Introdução à Bíblia ou às Sagradas Escrituras - estudo IV

O Cânon de Jâmnia

NO TEMPO DO IMPERADOR Romano Nero desencadeou-se a primeira revolta aberta dos judeus da Palestina contra Roma (66-70). Tito, na primavera de 70, sitiou Jerusalém: a cidade inteira foi saqueada e arrasada; o Templo foi destruído no dia 10 do mês de agosto do mesmo ano.

Os fariseus de Jerusalém1 se transferiram para a cidade de Jâmnia, onde formaram próspera escola rabínica. Aproximadamente no ano 90, este grupo de rabinos definiu uma lista dos livros que deveriam ser considerados sagrados pelos Judeus. O Cânon de Jâmnia (como ficou conhecida esta lista) deu origem à atual Bíblia Hebraica. Foi o Cânon de Jâmnia que primeiro excluiu os sete livros ditos deuterocanónicos (do AT) e os acréscimos de Daniel e Ester.


No alto, detalhe do Arco do Triunfo de Roma, que mostra os espólios de Jerusalém sendo levados para Roma, entre os quais o menorá do Templo. Acima, pedras do Muro das Lamentações do Monte do Templo atiradas às ruas por soldados romanos em 70 dC.

Alguns afirmam que o Cânon de Jâmnia foi a confirmação de um cânon sagrado anterior e definido pela tradição judaica. Segundo essa tese, o fato de Jesus e os Apóstolos se referirem às Escrituras sagradas disponíveis em seu tempo de forma geral ('Escrituras'), mostraria que eles tinham em mente uma quantidade precisa de livros que estavam incluídos sob aqueles títulos gerais. Apresentam-se como evidência desta teoria:

1) O registro do Evangelista Lucas ao diálogo entre Jesus e os discípulos na estrada de Emaús: “E começando por Moisés e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras” (Lc 24,27). – A expressão “todas as Escrituras” demonstraria que já no tempo de Cristo havia uma lista de livros canônicos previamente fixada.

2) João 5,39, quando Jesus manda os fariseus, que eram então os legítimos intérpretes da Lei (cf. Mt 23,1), verificarem que nEle se cumpriram todas as profecias messiânicas. Jesus, ao utilizar a expressão “Escrituras”, estaria se referindo a um conjunto de livros conhecido tanto por Ele quanto pelos fariseus.

3) O uso das expressões “Moisés e os Profetas” e “A Lei e os Profetas” (cf. Lc 24,27), que indicariam a estrutura de como este suposto cânon judeu estaria organizado, sendo que na seção “Lei”, estariam contidos também os Salmos (cf. João 10,34). Assim, pretende-se defender a existência de um cânon bíblico antigo e organizado em uma tríplice estrutura: a Lei, os Profetas e os Salmos. Costuma-se fazer referência a Lucas 24,44, onde Jesus, ao aparecer aos Apóstolos e discípulos, lhes diz: “Era necessário que se cumprisse tudo o que de Mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”.

Ocorre que os argumentos apresentados acima, na realidade, são bastante frágeis, pois em todas as referências apresentadas, Jesus está demonstrando que nEle se cumprem as profecias messiânicas. Pois bem, estas profecias estão justamente nos livros de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Desta forma, dentro do contexto próprio, é mais lógico e aceitável supor que Jesus esteja se referindo a esta tríplice estrutura simplesmente porque é nela que se encontram as profecias messiânicas, do que supor que esteja fazendo referência a um cânon sagrado existente em seu tempo.

Há ainda quem apresente como argumento favorável ao suposto cânon judaico os testemunhos históricos de Flávio Josefo e Áquila (o qual criou uma nova versão grega das Escrituras hebraicas que leva o seu nome).

Ocorre, todavia, que o testemunho de Áquila é reconhecidamente posterior ao Cânon de Jâmnia. Assim, também não pode ser aceito como prova da teoria do cânon antigo. Por outro lado, reproduziremos abaixo o texto de Josefo, conforme consta em sua obra “Contra Apion”:

É, pois, natural, ou melhor dizendo, necessário, que não exista entre nós uma multiplicidade de livros em contradição entre si, senão somente vinte e dois2 que contém os registros de toda a história e que com toda justiça são dignos de confiança. Deles, existem cinco de Moisés, os quais contêm as leis e a tradição desde a criação do homem até a morte de Moisés. Compreende, mais ou menos, um período de três mil anos. Desde a morte de Moisés até Artaxerxes2, sucessor de Xerxes3 como rei dos persas, aos profetas posteriores a Moisés foram deixados os feitos do seu tempo em treze livros; os quatro restantes contém hinos a Deus e conselhos morais aos homens. Também desde Artaxerxes [tempo do Profeta Esdras] até nossos dias cada acontecimento tem sido registrado; embora estes não sejam dignos da mesma confiança dos anteriores, porque não havia uma sucessão rigorosa de profetas. Os feitos provam com claridade como nós nos acercamos das nossas próprias escrituras: havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas.
(JOSEFO, vs. 38-42, 2006, p. 21-22)

Não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou posterior ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do cânon e seu testemunho. É comumente aceito que “Contra Apion” foi concluída pelo ano 94, enquanto que o Cânon de Jâmnia é normalmente referido como sendo do ano 90. Entretanto, nenhuma destas datas é conclusiva; sabemos apenas que ambos são dos últimos anos do séc I dC. Com efeito, esta incerteza compromete por completo o testemunho de Josefo, pois não se sabe com certeza se o mesmo foi influenciado ou não pelo Cânon de Jâmnia. De fato, há indícios de que sim.

Josefo era fariseu e os rabinos de Jâmnia também. Assim, é provável que ele esteja simplesmente defendendo a posição de sua facção religiosa. Tanto é assim que o prólogo da tradução grega do Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), escrito por volta de 130 aC., portanto anterior ao testemunho de Josefo, parece contradizê-lo:

Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes (...) Foi assim que, após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos por nossos antepassados...

Enquanto o testemunho de Josefo procura restringir o Cânon Sagrado ao tempo de Esdras, porque, segundo ele, "depois deste não houve uma sucessão precisa de profetas", o Eclesiástico parece ser mais amplo e fiel à História ao afirmar que pelos escritos dos profetas recebemos inúmeros ensinamentos importantes.

O testemunho do Eclesiástico refere-se a livros posteriores ao tempo dos Profetas. Vejamos o que especialista Leonard Rost, protestante, tem a dizer a esse respeito:

Vê-se, pelo prólogo de Sirac [Eclesiástico ou Sabedoria de Sirac], que, além dos escritos assumidos no Cânon hebraico, traduziram-se também outros, que parecem ter gozado de bastante estima como obras religiosas de edificação, em círculos mais ou menos amplos, até o final do século I dC.
(ROST, 1980, p.19)


Busto de autoria anônima representaria Flavio Josefo

Há ainda em Josefo um trecho bem polêmico, o qual afirma: “Havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas [nas Escrituras]”. Alguns entendem que, neste trecho, Josefo confirma que os livros escritos depois do tempo de Esdras não estavam dispostos num mesmo volume com os livros que foram escritos antes deste período (protocanônicos), pois isto configuraria um acréscimo nos primeiros. Ora, ele está dizendo que nada foi alterado nos textos presentes nestes livros, nenhuma sílaba a mais, nenhuma a menos. Josefo não está se referindo à adição ou retirada de livros a um conjunto preestabelecido de outros livros.

