razões das suas polêmicas reações públicas, a saber, as heresias toleradas ou até propaladas pelas mais altas autoridades dentro da Igreja. O prelado assim respondeu: “Eu prefiro errar com o Papa a ter razão contra o Papa”. Em outros termos, segundo este raciocínio, valeria mais sacrificar a verdade do que contrariar a vontade da autoridade. O bem, objeto da vontade, seria então superior à verdade e independente dela.
• O pragmatismo põe a verdade a serviço da ação. A verdade é o que é útil no presente, o que é eficaz, o que funciona. Seus representantes mais conhecidos são Friedrich Nietzsche (1844-1900), William James (1842-1910), Edward Le Roy (1870-1954), Maurice Blondel (1861-1949). Citemos, como exemplo, esta declaração de Napoleão I: “Acabei com a Guerra da Vendeia fazendo-me católico; estabeleci-me no Egito fazendo-me muçulmano, ganhei os espíritos na Itália fazendo-me ultramontano. Se governasse um povo de judeus, reconstruiria o templo de Salomão”.
• O existencialismo põe a vida (o que é vivido) acima da verdade objetiva. O “vivido” seria a expressão livre e espontânea do eu, o desenvolvimento “vital” da pessoa. Vejamos dois exemplos famosos:
Fiodor Dostoievsky |
Dostoievsky, em "O Espírito Subterrâneo", põe estas palavras na boca de um dos seus heróis:
“Meu Deus, que me importa a natureza? Que me importa a aritmética se, por uma razão ou por outra, não me agrada que dois vezes dois são igual a quatro? [...] O que convém ao homem é a independência, não importa a que preço [...]. Aceito que dois vezes dois são igual a quatro é uma coisa bonita, mas, no fundo, dois vezes dois são igual a cinco não é tão mal.”
Essas citações bastam para verificarmos a origem comum dessas três teorias. Trata-se de uma inversão do verdadeiro e do bem. Ou seja, um ato de vontade, uma ação, uma vida não são boas com referência à verdade objetiva, e, por ela, ao real, mas encontram em si mesmas, no seu dinamismo próprio, a sua legitimidade. Tornam-se valores absolutos.
Para responder a isso, bastará reproduzir, quase palavra por palavra, o seguinte texto de Santo Tomás. O verdadeiro é primeiro com relação ao bem de maneira absoluta. Por duas razões:
1) Pelo fato de que o verdadeiro está mais próximo ao ser, que é anterior ao bem. Certamente, o verdadeiro observa o próprio ser, absoluta e imediatamente. A inteligência alcança diretamente o ser tal qual ele é. Ao passo que o ser é dito "bem" de acordo com certa perfeição. É, por certo, enquanto tem certa perfeição que o ser é desejável e, portanto, é ‘bom’.
2) Isso decorre do fato de que, de acordo com sua natureza, o conhecimento precede o apetite. É famoso o adágio “nihil volitum nisi praecognitum”, nada pode ser desejado se não é antes conhecido. Ora, como a verdade se relaciona ao conhecimento, e o bem ao apetite, o verdadeiro é primeiro com relação ao bem. Ainda que seja a mesma realidade concreta que é, que é verdadeira, e que é boa.
Vejamos como responder às correntes do pensamento expostas acima. A verdade precede o bem, e isto quer dizer que, assim como a inteligência não está no bem senão quando se submete ao real, assim também a vontade não é boa se não se adapta à verdade.
É na medida em que o homem se deixa conduzir pela verdade, isto é, pelo conhecimento do real tal qual ele é, que pode alcançar o bem, e daí uma verdadeira felicidade.
Ao contrário, pôr o bem fora do verdadeiro é emancipar-se de toda regra objetiva, é deixar o capricho correr solto; é, por isto mesmo, proibir-se da felicidade autêntica.
A sociedade contemporânea dá-nos de tudo isso abundantes confirmações, que se encontram, entre outras:
• Na multiplicação dos casos de câncer devido ao desprezo às mais elementares regras da higiene corporal (abuso do álcool, do fumo, contraceptivos);
• Nas terríveis epidemias, como a da AIDS;
• No crescimento assustador da delinquência e dos traumas psicológicos, frutos dos falsos princípios da educação e do divórcio;
• Nas falências sucessivas dos regimes socialistas;
• Na morte dos perseguidores da fé, que sobrevivem, frequentemente, com doenças repugnantes ou até na loucura.
Não há verdadeira felicidade que não seja uma felicidade verdadeira, isto é, uma felicidade fundada na verdade, nascida dela como o fruto nasce da flor.
Conclusão
O caminho que percorremos, em busca da verdade, fez-nos reencontrar numerosas objeções. Antes de concluir este estudo sumário, gostaríamos de voltar, uma vez mais, a essas objeções, não para apresentá-las novamente nem para discuti-las, mas para tirar delas algumas lições práticas e, dessa maneira, fazê-las servir à verdade.
