Introdução ao Cristianismo, por Joseph Ratzinger

A presente postagem é a reprodução dos primeiros dois artigos do Capítulo I de uma das obras-primas deste Doutor da Igreja vivo, com quem tivemos o privilégio de conviver e sermos por ele dirigidos, infelizmente, por espaço de tempo tão curto. Desta feita, temos uma profunda convicção de que nosso compartilhamento será útil a todas as almas que o buscarem com humilde desejo de aprender sobre as razões de nossa fé.


QUEM TENTAR FALAR hoje sobre o problema da fé cristã diante de homens não familiarizados com a linguagem eclesiástica, por vocação ou convenção, depressa sentirá o estranho e surpreendente de semelhante iniciativa. Provavelmente depressa descobrirá que a sua situação encontra uma descrição exata no conhecido conto de Kierkegaard sobre o palhaço e a aldeia em chamas, conto que Harvey Cox retomou há pouco em seu livro A Cidade do Homem1



A estória conta como um circo ambulante na Dinamarca pegou fogo. O diretor manda à aldeia vizinha o palhaço, – já caracterizado para a apresentação, – em busca de auxílio, tanto mais que havia perigo de alastrarem-se as chamas através dos campos secos, alcançando a própria aldeia. O palhaço, então, corre à aldeia e suplica aos moradores que venham com urgência ajudar a apagar as chamas do circo incendiado. Mas os habitantes tomam os gritos do palhaço por um formidável truque de publicidade para aliciá-los ao espetáculo; aplaudem-no e riem. O palhaço sente mais vontade de chorar do que de rir. Em vão tenta conjurar os homens, e esclarecer-lhes de que não se trata de propaganda alguma, nem de fingimento ou truque, mas de coisa muito séria, porquanto o circo realmente está a queimar. Seu esforço apenas aumenta a hilaridade, até que, por fim, o fogo alcança de fato a aldeia, tornando tardia qualquer tentativa de auxílio; circo e aldeia tornam-se presa das chamas...

Cox conta esta estória como símile da situação do teólogo dos nossos tempos, e vê a figura do teólogo no palhaço incapaz de transmitir aos homens a sua mensagem. Em sua roupagem de palhaço, seja medieval ou de outro passado remoto qualquer, o teólogo não é tomado a sério. Pode dizer o que quiser, continua como que etiquetado e fichado pelo papel que representa. Qualquer que seja o seu comportamento e seu esforço de falar seriamente, sempre se sabe de antemão que ele é um palhaço: já se adivinha qual o assunto de sua mensagem e se sabe que apenas está dando uma representação com pouco ou nenhum nexo com a realidade. Por isso pode ser ouvido sossegadamente, sem inquietar a ninguém com as coisas que afirma. 

Sem dúvida existe algo de angustiante neste quadro, algo da angustiada realidade em que a Teologia e a formulação teológica de hoje se encontram; algo da pesada impossibilidade de quebrar chavões do pensamento e da expressão rotineiros e de tornar reconhecível o problema da Teologia como assunto sério da vida humana.

Contudo, talvez o nosso exame de consciência deva mesmo ser mais radical. Talvez tenhamos de reconhecer que esse quadro excitante, – por muito verdadeiro e digno de consideração que seja, – ainda simplifica em excesso as coisas. Pois, dentro dele, têm-se a impressão de que o palhaço, ou seja o Teólogo, é quem sabe perfeitamente que traz uma mensagem muito clara. Os aldeões, aos quais acorre, isto é, os homens sem fé, seriam, pelo contrário, completamente ignorantes dos fatos, os que devem ser instruídos sobre aquilo que lhes é desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar de roupagem e retirar a maquiagem, e tudo estaria em ordem.

Mas, por acaso a questão é tão simples assim? Bastar-nos-ia um simples apelo ao aggiornamento (renovação, atualização), uma mera retirada da maquiagem e uma reformulação em termos de linguagem do mundo ou de um cristianismo arreligioso para recolocar tudo nos eixos? Bastará uma mudança espiritual ou metafórica de vestes para que os homens acorram, animados, e ajudem a apagar o incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para todos? 

