São Damião de Molokai: vida, obra e exemplo de fé inabalável

NASCIDO EM FLANDRES, Bélgica, Damião cedo desejou a vida religiosa, tendo se radicado no Havaí onde, cumprindo a missão que lhe fora designada, exerceu frutífero ministério em uma colônia de leprosos, mesmo sabendo que viver lá significaria inevitavelmente tornar-se também um deles.

"Adeus, mamãe! Até o Céu!": foram estas as palavras de despedida do jovem religioso Damião (Damian) de Veuster, ao aproveitar um transporte que inesperadamente surgiu no caminho que trilhava a pé após uma peregrinação ao santuário mariano de Montaigu, acompanhado justamente de sua mãe e de uma cunhada. Era o início de sua viagem sem retorno para o longínquo então Reino do Havaí.

Quem deveria ir para o Havaí em missão religiosa era seu irmão mais velho, Panfílio, que o precedeu ingressando na Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria e Adoração ao Santíssimo Sacramento do Altar. A viagem de Panfílio fora cancelada por motivo de doença, e assim Damião, que almejava ser missionário, aproveitou-se do imprevisto e pediu ao superior que o permitisse partir como substituto.


Infância e adolescência

O jovem Damião envergando o hábito religioso

Seu nome de nascença era Jozef (carinhosamente reduzido, na intimidade, para 'Jef'), nascido aos 3 de janeiro de 1840 em Tremelo, região flamenga da Bélgica. Batizado no mesmo dia em que nasceu, era o penúltimo de uma série de oito filhos do casal Jan Frans e Catherine, que trabalhavam na área rural. A feliz família, – da qual alguns membros demonstraram vocação religiosa, – guardava respeitosamente os domingos e dias santos, nos quais nem mesmo a costura era permitida: Missa pela manhã, vésperas à tarde, e também descanso e recolhimento. Às refeições, a oração era conduzida pela mãe zelosa, em latim.

A vocação religiosa pouco a pouco desabrochava no pequeno "Jef". Certa vez, ele e seus irmãos, Paulina e Augusto, resolveram passar um dia inteiro em oração e penitência na solidão de um bosque. Foi na adolescência, porém, que o chamado tornou-se cada vez mais forte, apesar da vontade contrária dos pais, a quem chegou a dizer: "Deixem-me entrar no convento, ou Deus os castigará!".


Recebe o hábito da Congregação dos Sagrados Corações

Aos dezoito anos, a vocação religiosa já estava profundamente enraizada na sua alma. Em janeiro de 1859, acompanhando o pai em uma visita a seu irmão Augusto (já ingresso na Congregação dos Sagrados Corações), em Louvain, foi deixado por algumas horas no convento enquanto o Sr. Franz tratava de outros assuntos na cidade; quando este retornou à casa religiosa para buscá-lo, Jozef pediu para ficar, pois isso evitaria a dor das despedidas no lar. A permissão foi então dada pelo pai, que já entendia que o ingresso do filho à vida religiosa seria inevitável. Em menos de dois meses, recebeu o hábito religioso, passando a chamar-se Damião, iniciando assim o noviciado.

No ambiente religioso, surgiu em Damião a vocação para missionário, e passou ele a rezar diariamente nessa intenção junto à figura de São Francisco Xavier, apóstolo da Índia, pintada em uma janela. Posteriormente, quando ordenado presbítero, passou a usar as palavras "sacerdote missionário" após sua assinatura, hábito que manteve por toda a vida, pois era assim que se definia.


Protagonista de um simbólico funeral

Findo o noviciado, chega o momento dos votos solenes e perpétuos de pobreza, castidade e obediência. A cerimônia deu-se em 7 de outubro de 1860, na casa principal da Congregação, em Paris. Após as palavras do superior, Damião renunciou a qualquer propriedade pessoal, à constituição de família carnal e aos seus destinos. Teve então estendido sobre si um tecido mortuário sustentado por quatro religiosos professos, enquanto outros quatro portavam velas acesas caracterizando aquele momento como um enterro: era cantado o hino fúnebre Miserere, feita a aspersão do "defunto" com água benta, enquanto em voz baixa era recitado o Pai Nosso e outras preces, ao fim das quais sua "morte" simbólica foi selada, e em seguida o alegre e solene hino de ação de graças Te Deum.


Sacerdote missionário no longínquo Oriente

Ao contrário do irmão mais velho, Damião não tinha inicialmente esperança de se tornar sacerdote: seus estudos secundários se reduziam a poucos meses, e só lhe sobravam duas opções: irmão converso e irmão de coro. Os irmãos conversos podiam partir em missões, sendo geralmente destinados a construções de capelas ou residências para os missionários, e os irmãos de coro atuavam como encarregados da capela e da sacristia do convento, e por vezes ajudavam em algumas atividades nas escolas da congregação. Mas os superiores perceberam que Damião se destacava intelectualmente, e assim lhe permitiram preparar-se para o sacerdócio, tendo cursado um ano de Filosofia, latim, grego e francês em Paris; depois foi enviado de volta a Louvain, na Bélgica, para estudar Teologia, o que fez por dois anos.