Vemos como a tese do Cânon pré-existente apresenta sérios problemas. Primeiro, se este suposto cânon correspondia ao Cânon de Jâmnia, por que era comumente usada a Septuaginta com um catálogo bem maior, conforme comprovado pelo testemunho do NT e as descobertas do Mar Morto e Massada (como vimos anteriormente aqui)? Segundo, se este suposto cânon correspondesse aos livros da Septuaginta, logo não seria permitida a definição de qualquer outro cânon bíblico; então, por que foi estabelecido o Cânon de Jâmnia? Terceiro, os judeus alexandrinos e etíopes recusaram o Cânon de Jâmnia e até hoje guardam como sagrados os livros da Septuaginta. Se realmente este suposto cânon bíblico existisse, não haveriam disputas entre os judeus sobre este tema; todos adotariam o mesmo conjunto de livros sagrados definidos pela Tradição Judaica.

Fílon de Alexandria, historiador e filósofo judeu, viveu entre os anos de 2o a 50 d.C. Em sua obra “Exposições sobre a Lei”, onde faz comentários sobre a doutrina da Torahoo, as referências ao Pentateuco são todas da Septuaginta, que possuía os livros deuterocanônicos e as partes deuterocanónicas de Daniel e Ester, não aceitas posteriormente pelos Judeus de Jâmnia. Um dos especialistas sobre a vida de Fílon de Alexandria, o Prof. Ritter, quanto ao uso da Septuaginta pelo Filósofo, escreve:

A princípio o texto que ele [Fílon] comenta é o da tradução grega dos Setenta; algumas diferenças que se assinalou com razão entre seu texto e aquele que possuímos atualmente dos Setenta se explicam de uma maneira satisfatória não pela leitura do texto hebraico, mas pelo fato de que nossa recensão é de origem posterior à da que ele usava.
(RITTER, 1879)

Antes que alguém objete afirmando que a Tradição dos judeus palestinenses era diferente da Tradição dos judeus alexandrinos, devemos lembrá-los que ambos os grupos manuseavam a versão grega da Septuaginta; portanto, possuíam a mesma Tradição judaica. A correspondência entre a Tradição judaica alexandrina e a palestina é atestada pelo especialista Wolfson:

O judaísmo alexandrino, no tempo de Fílon, era do mesmo tronco do judaísmo farisaico, que então prosperava na Palestina, ambos tendo brotado daquele judaísmo macabeu [c. 165 aC.] que fora moldado pelas atividades dos escribas.
(WOLFSON, 1982)

Ainda segundo o estudioso Werner Jaeger:

O grego era falado nas sinagogas por todo o Mediterrâneo, como se torna evidente pelo exemplo de Fílon de Alexandria, que não escreveu o seu grego literário para um público de gentios, mas para os seus compatriotas judeus altamente educados. (JAEGER, 1991)

Fílon de Alexandria falava grego, como era costume em seu tempo, e utilizava as escrituras hebraicas através da Septuaginta. Isto era muito comum até entre os judeus da Palestina. Josefo defende os judeus de Alexandria de diversas calúnias, mostrando haver identidade entre eles e os judeus da Palestina (JOSEFO, 2006, p.96-102).

Se o cânon das Escrituras Hebraicas já estivesse fechado no tempo de Jesus, todos os judeus hoje (palestinos ou alexandrinos) observariam o mesmo conjunto de livros sagrados, e os fariseus de Jâmnia não precisariam se preocupar com isto no final do séc. I d.C.

Interessante é a constatação do estudioso Fedeli Pasquero:

Na realidade, seguramente os judeus alexandrino no séc. I d.C. reconheciam como sagrados os livros deuterocanônicos [do AT]; não obstante a isso, eles estavam em plena comunhão de fé com os judeus da Palestina, coisa que não teria sido possível se houvesse divergências em relação aos livros sagrados. Com efeito, os doutores hebreus faziam uso de pelo menos alguns dos livros deuterocanônicos [do AT]; de modo especial, encontramos frequentemente citados Baruc, o Sirácida [Sabedoria de Siarc ou Eclesiástico, Tobias.
(PASQUERO, 1986)

Sobre a possibilidade de um cânon de Escrituras hebraicas pré-definido, assim se manifesta Rost:

Não havia um cânon oficial, ou, como diz a Mixná Yaddyim IV 6, não havia Ktby qds’, Escrituras sagradas, como grupo fechado. Mesmo na época em que se fixou a Mixná, por volta de 100 d.C., reinava ampla discussão entre os eruditos a respeito de saber se o Cântico dos Cântico ou o Eclesiastes de Salomão (Qohelet) faziam ou não parte do grupo, discussão esta que foi aplainada por uma sentença arbitral em favor da inclusão destes livros entre os escritos sagrados (Mixná Yadvim III 5 cd). As descobertas dos manuscritos do Mar Morto, provenientes do período que vai de 150 antes de Cristo até 70 da era cristã, em particular os que foram encontrados nas cavernas de Qumran, mostram-nos claramente que naquela época ainda não havia uma distinção rigorosa entre Escritura sagrada e menos sagrada [...] Mas o fato de um fragmento bastante extenso do Sirac hebraico, copiado em escrita esticométrica, vale dizer, executado com capricho e dispêndio de tempo, constituir um dos poucos restos de manuscritos descobertos em Masada, é prova da estiva que este escrito desfrutava no círculo dos zelotes, no correr do século I d.C.
(ROST, 1980, p.13-14)

Durante a formação do Cânon Hebreu, alguns rabinos se opuseram também à inclusão do livro de Ester, conforme atesta o Prof. Samuel Sandmel5:

O livro de Ester, segundo os antigos rabinos, é o livro mais novo da Escritura. Houve, entre estes rabinos, quem não quisesse que elefosse incluído na Escritura.
(BÍBLIA, 1974, Introduções aos Livros Históricos, verb. Ester, XXIII)

Ainda conforme Sandmel, a tradição rabínica quase excluiu do Cânon das Escrituras Hebraicas, o livro do Profeta Ezequiel:

O livro de Ezequiel foi julgado desapropriado para o cânon porque regulações dos capítulos 40 – 48 parecem contradizer regulações similares do Pentateuco. Como o sábio rabínico Hananias ben Ezequias foi capaz de resolver estas contradições com uma apurada interpretação, o livro salvou-se de ser abandonado juntamente com outros livros que não podiam circular publicamente.
(Ibid., Introduções.Aos Livros Proféticos, XXIII)

Além destes, também foram inicialmente contestados pelos rabinos o Livro de Jó (Ibid., XVII), Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes (Ibid., XXXI), concordando assim com o parecer de Rost.

Tudo isto mostra que realmente houve em Jâmnia um acordo entre os fariseus sobre os livros que deveriam ser considerados canônicos pelos judeus. Note o leitor que alguns livros do AT considerados canônicos por todos os cristãos quase ficaram fora do Cânon Hebreu; livros estes que foram amplamente usados pelos antigos judeus. E se tivessem sido excluídos do Cânon Hebreu, isto significaria que jamais foram considerados canônicos antes? E os livros que os fariseus rejeitaram, será mesmo que não eram canônicos?

Mas ainda resta a pergunta: por que os rabinos da palestina adotaram um cânon bíblico mais restrito que o conjunto de livros da Septuaginta, se este era amplamente utilizada pelos judeus, tanto alexandrinos quanto palestinenses?