Vejo-me compelido a afirmar que a Teologia, desmaquilada e revestida de moderna embalagem profana, tal como hoje surge em muitos lugares, torna muito simplória essa esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a fé no meio de homens mergulhados na vida moderna e imbuídos da moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém surgido de um antigo sarcófago, que penetrou no mundo atual revestido de trajes e pensamentos da Antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a fé exercer bastante autocrítica, em breve notará não se tratar apenas de formas, de uma crise do mero revestimento com que a Teologia se apresenta.

Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança da própria fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua vontade de crer. Por isso, quem tentar honestamente prestar contas da fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas.


A via da incerteza

Santa Teresa de Lisieux
Para começar, no crente existe a ameaça da incerteza capaz de revelar dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade de tudo o que, em geral, lhe parece tão evidente. Esclareçamo-lo com alguns exemplos. Teresa de Lisieux, a amável santinha, aparentemente tão isenta de complexidades e de problemas, cresceu em uma vida de completa segurança religiosa. Sua vida, do começo ao fim, foi tão perfeita e minuciosamente marcada pela fé na Igreja que o mundo invisível se tornara uma parcela do seu cotidiano; ou antes, o próprio cotidiano seu, parecendo quase tangível e impossível de ser eliminado de sua vida. Para Teresinha, "religião" era, de fato, um dado prévio e natural de sua existência diária; ela manipulava a religião como nós somos capazes de manejar as trivialidades concretas da vida. Mas justamente ela, aparentemente tão resguardada numa segurança sem risco, deixou-nos comovedoras manifestações do que foram as últimas semanas do seu calvário. Manifestações que, mais tarde, suas irmãs, assustadas, atenuariam em seu legado literário e que só agora vieram à tona nas novas edições autênticas e literais de sua obra.

Assim, por exemplo, quando ela afirma: "Acossam-me as reflexões dos piores materialistas", é que sente a inteligência torturada por todos os argumentos possíveis contra a fé; o sentimento da fé parece desaparecido; ela se vê transportada para dentro da "pele dos pecadores"2.

Isto é, em um mundo que parece completamente sólido e sem brechas, torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos, – também a ele, – sob a crosta firme das convenções que sustentam a fé. Em tal situação não está mais em jogo apenas isto ou aquilo, – assunção de Maria ou não; confissão desse ou daquele modo, – coisas que se tornam completamente irrelevantes, porquanto trata-se realmente do todo, do conjunto, de tudo ou nada. É a única alternativa que parece restar, e em parte alguma surge um pedaço de chão firme ao qual se agarrar nessa queda vertiginosa: somente o abismo faminto e sem fundo do nada é o que se percebe, onde quer que se dirijam os olhares.

Paul Claudel
Paul Claudel evoca, em um quadro grandioso e convincente, essa situação do crente, na abertura do seu "Soulier de Satin". Um missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano, aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo, é representado como náufrago. Sua nau foi afundada por piratas. Ele mesmo, amarrado a uma trave do barco afundado, vaga nesse pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano3. O drama principia com o seu derradeiro monólogo: "Senhor, agradeço-te por me teres amarrado assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os teus Mandamentos; senti desnorteada, fracassada a vontade diante dos teus Mandamentos. Mas hoje não poderia estar mais fortemente atado a Ti, do que o estou; e muito embora meus membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de afastar-se um pouco de Ti. E assim realmente estou preso à cruz; e a cruz, à qual me vejo atado, não está presa a nada mais. Ela voga pelo mar"4.



A Cruz sobre o nada

Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando sobre o abismo. – Dificilmente se poderia descrever mais acurada e exatamente a situação do crente hodierno. Apenas um madeiro oscilante sobre o nada; um madeiro desatado parece sustê-lo e tem-se a impressão de ser possível adivinhar o instante em que tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a Deus; mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele tem a certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que fervilha debaixo dele; esse nada que, apesar dos pesares, continua sendo a força ameaçadora propriamente dita do seu presente.

O quadro apresenta, além disso, uma dimensão mais vasta que, aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu irmão; nele está presente o destino do irmão, daquele que se considera descrente, que deu as costas a Deus por não considerar tarefa sua a espera, mas "a posse do atingível... como se este pudesse estar em parte outra do que onde Tu, ó Deus, estás".

