** Leia a primeira parte desta série
Sobre a seleção dos Livros Canônicos
Considerando-se esta simples realidade, torna-se evidente a completa impossibilidade de ter existido, entre os Apóstolos e os primeiros cristãos, qualquer concepção doutrinária minimamente semelhante àquilo que viria a se chamar Sola Scriptura (só a Escritura), mais de um milênio e meio depois do Advento de Cristo. Ainda assim, – para escândalo do cristão bem formado, – persiste em nossos tempos a ideia de que seria possível reconhecer a lista dos livros canônicos1 simplesmente pela evidência da sua Inspiração divina. Segundo esta linha de pensamento, de algum modo Deus/Espírito Santo revelaria de modo quase que instantâneo sua "assinatura" a todo indivíduo que simplesmente se pusesse a folhear as Escrituras. Seria então a Igreja um fator completamente subjetivo e, mais do que isso, desnecessário para a escolha dos textos que compõem o Livro Sagrado dos cristãos.
"Cada cabeça uma sentença", lembra um adágio popular de origem antiquíssima, e repleto de sabedoria. Ora, certa afirmativa ou narrativa que alguém poderia jurar que tem origem divina seria facilmente considerado como mero disparate por outra pessoa. Eis o motivo pelo qual a Igreja una, instituída por Cristo, – que por isso mesmo tem um só SENHOR e professa uma só Fé (Ef 4,5), – foi sempre sumamente necessária: "Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edifico minha Igreja" (Mt 16,18); "Pedro, apascenta minhas ovelhas" (Jo 21,15-17); "Pedro, confirma os teus irmãos" (Lc 22, 31-32), diz o Senhor ao primeiro Papa, e o próprio diz de si mesmo, no primeiro Concílio da Igreja: "Irmãos, sabeis que há muito tempo o Senhor me escolheu dentre vós, para que da minha boca os pagãos ouvissem a Palavra do Evangelho" (At 15,7).
É de fato coisa muito simples demonstrar, portanto, que não é possível definir a divina Inspiração de um livro mediante a mera análise particular, como também não se poderia defini-la mesmo que o próprio livro se declarasse como tal. De fato, a fixação do cânon não poderia estar sujeita às opiniões pessoais, nem fundamentadas em quaisquer métodos de verificação por sua própria natureza subjetivos e duvidosos.
Por fim, resta salientar que também não seria possível identificar a totalidade dos livros bíblicos exclusivamente por meio do estudo dos livros desde sempre consensualmente canônicos. Em outras palavras, também não se pode, por meio dos livros protocanônicos, conhecer a lista dos deuterocanônicos4 que compõem tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. Como exemplo, em S. Lucas (24,27.47) e S. João (10,34) aparecem as expressões "Moisés e os Profetas"; "a Lei e os Profetas" e "Lei, Profetas e Salmos", sempre relacionadas ao conceito de Escritura Sagrada. Mas a expressão "Profetas" abrangeria quais livros? Datados da mesma época dos Profetas existe uma grande quantidade de outros livros cuja autoria é atribuída aos antigos Profetas do AT que, no entanto, hoje não são considerados canônicos. Do mesmo modo, existem outros cuja autoria profética ainda é duvidosa e mesmo assim são considerados canônicos por todos os cristãos.
O mesmo se aplica aos Salmos: existe, por exemplo, um escrito denominado Salmo 151, que é considerado canônico apenas pela Igreja Ortodoxa. E o que dizer de livros como Provérbios, Eclesiastes, Ester, Rute, e 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis e Josué? Seriam parte de qual grupo? Lei, Profetas ou Salmos? Ou pertenceriam a um outro grupo cuja menção se não encontra em qualquer livro protocanônico?
Um fato ainda mais impactante, – tanto quanto pouco conhecido, é que a Bíblia faz referência a pelo menos 31 livros que hoje são considerados apócrifos pelos cristãos (HAMMER, 2006). 21 destes livros são do AT, O mesmo acontece com o NT, que menciona o livro "Ascensão de Moisés" (cf. Jd 1,9) e "Livro de Henoc" (cf. Jd 1,14). – Foram perdidas a Epístola de Paulo aos Laodicenses (Cl 4,15-16) e sua Prévia aos Coríntios (1Cor 5,9-10).