Objetivos protecionistas

Tudo indica que a definição do Cânon de Jâmnia deveu-se a razões protecionistas. Goodnough afirma o seguinte: “Judeus que tinham sido mais helenizados tornaram-se cristãos, como foi dito, enquanto que o restante retornou ao judaísmo normativo do qual se separaram, quando muito, apenas superficialmente” (GOODENOUGH, 1988).

Fatos como a destruição do Tempo de Jerusalém em 70 d.C., a Septuaginta utilizada amplamente pelos Judeus (tanto na Palestina com em Alexandria), poucos judeus com conhecimento do hebraico, o grego comumente utilizado na vida religiosa dos judeus, o aparecimento das primeiras Escrituras cristãs, as conversões de judeus ao cristianismo e etc; todo este conjunto de eventos levou os judeus da Palestina a se protegerem da extinção total de sua cultura e religião.

Como isso poderia ser feito, sem que fosse necessário restaurar o hebraico na vida comum e religiosa dos judeus, resgatar a identidade judaica e estabelecer políticas que impedissem o contato com as Escrituras cristãs? Não é no mínimo curioso que, no final do primeiro século da Era cristã, os líderes judeus da Palestina se reúnam para definir um conjunto de livros como sagrados, sendo que todos estes tenham sido escritos em hebraico e no território de Israel? Não são estes critérios nacionalistas demais, já que o povo judeu viveu tanto tempo em terra estrangeira, e fora de casa produziu tantos escritos, que também constavam em uma versão bíblica comumente usada por todos os judeus, inclusive na Palestina?

É claro que o restabelecimento do hebraico na vida religiosa dos judeus não poderia se dar de uma hora para outra, mas medidas de curto prazo foram tomadas para dificultar a pregação da mensagem cristã junto aos judeus. Novas versões gregas das sagradas escrituras judaicas foram produzidas, nas quais as mais conhecidas são as de Áquila, Símaco e Teodocião. A passagem de Isaías 7,14, que comentamos no estudo anterior, em todas estas versões traz a palavra grega “parthenos” que significa “virgem”. Na nova versão, esta foi trocada por “meanis”, que significa “jovem”. Por que esta alteração? Os cristãos usavam Isaías 7,14 para provar que o Messias viria ao mundo através de um nascimento virginal, o que atestaria sua Origem divina; a alteração posterior feita pelos judeus propiciaria aos incrédulos entenderem a profecia de forma totalmente diferente.

Esta atitude dos judeus palestinenses por causa do Evangelho é confirmada por um reconhecido estudioso judeu, o Prof. Aage Bentzen: “Contra a Igreja cristã, os judeus sustentavam que Isaías 7,14 não fala de uma virgem’ (parthenos), mas de uma mulher jovem’ (meanis). Os cristãos respondiam acertadamente que a tradução parthenos provém de tradutores judeus” (BENTZEN, 1968).

Os judeus da palestina do I séc. dC estabeleceram fundamentos que permanecem até hoje. Basta observar o protecionismo vigente nas atuais comunidades judaicas. A própria palavra hebraica “almah” hoje é usada pelos judeus não com o significado de “virgem”, mas como de “jovem moça” ou “senhorita”. Pelo fato de nunca ter havido disputas doutrinárias entre judeus alexandrinos e palestinos, antes do Cânon de Jâmnia, a existência de testemunhos anteriores a Josefo (prólogo do Eclesiástico e Fílon de Alexandria), que atestam o uso de um conjunto de livros canônicos mais amplo do que àquele definido em Jâmnia (evidências estas corroboradas tanto pelas descobertas do Mar Morto e Massada quanto pelo NT), torna-se óbvio quão arbitrária foi a definição do Cânon de Jâmnia.

Atesta ainda Rost que não dispomos de informações para dizer quando esta versão grega deixou de ser usada na comunidade judaica, pois faltam-nos testemunhos em tal sentido. Como quer que seja, por volta do ano 100 dC., segundo o que se lê na Mixná, só os textos escritos em hebraico gozaram normativamente do caráter sagrado e, por conseguinte, só eles podiam ser usados no culto. É impossível saber quando e de que modo esta norma se impôs. “Seja com for, a comunidade cristã de origem grega utilizava a coletânea grega mais extensa dos livros sagrados, tal como encontramos nos unciais6 mais antigos B e A, em vez da coletânea hebraica, fixada através de medidas restritivas” (ROST, 1980, p.20-21).

Alguns cristãos dos primeiros séculos viajaram para a Palestina a fim de verificar qual era a lista dos livros sagrados do AT. Seus testemunhos7 nos mostram que o Cânon de Jâmnia não foi aceito de imediato na Palestina. Tudo isto é mera coincidência ou estratégia deliberada? Que implicações o Cânon de Jâmnia trouxe à Igreja Cristã? O leitor se lembra do testemunho de Josefo a respeito das Escrituras Hebraicas? Neste momento queremos chamar sua atenção para dois pontos importantes deste testemunho. Primeiramente vejamos o seguinte trecho: “De Artaxerxes à nossa época, todos os eventos foram anotados, mas não são considerados dignos de igual crédito ao restante porque não houve uma sucessão precisa de profetas” (grifos nossos). Os livros que foram escritos depois de Artaxerxes (depois do tempo do Profeta Esdras) não são mencionados por Josefo como contrários à Tradição Judaica, apenas diz que “não são considerados dignos de igual crédito ao restante”. Para ele, este conjunto de livros possuía certa dignidade, embora em grau menor que os livros escritos antes do tempo de Esdras. Note o leitor que a distinção que Josefo faz destes livros em relação aos protocanônicos não é doutrinária, mas canônica. Ele não afirma que os livros depois do tempo de Esdras não são canônicos porque continham algo alheio à Doutrina, ele não associa esses livros a conteúdo herético. Já que, para ele, depois do tempo de Esdras “não houve uma sucessão precisa de profetas”, o mesmo entende que não há garantia de que os livros escritos depois deste período tenham sido escritos sob Inspiração divina.

Josefo não tinha plena certeza se a Revelação de Deus havia cessado após o tempo de Esdras, mas nós, cristãos, sabemos que não, ou não acreditaríamos hoje nos livros do NT e nem no Ministério dos Apóstolos. Alguém poderia objetar dizendo que o testemunho de Josefo serve apenas para o AT. O próprio Cristo afirmou que a Antiga Aliança durou até o Ministério de João Batista (cf. Mt 11,13; Lc 16,16).

Enquanto Josefo encerra a Revelação do AT ao tempo do Profeta Esdras, Nosso Senhor afirma que durou até o tempo de João Batista. O cristão deve ficar com o testemunho de Flávio Josefo ou de Nosso Senhor Jesus Cristo? Portanto, as palavras de Jesus anulam o critério de Josefo em determinar quando a Revelação da Antiga Aliança cessou. Fica bem clara a possibilidade de haver livros canônicos, referentes ao AT, posteriores ao tempo do Profeta Esdras. Tendo visto que até meados do séc. I dC., o cânon das Escrituras Hebraicas ainda estava em aberto, a quem pertence a Autoridade para definir tal lista? Aos judeus, que já não eram "povo escolhido" de Deus, ou à Igreja cristã, então herdeira da Nova e Eterna Aliança? Como os cristãos dos primeiros séculos entendiam esta questão? É o que veremos a seguir.