É dispensável acompanharmos a trama da concepção claudeliana: a mestria com que conserva como fio condutor o jogo dos dois destinos aparentemente contraditórios até ao ponto em que a sorte de Rodrigo finalmente se toca com a do irmão, quando o conquistador termina como escravo em um navio, devendo dar-se por muito feliz, ao ser levado por uma velha freira que, de contrapeso, leva uma caçarola e alguns trapos. Aliás, deixando de lado o símile, podemos voltar à nossa própria situação e dizer: o crente é capaz de realizar-se em sua fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar possível de sua fé.

Apesar disso, não se pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir que também o incréu não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista, que já de há muito deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente "certo"... jamais o abandonará a secreta insegurança de se o positivismo está realmente com a última palavra.

O crente vê-se sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se resolveu a declarar como o todo. Jamais conseguirá certeza plena sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas continuará sob a ameaça de que, – quem sabe?, – a fé venha a representar e a afirmar a realidade. Portanto, como o crente se sabe ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ver nela a sua perene provação, assim a fé representa a ameaça e a tentação do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e completo.

Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da existência humana. Quem deseja fugir à incerteza da fé, há de experimentar a incerteza da descrença que, por sua vez, jamais conseguirá resolver sem sombra de dúvida a questão de se, por acaso, a fé não se cobre com a Verdade. Somente na recusa revela-se a irrecusabilidade da fé.

Talvez venha a propósito aduzir neste lugar uma estória judaica escrita por Martin Buber; nela aparece com clareza o citado dilema da existência humana:

Um dos sequazes do iluminismo, homem estudado, ouvira falar de Berditschewer. Foi-lhe à procura com o fito de comprar uma discussão, como era do seu feitio, e arrasar suas provas ultrapassadas da verdade da fé. Ao entrar no quarto do Zaddik viu-o, de livro à mão, indo e vindo, mergulhado em entusiásticas reflexões. Nem pareceu dar pela chegada do visitante. Finalmente deteve-se, olhou para ele superficialmente e disse: 'E contudo, talvez seja verdade'. O sábio, em vão, tentou fincar pé, defendendo sua dignidade própria. Não o conseguiu. Sentiu os joelhos chocalharem, tão terrível era o aspeto do Zaddik, tão horrível de se ouvir a sua singela frase. Mas o rabi Levi Jizchak voltou-se completamente para ele e lhe disse, sereno: 'Meu filho, os grandes da Torá, com os quais disputaste, desperdiçaram palavras; tu te riste deles, ao te afastares. Não foram capazes de colocar Deus e o seu Reino sobre a mesa, diante de ti; eu também sou incapaz. Mas, meu filho, reflete: talvez seja verdade'. O iluminista concentrou todas as forças para revidar; mas aquele terrível 'talvez', a ecoar sem cessar, quebrou-lhe qualquer resistência"5

Apesar da roupagem estranha, temos aqui uma descrição muito precisa da situação do homem frente ao problema Deus. Ninguém é capaz de servir aos outros o "cardápio" de Deus e do seu Reino, nem o próprio crente pode servi-lo a si mesmo. Mas, por mais que a descrença se possa sentir justificada com isso, permanece de pé o horror daquele "talvez seja verdade". O "talvez" representa o inevitável ataque ao qual se é incapaz de fugir, no qual se deve experimentar, na recusa, a irrecusabilidade da fé. Em outras palavras: crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida.

Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez esteja aqui o caminho para transformar em ponto de encontro, de contato, a dúvida que preserva a um e a outro do perigo de encapsular-se em si mesmo. Ambos estão impedidos de enrolar-se em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, e este para o crente. Para um temos aí uma participação no destino do incréu, para o outro, a forma pela qual a fé, apesar de tudo, continua sendo um desafio.



A figura do palhaço incompreendido e dos campesinos despreocupados não basta para descrever a interdependência de fé e descrença em nossos dias. Contudo, não se pode negar que ela representa, de algum modo, um problema específico da fé. Pois a questão fundamental de uma introdução ao cristianismo abrange a tarefa de esclarecer o que significa o homem afirmar "creio". Essa questão fundamental apresenta-se-nos carregada de um conteúdo temporal muito preciso. Devido à nossa consciência histórica, que se tornou parcela de nossa autoconsciência e de nossa concepção fundamental do humano, essa questão só pode ser posta na forma seguinte: que é e que significa a confissão cristã "creio" nos dias de hoje, dentro das contingências da nossa existência atual e da nossa posição presente, diante da realidade em seu conjunto?