Assim, pelas razões já apresentadas e pelo fato de a Bíblia mesma não definir o seu conjunto de livros sagrados, o discernimento do Cânon bíblico necessariamente depende de algo que é exterior aos próprios livros sagrados. A Bíblia não se forma nem se autoriza por si mesma. Sua legitimidade depende de uma autoridade externa e anterior que lhe define. Sempre foi assim na tradição judaico-cristã. Podemos tomar como exemplo o Pentateuco5, que sempre foi considerado canônico pelos judeus, porém não por sua própria autoridade, mas porque tinham origem na Tradição judaica e em Moisés, que tinha a autoridade de seu legítimo Magistério (cf. Ex 18,13-14; Mt 19,7-8). Da mesma maneira se dá com os escritos dos Profetas, livros cuja autoridade igualmente não partia de si mesmos, do que afirmam ou deixam de afirmar, mas no anúncio anterior dos mesmos Profetas (como na Tradição cristã), ou porque sua autoria é atribuída a homens legitimamente autorizados por Deus (Magistério).
Está claro que a atribuição de Autoridade divina a um livro, – a definição de sua canonicidade, – sempre dependeu da autoridade de algo exterior/anterior ao livro em si: a Tradição que lhe deu origem e o Magistério divinamente estabelecido, reconhecido como legítimo guardião e difusor das verdades que o livro atesta.
Esta antiga e divina relação não se aplica somente ao Cânon bíblico. Observe-se que alguns dos livros bíblicos não trazem o nome do seu autor (o Pentateuco e os 4 Evangelhos, por exemplo). A atribuição de sua autoria dependeu da Tradição e do Magistério da Igreja divinamente instituída.
** Leia a continuação: o texto massorético e a Septuaginta
1. Aqueles que, segundo a Igreja divinamente autorizada, compõem a Biblioteca sagrada dos cristãos, por terem sido escritos sob Inspiração divina e integrarem o conjunto de verdades que formam a Verdade Revelada aos cristãos, isto é, a Bíblia Sagrada
2. Mary Baker Eddy foi a criadora da seita 'Ciência Cristã' em 1866. Autora do livro-texto deste movimento religioso, intitulado 'Ciência e Saúde com a Chave das Escrituras', fundou 'A Primeira Igreja de Cristo, Cientista', em Boston, EUA.
3. Ellen Gold White foi uma cristã americana, proclamada 'profetisa' e escritora cujo ministério foi fundamental para fundação do movimento Adventista sabatista, que mais tarde veio a formar a 'Igreja Adventista do Sétimo Dia'.
4. Protocanônicos (proto, do grego πρώτο, significa 'primeiro') são os livros que tiveram sua canonicidade reconhecida pela Igreja em primeiro lugar; deuterocanônicos (deutero, também do grego Δευτεριο, significa 'posterior' ou 'segundo'). Deuterocanônicos, portanto, são os livros que tiveram sua canonicidade reconhecida posteriormente.
Existem livros proto e deuterocanônicos tanto no AT quanto no NT. A lista dos livros deuterocanônicos do AT é: Tobias; Judite; Sabedoria; Eclesiástico; Baruc; 1 e 2 Macabeus, além de acréscimos do Ester (10,4 a 16,24) e Daniel (3,24-90; 13; 14). A lista dos livros deuterocanônicos do NT é: 2Pedro; 2João; 3João; Tiago; Judas; Hebreus e Apocalipse.
• HAMMER, Charles. 31 Livros perdidos citados pela Bíblia, artigo de Traditional Catholic Apologetics, Trad. de Carlos Martins Nabeto, 2006. A lista dos Livros perdidos encontra-se disponível neste website, em:
• PÉREZ, Félix Garrondo. Itinerário bíblico para ler e entender a Sagrada Escritura, São Paulo: Loyola, 1998
www.ofielcatolico.com.br
A paz do Senhor!
ResponderExcluirExcelente esta série, apesar de ser apenas o segundo capitulo, já me ensinou bastante.
Gostei do post porque esta tirando muitas dúvidas.
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