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Notas:
1. Alguns autores identificam a Escola Rabínica em Jâmnia como o antigo Sinédrio (BERARDINO, 2002, verb. Jerusalém, p. 750). Entretanto, há controvérsias entre os especialistas, já que o Sinédrio era predominantemente formado por Saduceus, que neste tempo foram dizimados.
2. Osjudeus organizavam suas Escrituras conforme o número deletras de seu alfabeto.
3. Natradução originalestá Artajerjes (j” nolugar do “x”), o que difere douso comum em outrastraduções. Por motivo de unidade textual mantive conforme ouso comum.
4. Mesma razão da nota anterior.
5. Professor de Bíblia e Literatura Helenística pelo Hebrew Union College, Cincinnati (Ohio): EUA.
6. Manuscritos totalmente em maiúsculas.
7. Examinaremos estes testemunhos em postagem posterior.

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Fontes:
• BERARDINO, Angelo Di. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Trad. Cristina Andrade. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Paulus 2002.
• ROST, Leonard. Introdução aos Livros Apócrifos e Pseudo-epígrafos do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1980.
• RITTER, B. Philo und die Halacha, eine vergleichende Studie unter steter Berücksichtigung des Joseph, Leipzig, 1879.
• WOLFSON, Harry Austrin. Philo: foundations of religous philosophy in Judaism, Christianity and Islam, v.I. Cambridge: Harvard University Press, 1982, p. 56.
• GOODENOUGH, Erwin Ramsdell. Jewish Symbols in the Greco-roman Period (abridged edition), por Jacob Neusner. Princeton: Princeton University Press, 1988, p.9.
• BENTZEN. Aste. Introdução ao Antigo Testamento, v. I. São Paulo: ASTE, 1968, p.92.
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O Jesus do Corão

Por Igor Andrade de Maria, Assoc. S. Próspero

HÁ UM CERTO tempo, enquanto conversava com meu dileto amigo Moisés Lima, – grande especialista no assunto, – sobre a visão islâmica com relação a Nosso Senhor Jesus Cristo, deparei-me com o aterrorizante óbvio: cristianismo e islamismo não são a mesma religião. Não são religiões tão próximas assim. Especificamente quanto a visão sobre o Cristo há muitas diferenças que, se não forem distinguidas (nestes tempos em que muito se fala em igualdade ou, pelo menos igual dignidade de todas as religiões) confundirão o Povo de Deus, que não mais saberá diferenciar cristianismo de paganismo.




A grande maioria da nossa população não se dá conta, mas há um forte e gradativo processo de islamização do Brasil em pleno curso, inclusive com extremistas utilizando nosso país como base para operações internacionais e recrutando militantes para ações terroristas, como foi denunciado pela revista Veja há pouco tempo. Entre as táticas de arrebanhamento está a disseminação de mensagens como "Islam é paz"...

Começo dizendo que sim, sou a favor do diálogo inter-religioso. Creio, sobretudo, que os muçulmanos precisam de conversão; conversão essa que não se dará simplesmente lembrando-os de que não adoram o Deus verdadeiro, mas apresentando-os ao Deus Verdadeiro. Não há diálogo sem que as duas partes conheçam a si mesmas: antes de nós, cristãos, simplesmente nos curvarmos às doutrinas corânicas, devemos conhecermo-nos a nós mesmos, além de sermos capazes de não confundir certos pontos “comuns” entre nós e o outro (que também, é necessário lembrar, é participante na comunidade de entes racionais e dotados de dignidade).

Comecemos, pois, falando da diferente visão que maometanos têm acerca de Nosso Senhor. No Corão, Jesus é visto apenas como um profeta que tinha uma missão específica para um determinado povo. Essa missão não foi cumprida em sua totalidade porque seus seguidores distorceram sua mensagem, de modo especial o apóstolo Paulo de Tarso, acusado por eles de ser o maior detrator da mensagem de Cristo.

Para eles, o Cristo não ressuscitou (por conseguinte não salvou ninguém); "Alá" só teria feito as pessoas pensarem que ele ressuscitou. Ele, Jesus, sria só um homem comum e, apesar de nascer da Santíssima Virgem Maria¹ (os maometanos a consideram virgem), quando Muhammad (Maomé) visita os sete céus, o Patriarca Abraão e Moisés estão num lugar bastante privilegiado, mas Nosso Senhor Jesus é posto num dos últimos patamares (porque é considerado um profeta muito inferior a Muhammad).

Eles pregam que Nosso Senhor veio para uma missão angélica, ou seja, os ensinamentos do Cristo são ensinamentos para anjos e impraticáveis por homens (sabe aquele mandamento 'amai-vos uns aos outros'? Então, para os muçulmanos um homem não pode seguir isso! Essa é a chamada 'religião da Paz...'), porque é uma ordem para anjos. Por isso o homem não consegue seguir o ensinamento cristão. Por isso, o Corão é o ensinamento certo, que deve ser seguido para que o homem siga as leis do deus Alá.

O interessante é que Muhammad autentica a Bíblia. Na surata 10,94 ele pede que os muçulmanos procurem os seguidores do Livro, que são os cristãos e os judeus, para testarem o Corão. Porém, a Bíblia do século VI dC. é a mesma que utilizamos hoje (a vulgata de São Jerônimo foi concluída por volta do ano 406 dC.). Ou seja, Muhammad reconhece a autenticidade das Sagradas Escrituras. O problema é que os muçulmanos de hoje afirmam que os cristãos adulteraram as Escrituras Santas, e por isso não dá para seguir o Evangelho como está agora.

Em linhas gerais, é isso que maometanos veem sobre Jesus, O Deus Humanado, “Issam” ou “Isam”, como eles O chamam. Como disse meu grande amigo Moisés Lima, “se os muçulmanos não falassem de Jesus no Corão, seria melhor para a aproximação entre as religiões”.

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¹A Santíssima Virgem Maria, Mãe do Senhor é a única mulher citada no Corão, inclusive sarracenos e muitos cristãos insensatos ou bajuladores utilizam desse fato para tentar aproximar o islamismo da Religião Católica (o que é como misturar água e óleo). O problema é que omitem que a doutrina islâmica prega que a Santa Virgem das Virgens está prometida a Muhammad como uma de suas mulheres(!).
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O significado da renúncia


Gentilmente enviado pelo Revmo. Pe. Geraldo Trindade – sacerdote na Arquidiocese de Mariana

NO DIA 11 DE FEVEREIRO de 2013 (há exatos três anos, portanto), em um consistório convocado para decisão sobre três canonizações, Bento XVI anunciou, diante de um mundo que parou atônito, a sua renúncia ao Trono de Pedro. O que na época criou vários rumos, prós e contra, após esses três anos podem ser compreendidos "a partir do que deve ser compreendido a partir do que deve ser compreendido", ou seja, à luz do Mistério de Cristo, que resplandece na sua Igreja e de variados modos e maneiras conduz por meio do Espírito Santo a barca de Pedro por meio do mar revolto.

Bento XVI sempre foi um acadêmico, um intelectual e um teólogo de grande envergadura. A Sé Petrina lhe tirou a força física e espiritual, dificultando a condução dos trabalhos e do governo da Igreja. Mas isso em nenhum momento pode ser encarado sem a dimensão humana e divina do ato, porque o ato humano foi redimensionado por meio da oração ao Mistério de amor, humildade e desapego que deve caracterizar a vida do cristão. Assim, escolheu no recanto de um mosteiro passar os últimos dias de sua vida como sinal de que nas suas preces continuará a sua missão evangelizadora e de amor à Igreja.