Chegamos assim a uma análise do texto que deverá constituir a diretriz, a coluna mestra de todas as nossas considerações, a saber, do "símbolo apostólico" o qual, a partir de sua origem, quer ser "introdução ao cristianismo" e resumo do seu conteúdo essencial. É sintomático o fato de principiar esse texto com a palavra "creio". Claro está que, de início, abrimos mão de uma análise deste termo dentro do seu contexto; também deixamos, por ora, de pesquisar por que essa declaração básica "creio", em sua forma estereotipada, surge em conexão com determinados conteúdos e se desenvolve dentro de um contexto litúrgico. O contexto da fórmula litúrgica com o do conteúdo molda o sentido da palavrinha "credo", como, vice-versa, a palavrinha "credo" sustenta e caracteriza tudo o que se lhe segue e o próprio ambiente litúrgico.

Apesar disso, por ora devemos prescindir de ambos, para enfrentar com radicalismo tanto maior e analisar muito a fundo que espécie de atitude se intenciona quando a existência cristã se revela, primeiro e antes de tudo, no verbo "credo" e com isso, – o que de modo algum é evidente, – demarca o cerne do crístico como sendo uma "fé".

As mais das vezes, supomos irrefletidamente que "religião" e "fé" são uma e mesma coisa, e se cobrem, podendo, por isso, qualquer religião ser definida como "fé". O que, contudo, só se realiza, de fato, em proporção limitada; muitas vezes as outras religiões assumem nomes diferentes, colocando assim outros pontos de apoio que não a fé. O Antigo Testamento, como um todo, não se apresenta sob o conceito de "Fé", mas de "Lei". É primariamente uma ordem, um teor de vida em que, sem dúvida, o ato da fé assume importância crescente.

A religiosidade romana, por sua vez, compreendeu praticamente sob o nome de "religio" a observância de determinadas formas rituais e de costumes. Para ela, não era decisivo que um ato de fé assentasse sobre elementos supernaturais; tal ato poderia mesmo faltar por completo, sem que houvesse infidelidade à religião. Por ser essencialmente um sistema de ritos, a sua exata observância era o elemento decisivo acima de tudo. O mesmo poderia constatar-se, perlustrando toda a história das religiões.

Essa alusão basta para esclarecer quão pouco evidente é, em si, o fato de o ser cristão exprimir-se fundamentalmente na palavra "credo", designando a sua posição frente ao real pela atitude da fé. Com o que, aliás, a nossa pergunta só se torna mais premente: que atitude, afinal, se pretende manifestar por esta palavra? E mais: por que se torna tão difícil penetrar o nosso "eu" sempre pessoal no âmago desse "creio"? Por que sempre nos parece, de novo, quase impossível transferir o nosso "eu" contemporâneo, – cada qual o seu, diverso e separado do "eu" dos outros, – para a identificação com o "eu" do "creio" tal como nos vem determinado e moldado por gerações?

Não nos iludamos: penetrar naquele "eu" de fórmulas do "credo"; assimilar na carne e no sangue do "eu" pessoal o "eu" esquemático da fórmula constituiu sempre empresa excitante e aparentemente impossível, em cuja realização, não raro, ao invés de penetrar o esquema com carne e sangue, o "eu" acaba transformado em esquema.

E se, crentes no nosso tempo, talvez ouçamos com alguma inveja que na Idade Média todos, sem exceção, eram crentes em nosso país (Alemanha, mas poderia se referir à toda Europa como a todo continente latino-americano há poucas décadas), seria bom lançar um olhar atrás dos bastidores, olhar este somente possível graças às conquistas da pesquisa histórica moderna. Ela está em condições de ensinar-nos que, também naquela época, havia a grande massa dos que iam "na onda" e um número relativamente restrito dos que, de fato, penetravam até ao âmago da fé.