Santo Tomás, por certo, advertiu-nos no seu Comentário à Metafísica de Aristóteles:
“Aquele que se aprofunda no estudo da verdade é beneficiado de dois modos pelos outros: recebemos ajuda direta daqueles que encontraram a verdade [...]. Os pensadores são ajudados indiretamente por seus antecessores, que com seus erros dão motivos aos outros para descobrir a verdade por meio de uma reflexão mais séria. Convém, em conseqüência, que sejamos reconhecidos a todos aqueles que nos ajudaram a conquistar o bem da verdade.”
Ressaltem-se três lições concernentes ao nosso assunto:
• Para a nossa vida intelectual, a necessidade de uma reeducação;
• Para a nossa vida moral, a lealdade;
• Nas nossas relações com os próximos, o zelo da verdade.
1) Uma reeducação
É fácil constatar que as objeções contra o realismo do conhecimento não repousam apenas nas bibliotecas. Elas penetraram profundamente as almas dos nossos contemporâneos, atingindo neles as iniciativas mais vitais da mente humana. Propagaram-se num formidável contágio. Nem sequer os mais lúcidos, – e talvez mesmo nenhum de nós, – pode dizer-se perfeitamente imune a esse flagelo.
Fomos todos tocados, mais ou menos, pelo mal. Os a priori de Descartes, o subjetivismo de Kant, a sede de independência, todas esses princípios do existencialismo marcaram-nos o espírito, imprimiram em nós um certo comportamento em face do verdadeiro.
A gravidade e a extensão desses erros convidam a cada um de nós à uma obra de reeducação, que não consiste em nos fecharmos num saber gigantesco, mas em buscar a cura do mal intelectual dos nossos tempos.
É preciso que reencontremos a saúde da inteligência; que forjemos em nós um espírito realista, o que não se fará sem muito trabalho, — longo, por vezes penoso, — pela frequência assídua aos bons autores, e por uma forte dose de humildade.
2) A lealdade
As correntes de pensamento que mencionamos nos dois últimos artigos têm isto em comum: a fuga do real.
Na ordem do conhecimento, como em Descartes, ou na ordem do agir humano, como no existencialismo, assistimos a este espetáculo aflitivo: o homem foge da verdade. Pretende retirar do seu íntimo o verdadeiro e o bem. Poder-se-ia aplicar-lhe o que diz o Salmo 35, a respeito do ímpio: “Noluit intelligere ut bene ageret”(2): Eles não querem refletir para agir bem! Simplesmente não querem obedecer a uma regra externa, mesmo que esta regra seja a mais pura verdade dos fatos. Aceita desconhecer a verdade. Aceita a eventualidade de estar em erro, de preferência a curvar-se.
A lealdade a nossas próprias consciências nos convida a tomar a verdade como ao sol da nossa existência. Em face de tal ou qual vício, de tal ou qual hábito maléfico, de tal ou qual conivência com o mal, não fechemos os olhos, como quem não viu. Ao contrário, declaremos guerra, em nós, à ilusão, a fim de estabelecer, na nossa vida, o reino da Verdade. – Que aqui já nos permitimos grafar com inicial maiúscula.
3) O zelo da verdade
Nosso estudo deu-nos, muitas vezes, oportunidade de reencontrar este princípio fundamental: toda inteligência humana é feita para a verdade. A verdade é o bem da inteligência e a fonte dos demais bens. É a luz da estrada para a felicidade.
Ora, uma luz não brilha para si somente, mas clareia tudo à sua volta. Pela sua própria natureza, a luz se expande e busca ultrapassar as fronteiras da noite. Assim fazendo, ela exerce a suprema caridade da verdade. Fornece aos homens a raiz de todos os outros bens, a libertação das cadeias que mantêm pessoas cativas.
A extensão prodigiosa do erro no nosso século não deve, pois, desencorajar-nos, nem nos fazer dobrar sobre nós mesmos. Todas as inteligências são feitas para a verdade, e têm sede de sabê-la. Só ela salvará nosso mundo do naufrágio neste oceano de lama em que está metido.
O estudo da verdade deverá, portanto, dar nascimento a uma atividade generosa, para a glória da Verdade e o serviço dos nossos irmãos.
Uma frase resume essas exortações. São Paulo escreveu aos Tessalonicenses que aqueles que se perdem “perecem porque não abriram seus corações ao amor da Verdade para serem salvos” (2 Ts 2, 10). O Apóstolo das Gentes nos aponta as disposições que devem reinar em nossas almas: a docilidade, a humildade, o amor à Verdade.
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Fonte:
A Verdade: estudo filosófico. DOMINIQUE, Jean. Campo Grande: Ed. Santo Tomás, 2003.
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