O gesto da renúncia de Bento mostrou claramente que a Igreja, barca de Pedro, não pertence ao papa, mas sim ao seu Senhor, Cristo Jesus. Com seus gestos singelos e firmes, Bento XVI exerceu com maestria seu trabalho apostólico e no último gesto do seu pontificado mostrou a importância do desapego às coisas terrenas. No seu último Ângelus falou de forma alentadora: “Não abandono a Igreja, continuarei a servi-la com a mesma dedicação e amor”. E isso tem feito com generosidade e discrição!

Além do legado espiritual e do seu gesto, o Papa emérito exerceu seu magistério pontifício com frutuosidade. Deixou-nos três encíclicas: Deus caritas est (Deus é amor), Spes salvi (Salvo pela Esperança) e Caritas in veritate (Caridade em Verdade), além de importantes livros de sua autoria, como a série “Jesus de Nazaré”, iniciada quando ainda era Cardeal. Bento XVI soube dar continuidade à “Primavera da Igreja” à qual o Concílio Vaticano II exortou. E, por fim, deixou o “Ano da Fé” e a proposta de uma nova evangelização. Lutou na defesa da vida e da dignidade humana buscando expandir a voz do antecessor, São João Paulo II. Apresentou reflexões mostrando a dignidade de filhos de Deus além da reafirmação dos valores morais cristãos, pelo firme não à “ditadura do relativismo” e constante diálogo com as demais religiões.

A renúncia de Bento XVI trouxe à Igreja o nosso Francisco. A certeza de continuidade é própria da nossa fé. O apóstolo Paulo vem nos lembrar: “Um é o que planta, outro o que rega e outros os que colherão os frutos” (cf.1Cor 3,6-9). O Papa Bento XVI plantou uma semente de esperança com a sua força de fé e compromisso com o Senhor Jesus, e juntos devemos regar a mesma semente a fim de que produza frutos para a honra de Cristo.

Devemos ver a história da Igreja com confiança em Deus e, acima de tudo, fé. Sabendo que são verdadeiras as palavras de Jesus sobre o Mistério que é a Igreja, que brota do Seu coração aberto na Cruz, "as portas do inferno não prevalecerão!" (Mt 16, 18); palavras estas que permanecem inabaláveis e verdadeiras através dos séculos!
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Concílio de Trento, Sessão II: Decreto sobre as regras de vida e outras atitudes que devem ser observadas no Concílio

Catedral de S. Vigilio, Trento, Itália (imagem atual)

O SACROSSANTO CONCÍLIO Tridentino, congregado legitimamente no Espírito Santo e presidido pelos mesmos três Legados da Sé Apostólica, reconhecendo, como o bem aventurado Apóstolo São Tiago, que toda dádiva excelente e todo dom perfeito vem do Céu e desce do Pai das Luzes, que concede com abundância a sabedoria a todos os que a pedirem, sem se incomodar com sua ignorância, e sabendo também que o princípio da sabedoria é o temor de Deus, resolveu e decretou exortar a todos e a cada um dos fiéis cristãos congregados em Trento, agora, que procurem emendar-se dos seus erros e pecados cometidos até o presente e procedam daqui para a frente com temor a Deus sem condescender aos desejos da carne, perseverando, como possa cada um, na oração e confessando frequentemente, comungando, frequentando as igrejas e, enfim, cumprindo os preceitos divinos; pedindo também deste Deus, todos os dias, em suas orações particulares, pela paz dos príncipes cristãos e pela unidade da Igreja.

Exorta também aos bispos e demais pessoas constituídas da ordem sacerdotal que venham a esta cidade para celebrar o Concílio Geral, para que se dediquem com esmero aos contínuos louvores a Deus, ofereçam seus sacrifícios, ofícios e orações, e celebrem o Sacrifício da Missa, – ao menos nos Domingos, dia em que Deus criou a luz, ressuscitou dos mortos e infundiu em seus discípulos o Espírito Santo, fazendo como manda o mesmo Espírito por meio de Seu Apóstolo, – súplicas, orações, pedidos e ações de graças por nosso santíssimo Padre, o Papa, pelo Imperador, pelos Reis, por todos os que se acham constituídos em dignidade e por todos os homens para que vivamos pacífica e tranquilamente, gozemos da paz e vejamos o aumento da Religião.

Exorta também que jejuem pelo menos todas as sextas-feiras em memória da Paixão do Senhor, doem esmolas aos pobres e que sejam celebradas todas as quintas-feiras na igreja catedral a Missa do Espírito Santo com as liturgias e outras orações estabelecidas para a ocasião, e nas demais igrejas se digam, ao menos nos mesmos dias, as liturgias e orações, sem que o período dos Divinos Ofícios sofra interrupções ou conversações, senão ao que concerne ao sacerdote, em voz alta ou em silêncio.

É também necessário que os Bispos sejam irrepreensíveis, sóbrios, castos e muito atentos ao governo das suas casas; os exorta igualmente a que cuidem, antes de tudo, da sobriedade em sua mesa e da moderação em suas refeições. Além disso, como acontece muitas vezes, evitar na mesma mesa as conversações inúteis, e em vez disso, que seja lida a sagrada Escritura.

Instrua também cada um a seus familiares e empregados que não sejam devedores, alcoólatras, ambiciosos, soberbos, blasfemantes, nem dados a prazeres sensuais, fujam dos vícios e abracem as virtudes, manifestando alinhamento em suas vestes e também atos de honestidade e modéstia correspondentes aos ministros dos ministros de Deus.

Além disso, sendo o principal cuidado, empenho e intenção deste Sacrossanto Concílio, que dissipadas as trevas das heresias, que por tantos anos cobriram a Terra, renasça a luz da Verdade católica, com o favor de Jesus Cristo, que é a verdadeira Luz, bem como a sinceridade e a pureza e se reformem as coisas que necessitam de reforma.

O mesmo concílio exorta a todos os católicos aqui congregados que depois de se congregarem e, principalmente, aos que estão instruídos nas sagradas Escrituras, que meditem por si mesmo com diligência e esmero os meios e modos mais convenientes para poder dirigir as intenções do Concílio, e conseguir o efeito desejado, e com isto se possa com maior rapidez, deliberação e prudência, condenar o que deva ser condenado e aprovar o que mereça aprovação, e todos, por todo o mundo, glorifiquem a uma só voz e com a mesma confissão de fé a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.

A respeito do modo com que se exponham os ditames, logo que os sacerdotes do Senhor estejam sentados no lugar de bênçãos, segundo o estatuto do Concílio de Toledo, ninguém possa fazer ruídos com vozes destonadas nem perturbar de modo tumultuoso, nem tampouco discutir com premissas falsas, vãs, ou obstinadas, sem que tudo o que venham a expor seja atenuado e suavizado de algum modo ao ser pronunciado, para que não se ofendam os ouvintes e nem se perca a retidão do juízo com a perturbação dos ânimos.


Determinação da Próxima Sessão

Depois disto estabelecido, e decretando o Concílio que, se acontecer por casualidade que alguns não tomem o assento que lhes corresponde e expressem suas opiniões, ainda que valendo-se da fórmula de Placet, assistam às congregações e executem durante o Concílio outras ações quaisquer que sejam, e nem por isto serão seguidos de qualquer prejuízo, e nem tampouco adquirirão novos direitos.

Marcou-se, a seguir, o dia de quinta-feira, 4 do próximo mês de fevereiro, para celebrar a sessão seguinte.
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Introdução ao Cristianismo, por Joseph Ratzinger

A presente postagem é a reprodução dos primeiros dois artigos do Capítulo I de uma das obras-primas deste Doutor da Igreja vivo, com quem tivemos o privilégio de conviver e sermos por ele dirigidos, infelizmente, por espaço de tempo tão curto. Desta feita, temos uma profunda convicção de que nosso compartilhamento será útil a todas as almas que o buscarem com humilde desejo de aprender sobre as razões de nossa fé.