A história pode mostrar-nos que, para muitos, a fé não passava de um sistema preexistente de vida, pelo qual a fascinante aventura escondida no bojo da palavra "creio" lhes estava, pelo menos, tão encoberta como patente. E tudo isso apenas porque entre Deus e homem se abre um abismo infinito; porque a feitura do homem é tal que seus olhos só podem ver aquilo que não é Deus, permanecendo Deus sempre essencialmente invisível, fora do campo visual do homem. Deus essencialmente invisível, essa declaração fundamental da fé bíblica, em oposição à visibilidade dos deuses, é simultaneamente, – e mesmo sobretudo, – uma declaração sobre o homem. O homem é o ser vidente, para o qual o espaço da vida parece demarcado pelo espaço de sua visão e percepção. Mas Deus jamais aparece e nunca pode aparecer nesse espaço de sua visão e percepção, determinantes da localização existencial do homem, por mais que tal espaço seja sempre ampliado. Acredito, o que é importante, que, em princípio, essa declaração se encontra no Antigo Testamento: Deus não é apenas aqu'Ele que, agora e de fato, se acha fora do campo visual, podendo, contudo, ser percebido, se fosse possível avançar. Não; Ele é aqu'Ele que se encontra essencialmente fora deste campo, por mais que nossa área visual se alargue.

Com isso, porém, só se revela um primeiro esboço da atitude expressa pela palavrinha "creio". Ela conota um homem que não considera como o máximo a totalidade de suas capacidades, o ver, o ouvir e o perceber; que não considera o espaço do seu universo balizado pelo que se encerra no seu campo visual, auditivo, perceptivo, mas procura uma segunda forma de acesso à realidade, forma essa que chega a encontrar aí a abertura essencial de sua concepção do mundo.

Sendo assim, a palavrinha "credo" encerra uma opção fundamental face à realidade como tal, não conotando apenas a constatação disso ou daquilo, mas apresentando-se como uma forma fundamental de comportamento para com o ser, para com a existência, para com o que é próprio da realidade, para com a sua globalidade. Trata-se de uma opção que considera o invisível, o absolutamente incapaz de alcançar o campo visual, não como o irreal, mas, pelo contrário, como o real propriamente dito, que representa o fundamento e a possibilidade da restante realidade. É a opção de aceitar esse algo que possibilite à realidade restante a proporcionar ao homem uma existência verdadeiramente humana, a torná-lo possível como homem e como ser humano. Dito ainda em outros termos: fé significa o decidir-se por um ponto no âmago da existência humana, o qual é incapaz de ser alimentado e sustentado pelo que é visível e tangível, mas que toca a orla do invisível de modo a torná-lo tangível e a revelar-se como uma necessidade para a existência humana.

Tal atitude certamente só se conseguirá através daquilo que a linguagem bíblica chama de "volta" ou "conversão". A tendência natural do homem leva-o ao visível, ao que se pode pegar e reter como propriedade. Cumpre-lhe voltar-se, internamente, para ver até que ponto abre mão do que lhe é próprio, ao deixar-se arrastar assim para fora da sua gravidade natural. Deve converter-se, voltar-se para conhecer quão cego está ao confiar apenas no que os olhos enxergam. A fé é impossível sem essa conversão da existência, sem essa ruptura com a tendência natural.

Sim, a fé é a conversão, na qual o homem descobre estar seguindo uma ilusão ao se comprometer apenas com o palpável e sensível. E aqui está a razão mais profunda por que a fé não é demonstrável: é uma volta, uma reviravolta do ser, e somente quem se volta, recebe-a. E, porque nossa tendência não cessa de arrastar-nos para outro rumo, a fé permanece sempre nova em seu aspecto de conversão ou volta, e somente através de uma conversão longa como a vida é que podemos ter consciência do que vem a ser o "eu creio".

A partir daí é compreensível que a fé represente algo de quase impossível e problemático não apenas hoje e nas condições específicas da nossa situação moderna, mas, quiçá, de modo um tanto menos claro e identificável, já representou, sempre, o salto por cima de um abismo infinito, a saber, da contingência que esmaga o homem: a fé sempre teve algo de ruptura arriscada e de salto, por representar o desafio de aceitar o invisível como realidade e fundamento incondicional. Jamais a fé foi uma atitude conatural consequente do declive da existência humana; ela foi sempre uma decisão desafiadora da mesma raiz da existência, postulando sempre uma volta, uma conversão do homem, só possível na escolha.

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Notas:
1. H. COX, The Secular City. Trad. port. A cidade do Homem, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968, 270.