A dor pela doença que acometeu seu irmão Panfílio, destinado inicialmente a ser missionário no Havaí, logo se transformou para Damião em alegria, pois teve resposta afirmativa ao pedido de permissão para substituí-lo na viagem que não conheceria retorno: após cinco meses singrando os mares, desembarcou o jovem religioso em Honolulu, capital do que então era um reino.

A viagem marítima encerrou-se no dia da festividade de São José (19 de março de 1864). No Havaí, após breve passagem pelo subdiaconato e diaconato, Damião foi ordenado presbítero aos 21 de maio do mesmo ano, na Catedral de Nossa Senhora da Paz. "Como eu tremia ao subir pela primeira vez ao Altar", escreveu o próprio ao superior geral da Congregação:

Como estava emocionado meu coração ao dizer pela primeira vez ao Verbo que descesse às minhas mãos; que afetos então sobrenaturais e diferentes para mim ali se formavam ao distribuir, em minha primeira Missa, o Pão da Vida a 150 ou 200 pessoas, das quais muitas provavelmente se haviam inclinado frequentemente ante seus antigos ídolos e que agora, totalmente vestidas de branco, se aproximavam com tanta modéstia e respeito à Santa Mesa."1


Ministério sacerdotal

Iniciou-se então a vida de sacerdote missionário para Damião, sob as ordens de seu superior religioso e do vigário apostólico (Pe. Modesto Favens e Mons. Louis-Desiré Maigret, respectivamente). Poucos dias após ser ordenado, o Pe. Damião foi enviado à Ilha Grande do arquipélago, onde passou a exercer seu ministério. As distâncias que tinha de percorrer eram muito grandes, o que o levou a enfrentar dificuldades para a Confissão frequente. Incansavelmente, ano após ano, construía capelas, além de distribuir os Sacramentos, ensinar nas escolas, cuidar de doentes, pregar ao povo, e assim anunciar o Evangelho.

Aos 4 de maio de 1873, em meio a outros irmãos, o vigário apostólico Mons. Maigret, bispo, pediu voluntários para se revezarem dando assistência aos leprosos na ilha de Molokai: alguns se apresentaram, sendo o Pe. Damião o escolhido para ser o primeiro, de uma alternância que não ocorreu, pois o encargo tornou-se definitivo. 


Leprosário insular

A lepra (hanseníase) surgira no Reino do Havaí em 1840, como consequência da imigração, sendo naquela época incurável e muito contagiosa. O isolamento era a única solução encontrada pelas autoridades para a terrível enfermidade que continuava a desafiar a medicina. Os leprosos, – várias centenas deles, – eram confinados na ilha de Molokai, a quinta em extensão territorial do arquipélago, mais precisamente em uma península envolvida pelo oceano e isolada do restante do território por uma barreira montanhosa. Os enfermos que ali moravam podiam ser acompanhados por parentes, mas isso era uma exceção, pois em sua maior parte eram abandonados e rejeitados. Havia medidas governamentais para apoio aos que ali estavam confinados, como a construção de um pequeno hospital, alimentos, algumas roupas e a visita eventual de um médico, mas tudo era rudimentar e muito aquém das necessidades básicas. Os óbitos eram frequentes (um a dois por dia) e o próprio Pe. Damião deu o exemplo, sepultando os cadáveres que por vezes não tinham o privilégio de gozar dessa atitude de respeito aos mortos.

Os habitantes dividam-se em dois povoados: Kalawao e Kalaupapa. As moradias eram em geral muito precárias, por vezes feitas com pedras ou vegetais, com cobertura de folhas. A promiscuidade entre os pobres leprosos imperava, sem distinção de idade ou sexo. Não se podia falar propriamente em higiene, pois a água era obtida de fontes longínquas, conduzida em toscos recipientes transportados nas mãos. Os maus odores exalados das feridas e dos dejetos eram especialmente nauseantes, sendo mesmo insuportáveis para um recém-chegado: Pe. Damião chegou a deslocar-se rapidamente para fora de certos ambientes e assim evitar ocorrências mais desagradáveis que não poderia controlar, como se pode perceber nesse registro: "Mais de uma vez, cumprindo junto a eles meus deveres sacerdotais, me vi forçado não somente a tampar as narinas mas inclusive correr para fora a fim de respirar ar puro". Escreveria ele, posteriormente, que o cachimbo que passou a usar atenuava em seu organismo os efeitos de tais emanações, pois o odor do tabaco, ao impregnar suas roupas, atuava como uma fragância que dissimulava as impregnações infectas.