QUEM TENTAR FALAR hoje sobre o problema da fé cristã diante de homens não familiarizados com a linguagem eclesiástica, por vocação ou convenção, depressa sentirá o estranho e surpreendente de semelhante iniciativa. Provavelmente depressa descobrirá que a sua situação encontra uma descrição exata no conhecido conto de Kierkegaard sobre o palhaço e a aldeia em chamas, conto que Harvey Cox retomou há pouco em seu livro A Cidade do Homem1



A estória conta como um circo ambulante na Dinamarca pegou fogo. O diretor manda à aldeia vizinha o palhaço, – já caracterizado para a apresentação, – em busca de auxílio, tanto mais que havia perigo de alastrarem-se as chamas através dos campos secos, alcançando a própria aldeia. O palhaço, então, corre à aldeia e suplica aos moradores que venham com urgência ajudar a apagar as chamas do circo incendiado. Mas os habitantes tomam os gritos do palhaço por um formidável truque de publicidade para aliciá-los ao espetáculo; aplaudem-no e riem. O palhaço sente mais vontade de chorar do que de rir. Em vão tenta conjurar os homens, e esclarecer-lhes de que não se trata de propaganda alguma, nem de fingimento ou truque, mas de coisa muito séria, porquanto o circo realmente está a queimar. Seu esforço apenas aumenta a hilaridade, até que, por fim, o fogo alcança de fato a aldeia, tornando tardia qualquer tentativa de auxílio; circo e aldeia tornam-se presa das chamas...

Cox conta esta estória como símile da situação do teólogo dos nossos tempos, e vê a figura do teólogo no palhaço incapaz de transmitir aos homens a sua mensagem. Em sua roupagem de palhaço, seja medieval ou de outro passado remoto qualquer, o teólogo não é tomado a sério. Pode dizer o que quiser, continua como que etiquetado e fichado pelo papel que representa. Qualquer que seja o seu comportamento e seu esforço de falar seriamente, sempre se sabe de antemão que ele é um palhaço: já se adivinha qual o assunto de sua mensagem e se sabe que apenas está dando uma representação com pouco ou nenhum nexo com a realidade. Por isso pode ser ouvido sossegadamente, sem inquietar a ninguém com as coisas que afirma. 

Sem dúvida existe algo de angustiante neste quadro, algo da angustiada realidade em que a Teologia e a formulação teológica de hoje se encontram; algo da pesada impossibilidade de quebrar chavões do pensamento e da expressão rotineiros e de tornar reconhecível o problema da Teologia como assunto sério da vida humana.

Contudo, talvez o nosso exame de consciência deva mesmo ser mais radical. Talvez tenhamos de reconhecer que esse quadro excitante, – por muito verdadeiro e digno de consideração que seja, – ainda simplifica em excesso as coisas. Pois, dentro dele, têm-se a impressão de que o palhaço, ou seja o Teólogo, é quem sabe perfeitamente que traz uma mensagem muito clara. Os aldeões, aos quais acorre, isto é, os homens sem fé, seriam, pelo contrário, completamente ignorantes dos fatos, os que devem ser instruídos sobre aquilo que lhes é desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar de roupagem e retirar a maquiagem, e tudo estaria em ordem.

Mas, por acaso a questão é tão simples assim? Bastar-nos-ia um simples apelo ao aggiornamento (renovação, atualização), uma mera retirada da maquiagem e uma reformulação em termos de linguagem do mundo ou de um cristianismo arreligioso para recolocar tudo nos eixos? Bastará uma mudança espiritual ou metafórica de vestes para que os homens acorram, animados, e ajudem a apagar o incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para todos? 

Vejo-me compelido a afirmar que a Teologia, desmaquilada e revestida de moderna embalagem profana, tal como hoje surge em muitos lugares, torna muito simplória essa esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a fé no meio de homens mergulhados na vida moderna e imbuídos da moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém surgido de um antigo sarcófago, que penetrou no mundo atual revestido de trajes e pensamentos da Antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a fé exercer bastante autocrítica, em breve notará não se tratar apenas de formas, de uma crise do mero revestimento com que a Teologia se apresenta.

Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança da própria fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua vontade de crer. Por isso, quem tentar honestamente prestar contas da fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas.


A via da incerteza

Santa Teresa de Lisieux
Para começar, no crente existe a ameaça da incerteza capaz de revelar dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade de tudo o que, em geral, lhe parece tão evidente. Esclareçamo-lo com alguns exemplos. Teresa de Lisieux, a amável santinha, aparentemente tão isenta de complexidades e de problemas, cresceu em uma vida de completa segurança religiosa. Sua vida, do começo ao fim, foi tão perfeita e minuciosamente marcada pela fé na Igreja que o mundo invisível se tornara uma parcela do seu cotidiano; ou antes, o próprio cotidiano seu, parecendo quase tangível e impossível de ser eliminado de sua vida. Para Teresinha, "religião" era, de fato, um dado prévio e natural de sua existência diária; ela manipulava a religião como nós somos capazes de manejar as trivialidades concretas da vida. Mas justamente ela, aparentemente tão resguardada numa segurança sem risco, deixou-nos comovedoras manifestações do que foram as últimas semanas do seu calvário. Manifestações que, mais tarde, suas irmãs, assustadas, atenuariam em seu legado literário e que só agora vieram à tona nas novas edições autênticas e literais de sua obra.

Assim, por exemplo, quando ela afirma: "Acossam-me as reflexões dos piores materialistas", é que sente a inteligência torturada por todos os argumentos possíveis contra a fé; o sentimento da fé parece desaparecido; ela se vê transportada para dentro da "pele dos pecadores"2.

Isto é, em um mundo que parece completamente sólido e sem brechas, torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos, – também a ele, – sob a crosta firme das convenções que sustentam a fé. Em tal situação não está mais em jogo apenas isto ou aquilo, – assunção de Maria ou não; confissão desse ou daquele modo, – coisas que se tornam completamente irrelevantes, porquanto trata-se realmente do todo, do conjunto, de tudo ou nada. É a única alternativa que parece restar, e em parte alguma surge um pedaço de chão firme ao qual se agarrar nessa queda vertiginosa: somente o abismo faminto e sem fundo do nada é o que se percebe, onde quer que se dirijam os olhares.

Paul Claudel
Paul Claudel evoca, em um quadro grandioso e convincente, essa situação do crente, na abertura do seu "Soulier de Satin". Um missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano, aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo, é representado como náufrago. Sua nau foi afundada por piratas. Ele mesmo, amarrado a uma trave do barco afundado, vaga nesse pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano3. O drama principia com o seu derradeiro monólogo: "Senhor, agradeço-te por me teres amarrado assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os teus Mandamentos; senti desnorteada, fracassada a vontade diante dos teus Mandamentos. Mas hoje não poderia estar mais fortemente atado a Ti, do que o estou; e muito embora meus membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de afastar-se um pouco de Ti. E assim realmente estou preso à cruz; e a cruz, à qual me vejo atado, não está presa a nada mais. Ela voga pelo mar"4.



A Cruz sobre o nada

Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando sobre o abismo. – Dificilmente se poderia descrever mais acurada e exatamente a situação do crente hodierno. Apenas um madeiro oscilante sobre o nada; um madeiro desatado parece sustê-lo e tem-se a impressão de ser possível adivinhar o instante em que tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a Deus; mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele tem a certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que fervilha debaixo dele; esse nada que, apesar dos pesares, continua sendo a força ameaçadora propriamente dita do seu presente.