2. Confira-se a síntese informativa do periódico Herderkorrespondenz 7 (1962/3, 561-565 sob o título "Die echten Texte der kleinen heiligen Thérese" (Textos autênticos de Sta. Teresinha). As citações encontram-se à pág. 564. Sua fonte principal é o artigo de M. MORÉE, "La table des pécheurs", em Dieu vivant, nº 24,13-104. MORÉE refere-se sobretudo às pesquisas e edições de A. COMBES, principalmente "Le probleme de 'I'Histoire d'une âme' et des 'Oeuvres completes de Ste. Thérese de Lisieux', Paris, 1950. Outras fontes: A. COMBES, "Theresia von Lisieux", em Lexikon für Theologie und Kirche (LthK) X,102-104, Sainte Thérese de Lisieux et sa Mission, publicado pela editora Lar Católico sob o título "Uma Santa na era atômica" (1961), onde se podem conferir os conceitos aqui abordados, sobretudo à pág. 125; 138 e seguintes e 174.

3. O que evoca impressionantemente o texto de Sab 10,4 tão importante para a Teologia da Cruz da Igreja antiga: "À terra inundada, salvou-a a Sabedoria, dirigindo o justo num lenho desprezível". Sobre este texto na Teologia Patrística confira-se H. RAHNER, Symbole der Kirche, Salzburgo, 1964, 502-547.

4. Conforme o texto alemão de H. U. VON BALTHASAR, Salzburgo, 1953, 16.

5. M. BUBER, Werke III, Munique-Heidelberg, 1963, 348.
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Fonte:
RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo, Preleções sobre o Símbolo Apostólico. São Paulo: Herder, 1970.
www.ofielcatolico.com.br

6 comentários:

  1. Que bela iniciativa, Henrique!

    É impressionante a clareza e a profundidade de Ratzinger!

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    Respostas
    1. Bem, lembrei-me de você ao postar este artigo, meu irmão.

      A Paz de Nosso Senhor Jesus Cristo

      Apostolado Fiel Católico

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  2. Olá, Henrique!
    Creio ser necessário recorrer novamente a vosso auxilio.
    Recentemente, uma professora de sociologia exibiu à minha turma o filme "Descalço Sobre a Terra Vermelha" que retrata a vida do Bispo Emérito da prelazia de São Felix. O filme da-nos a ideia de que ele é realmente um herói e de que a Igreja ficou do lado dos poderosos e esqueceu-se dos pequeno. Todavia, creio -e espero- que esta historia esteja mal contada. Enfim, você possui algum conhecimento sobre estes acontecimentos?
    Fico no aguardo de sua resposta, querido irmão.

    Que Maria Santíssima nos conserve sob seu Misericordioso Olhar!

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  3. Já li duas obras, do papa emérito e apesar de a mídia o descrever como um introvertido, para não dizer coisas piores, nos livros onde ele tem liberdade para deixar fluir seus pensamentos, vemos o quão brilhante e terno ele é, que inteligência não é necessariamente acompanhada de frieza. Muito injustiçado e incompreendido foi este papa.

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  4. A Paz do Nosso Senhor Jesus Cristo
    A respeito do nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, este foi seu nome verdadeiro? Se não, qual seria seu verdadeiro nome?
    Creio eu que na prática Deus não se importa quando chamamos Ele de Jesus, Emanuel, Yeshua, e de tantas outras denominações. E sei também que a bíblia é clara em relação a este tipo de coisa, como você mesmo escreveu em uma de suas postagens:
    “Esses tais demonstram um interesse doentio por controvérsias e contendas acerca das palavras, que resulta em inveja, brigas e atritos constantes...” (1Tm 6, 4)
    Mas gostaria de que pudesse ter uma boa resposta à cerca deste assunto, pois o que não faltam é argumentos e acusações a respeito o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.

    PS: Desculpe meu comentário não ser a respeito da sua postagem.

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  5. PAPA BENTO É UM SANTO. UM GRANDE SANTO! E DOUTOR DA IGREJA. COMO SANTO TOMÁS DE AQUINO. É MUITO SABOROSO LER SEUS ENSINAMENTOS !!!!!
    URBANO MEDEIROS (MAESTRO) - MINAS GERAIS

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