O quadro apresenta, além disso, uma dimensão mais vasta que, aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu irmão; nele está presente o destino do irmão, daquele que se considera descrente, que deu as costas a Deus por não considerar tarefa sua a espera, mas "a posse do atingível... como se este pudesse estar em parte outra do que onde Tu, ó Deus, estás".

É dispensável acompanharmos a trama da concepção claudeliana: a mestria com que conserva como fio condutor o jogo dos dois destinos aparentemente contraditórios até ao ponto em que a sorte de Rodrigo finalmente se toca com a do irmão, quando o conquistador termina como escravo em um navio, devendo dar-se por muito feliz, ao ser levado por uma velha freira que, de contrapeso, leva uma caçarola e alguns trapos. Aliás, deixando de lado o símile, podemos voltar à nossa própria situação e dizer: o crente é capaz de realizar-se em sua fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar possível de sua fé.

Apesar disso, não se pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir que também o incréu não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista, que já de há muito deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente "certo"... jamais o abandonará a secreta insegurança de se o positivismo está realmente com a última palavra.

O crente vê-se sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se resolveu a declarar como o todo. Jamais conseguirá certeza plena sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas continuará sob a ameaça de que, – quem sabe?, – a fé venha a representar e a afirmar a realidade. Portanto, como o crente se sabe ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ver nela a sua perene provação, assim a fé representa a ameaça e a tentação do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e completo.

Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da existência humana. Quem deseja fugir à incerteza da fé, há de experimentar a incerteza da descrença que, por sua vez, jamais conseguirá resolver sem sombra de dúvida a questão de se, por acaso, a fé não se cobre com a Verdade. Somente na recusa revela-se a irrecusabilidade da fé.

Talvez venha a propósito aduzir neste lugar uma estória judaica escrita por Martin Buber; nela aparece com clareza o citado dilema da existência humana:

Um dos sequazes do iluminismo, homem estudado, ouvira falar de Berditschewer. Foi-lhe à procura com o fito de comprar uma discussão, como era do seu feitio, e arrasar suas provas ultrapassadas da verdade da fé. Ao entrar no quarto do Zaddik viu-o, de livro à mão, indo e vindo, mergulhado em entusiásticas reflexões. Nem pareceu dar pela chegada do visitante. Finalmente deteve-se, olhou para ele superficialmente e disse: 'E contudo, talvez seja verdade'. O sábio, em vão, tentou fincar pé, defendendo sua dignidade própria. Não o conseguiu. Sentiu os joelhos chocalharem, tão terrível era o aspeto do Zaddik, tão horrível de se ouvir a sua singela frase. Mas o rabi Levi Jizchak voltou-se completamente para ele e lhe disse, sereno: 'Meu filho, os grandes da Torá, com os quais disputaste, desperdiçaram palavras; tu te riste deles, ao te afastares. Não foram capazes de colocar Deus e o seu Reino sobre a mesa, diante de ti; eu também sou incapaz. Mas, meu filho, reflete: talvez seja verdade'. O iluminista concentrou todas as forças para revidar; mas aquele terrível 'talvez', a ecoar sem cessar, quebrou-lhe qualquer resistência"5

Apesar da roupagem estranha, temos aqui uma descrição muito precisa da situação do homem frente ao problema Deus. Ninguém é capaz de servir aos outros o "cardápio" de Deus e do seu Reino, nem o próprio crente pode servi-lo a si mesmo. Mas, por mais que a descrença se possa sentir justificada com isso, permanece de pé o horror daquele "talvez seja verdade". O "talvez" representa o inevitável ataque ao qual se é incapaz de fugir, no qual se deve experimentar, na recusa, a irrecusabilidade da fé. Em outras palavras: crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida.

Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez esteja aqui o caminho para transformar em ponto de encontro, de contato, a dúvida que preserva a um e a outro do perigo de encapsular-se em si mesmo. Ambos estão impedidos de enrolar-se em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, e este para o crente. Para um temos aí uma participação no destino do incréu, para o outro, a forma pela qual a fé, apesar de tudo, continua sendo um desafio.



A figura do palhaço incompreendido e dos campesinos despreocupados não basta para descrever a interdependência de fé e descrença em nossos dias. Contudo, não se pode negar que ela representa, de algum modo, um problema específico da fé. Pois a questão fundamental de uma introdução ao cristianismo abrange a tarefa de esclarecer o que significa o homem afirmar "creio". Essa questão fundamental apresenta-se-nos carregada de um conteúdo temporal muito preciso. Devido à nossa consciência histórica, que se tornou parcela de nossa autoconsciência e de nossa concepção fundamental do humano, essa questão só pode ser posta na forma seguinte: que é e que significa a confissão cristã "creio" nos dias de hoje, dentro das contingências da nossa existência atual e da nossa posição presente, diante da realidade em seu conjunto?

Chegamos assim a uma análise do texto que deverá constituir a diretriz, a coluna mestra de todas as nossas considerações, a saber, do "símbolo apostólico" o qual, a partir de sua origem, quer ser "introdução ao cristianismo" e resumo do seu conteúdo essencial. É sintomático o fato de principiar esse texto com a palavra "creio". Claro está que, de início, abrimos mão de uma análise deste termo dentro do seu contexto; também deixamos, por ora, de pesquisar por que essa declaração básica "creio", em sua forma estereotipada, surge em conexão com determinados conteúdos e se desenvolve dentro de um contexto litúrgico. O contexto da fórmula litúrgica com o do conteúdo molda o sentido da palavrinha "credo", como, vice-versa, a palavrinha "credo" sustenta e caracteriza tudo o que se lhe segue e o próprio ambiente litúrgico.

Apesar disso, por ora devemos prescindir de ambos, para enfrentar com radicalismo tanto maior e analisar muito a fundo que espécie de atitude se intenciona quando a existência cristã se revela, primeiro e antes de tudo, no verbo "credo" e com isso, – o que de modo algum é evidente, – demarca o cerne do crístico como sendo uma "fé".

As mais das vezes, supomos irrefletidamente que "religião" e "fé" são uma e mesma coisa, e se cobrem, podendo, por isso, qualquer religião ser definida como "fé". O que, contudo, só se realiza, de fato, em proporção limitada; muitas vezes as outras religiões assumem nomes diferentes, colocando assim outros pontos de apoio que não a fé. O Antigo Testamento, como um todo, não se apresenta sob o conceito de "Fé", mas de "Lei". É primariamente uma ordem, um teor de vida em que, sem dúvida, o ato da fé assume importância crescente.

A religiosidade romana, por sua vez, compreendeu praticamente sob o nome de "religio" a observância de determinadas formas rituais e de costumes. Para ela, não era decisivo que um ato de fé assentasse sobre elementos supernaturais; tal ato poderia mesmo faltar por completo, sem que houvesse infidelidade à religião. Por ser essencialmente um sistema de ritos, a sua exata observância era o elemento decisivo acima de tudo. O mesmo poderia constatar-se, perlustrando toda a história das religiões.

Essa alusão basta para esclarecer quão pouco evidente é, em si, o fato de o ser cristão exprimir-se fundamentalmente na palavra "credo", designando a sua posição frente ao real pela atitude da fé. Com o que, aliás, a nossa pergunta só se torna mais premente: que atitude, afinal, se pretende manifestar por esta palavra? E mais: por que se torna tão difícil penetrar o nosso "eu" sempre pessoal no âmago desse "creio"? Por que sempre nos parece, de novo, quase impossível transferir o nosso "eu" contemporâneo, – cada qual o seu, diverso e separado do "eu" dos outros, – para a identificação com o "eu" do "creio" tal como nos vem determinado e moldado por gerações?

Não nos iludamos: penetrar naquele "eu" de fórmulas do "credo"; assimilar na carne e no sangue do "eu" pessoal o "eu" esquemático da fórmula constituiu sempre empresa excitante e aparentemente impossível, em cuja realização, não raro, ao invés de penetrar o esquema com carne e sangue, o "eu" acaba transformado em esquema.

E se, crentes no nosso tempo, talvez ouçamos com alguma inveja que na Idade Média todos, sem exceção, eram crentes em nosso país (Alemanha, mas poderia se referir à toda Europa como a todo continente latino-americano há poucas décadas), seria bom lançar um olhar atrás dos bastidores, olhar este somente possível graças às conquistas da pesquisa histórica moderna. Ela está em condições de ensinar-nos que, também naquela época, havia a grande massa dos que iam "na onda" e um número relativamente restrito dos que, de fato, penetravam até ao âmago da fé.

A história pode mostrar-nos que, para muitos, a fé não passava de um sistema preexistente de vida, pelo qual a fascinante aventura escondida no bojo da palavra "creio" lhes estava, pelo menos, tão encoberta como patente. E tudo isso apenas porque entre Deus e homem se abre um abismo infinito; porque a feitura do homem é tal que seus olhos só podem ver aquilo que não é Deus, permanecendo Deus sempre essencialmente invisível, fora do campo visual do homem. Deus essencialmente invisível, essa declaração fundamental da fé bíblica, em oposição à visibilidade dos deuses, é simultaneamente, – e mesmo sobretudo, – uma declaração sobre o homem. O homem é o ser vidente, para o qual o espaço da vida parece demarcado pelo espaço de sua visão e percepção. Mas Deus jamais aparece e nunca pode aparecer nesse espaço de sua visão e percepção, determinantes da localização existencial do homem, por mais que tal espaço seja sempre ampliado. Acredito, o que é importante, que, em princípio, essa declaração se encontra no Antigo Testamento: Deus não é apenas aqu'Ele que, agora e de fato, se acha fora do campo visual, podendo, contudo, ser percebido, se fosse possível avançar. Não; Ele é aqu'Ele que se encontra essencialmente fora deste campo, por mais que nossa área visual se alargue.

Com isso, porém, só se revela um primeiro esboço da atitude expressa pela palavrinha "creio". Ela conota um homem que não considera como o máximo a totalidade de suas capacidades, o ver, o ouvir e o perceber; que não considera o espaço do seu universo balizado pelo que se encerra no seu campo visual, auditivo, perceptivo, mas procura uma segunda forma de acesso à realidade, forma essa que chega a encontrar aí a abertura essencial de sua concepção do mundo.

Sendo assim, a palavrinha "credo" encerra uma opção fundamental face à realidade como tal, não conotando apenas a constatação disso ou daquilo, mas apresentando-se como uma forma fundamental de comportamento para com o ser, para com a existência, para com o que é próprio da realidade, para com a sua globalidade. Trata-se de uma opção que considera o invisível, o absolutamente incapaz de alcançar o campo visual, não como o irreal, mas, pelo contrário, como o real propriamente dito, que representa o fundamento e a possibilidade da restante realidade. É a opção de aceitar esse algo que possibilite à realidade restante a proporcionar ao homem uma existência verdadeiramente humana, a torná-lo possível como homem e como ser humano. Dito ainda em outros termos: fé significa o decidir-se por um ponto no âmago da existência humana, o qual é incapaz de ser alimentado e sustentado pelo que é visível e tangível, mas que toca a orla do invisível de modo a torná-lo tangível e a revelar-se como uma necessidade para a existência humana.

Tal atitude certamente só se conseguirá através daquilo que a linguagem bíblica chama de "volta" ou "conversão". A tendência natural do homem leva-o ao visível, ao que se pode pegar e reter como propriedade. Cumpre-lhe voltar-se, internamente, para ver até que ponto abre mão do que lhe é próprio, ao deixar-se arrastar assim para fora da sua gravidade natural. Deve converter-se, voltar-se para conhecer quão cego está ao confiar apenas no que os olhos enxergam. A fé é impossível sem essa conversão da existência, sem essa ruptura com a tendência natural.

Sim, a fé é a conversão, na qual o homem descobre estar seguindo uma ilusão ao se comprometer apenas com o palpável e sensível. E aqui está a razão mais profunda por que a fé não é demonstrável: é uma volta, uma reviravolta do ser, e somente quem se volta, recebe-a. E, porque nossa tendência não cessa de arrastar-nos para outro rumo, a fé permanece sempre nova em seu aspecto de conversão ou volta, e somente através de uma conversão longa como a vida é que podemos ter consciência do que vem a ser o "eu creio".

A partir daí é compreensível que a fé represente algo de quase impossível e problemático não apenas hoje e nas condições específicas da nossa situação moderna, mas, quiçá, de modo um tanto menos claro e identificável, já representou, sempre, o salto por cima de um abismo infinito, a saber, da contingência que esmaga o homem: a fé sempre teve algo de ruptura arriscada e de salto, por representar o desafio de aceitar o invisível como realidade e fundamento incondicional. Jamais a fé foi uma atitude conatural consequente do declive da existência humana; ela foi sempre uma decisão desafiadora da mesma raiz da existência, postulando sempre uma volta, uma conversão do homem, só possível na escolha.

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Notas:
1. H. COX, The Secular City. Trad. port. A cidade do Homem, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968, 270.

2. Confira-se a síntese informativa do periódico Herderkorrespondenz 7 (1962/3, 561-565 sob o título "Die echten Texte der kleinen heiligen Thérese" (Textos autênticos de Sta. Teresinha). As citações encontram-se à pág. 564. Sua fonte principal é o artigo de M. MORÉE, "La table des pécheurs", em Dieu vivant, nº 24,13-104. MORÉE refere-se sobretudo às pesquisas e edições de A. COMBES, principalmente "Le probleme de 'I'Histoire d'une âme' et des 'Oeuvres completes de Ste. Thérese de Lisieux', Paris, 1950. Outras fontes: A. COMBES, "Theresia von Lisieux", em Lexikon für Theologie und Kirche (LthK) X,102-104, Sainte Thérese de Lisieux et sa Mission, publicado pela editora Lar Católico sob o título "Uma Santa na era atômica" (1961), onde se podem conferir os conceitos aqui abordados, sobretudo à pág. 125; 138 e seguintes e 174.

3. O que evoca impressionantemente o texto de Sab 10,4 tão importante para a Teologia da Cruz da Igreja antiga: "À terra inundada, salvou-a a Sabedoria, dirigindo o justo num lenho desprezível". Sobre este texto na Teologia Patrística confira-se H. RAHNER, Symbole der Kirche, Salzburgo, 1964, 502-547.

4. Conforme o texto alemão de H. U. VON BALTHASAR, Salzburgo, 1953, 16.

5. M. BUBER, Werke III, Munique-Heidelberg, 1963, 348.
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Fonte:
RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo, Preleções sobre o Símbolo Apostólico. São Paulo: Herder, 1970.
www.ofielcatolico.com.br
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