Ao superior geral da congregação, o Pe. Damião escreveu em agosto de 1873:

Eis-me aqui, reverendíssimo padre, em meio a meus queridos leprosos. São muito hediondos de se ver, porém têm uma alma resgatada pelo preço do Sangue adorável de nosso divino Salvador. Ele também, em Seu divino amor, consolou os leprosos. Se eu não os posso curar como Ele, ao menos os posso consolar, e pelo santo ministério que Sua bondade me confiou espero que muitos entre eles, purificados da lepra da alma, apresentem-se ao Seu Tribunal em estado de entrar na sociedade dos bem-aventurados."

Diz também:

Acabo de fazer um pedido à Sua Grandeza [o bispo] para ampliar a capela. O odor infecto que emana de seus corpos e de suas feridas exigiria uma igreja grande para tornar o culto menos penoso. Algumas vezes me era difícil resistir durante a santa Missa e no sermão. É como o ‘já cheira mal' de São Lázaro. Enfim: Nosso Senhor suportou isso, e eu também o posso. Oxalá pudesse conseguir, por esse sacrifício, a ressurreição espiritual dos que, entre eles, ainda não saíram da tumba do pecado para viver a vida de graça que o bom Deus a eles oferece todos os dias."


Padre Damião entre os leprosos da colônia de Molokai

Mãos à obra

Diversas capelas foram construídas por iniciativa do Pe. Damião, tendo ele constituído um coro e uma banda de música, que passaram a atuar convenientemente nas Missas, nas procissões e nos funerais, e até mesmo nas recepções aos visitantes mais ilustres. Procurava demonstrar benquerença para com todos, participando de suas refeições, compartilhando seu cachimbo com outros homens, brincando com as crianças. Além disso, todos eram bem-vindos em sua casa. Mesmo antes de contrair a doença, algo que esperava serenamente, Pe. Damião se inseriu entre eles, pois ao dirigir a palavra aos que ouviam suas homilias dizia: "Nós, leprosos", mesmo sem ter a certeza de que um dia tal expressão se tornaria real.

Em poucos anos, o Pe. Damião fez florescer uma autêntica comunidade, bem oposta ao que encontrou quando chegou àquele verdadeiro "cemitério vivo": os moradores constituíam, quando ele ali aportou, uma verdadeira selva humana. Nas palavras do santo, extraídas de um relatório escrito em 1886:

À chegada dos novos leprosos, os antigos se apressavam a incutir neles a falsa máxima de que ‘neste lugar já não há lei'. Durante muito tempo me vi obrigado a combatê-la, vendo que se aplicava o mesmo às leis humanas e às divinas. Em consequência dessa teoria ímpia, a maioria dos solteiros, e dos casados que estavam separados de seus cônjuges pela lepra, viviam amontoados sem distinção de sexo. Muitas mulheres eram obrigadas a prostituir-se para conseguir amigos que as ajudassem durante sua doença. As crianças, quando fortes, eram empregadas como serventes. E quando a lepra havia progredido, tais mulheres e crianças eram expulsas de casa para buscar abrigo em qualquer lugar. Não era raro encontrá-las atrás de uma cerca esperando que a chegada da morte viesse pôr fim aos seus sofrimentos, ou que uma mão compassiva ou contratada os transportasse ao hospital. (...) Como muitos leprosos morriam, meu dever sacerdotal me oferecia amiúde a ocasião de visitá-los em suas cabanas e, ainda que minhas exortações se dirigissem principalmente aos moribundos, balançavam frequentemente as orelhas dos pecadores públicos, os quais pouco a pouco tomaram conhecimento das consequências de suas más condutas e começavam a se arrepender. A esperança do perdão de um Salvador misericordioso começava a reforma de sua má vida (...). Um meio dos mais eficazes para destruir a imoralidade tem sido a permissão para casar-se, dada aos leprosos não impedidos por um Matrimônio anterior (...). Uma grande bondade para com todos, um terno amor para com os necessitados, uma doce compaixão para com os doentes e moribundos, juntamente com uma sólida pregação a meus ouvintes, esse tem sido o procedimento constante do qual me tenho servido para introduzir os bons costumes entre os leprosos."

Sofrimentos

Um sofrimento que particularmente atormentou o Pe. Damião foi a dificuldade para se fazer a confissão frequente. Nos cinco primeiros anos, o isolamento da colônia de leprosos era total, por ordem do governo. Por ocasião de uma visita do superior provincial, o Pe. Modesto Favens, este foi impedido de desembarcar, limitando-se a se inclinar sobre a amurada do navio para ouvir as acusações de um rigoroso penitente que se aproximara em uma canoa, feitas em voz alta por estar proibido de subir a bordo a fim de evitar contágio.

Anos se passaram em meio a frutífero apostolado, mas o sacrifício foi aceito: a hanseníase tomou pouco a pouco o robusto organismo de Pe. Damião. Manchas foram surgindo na pele, tumorações foram se desenvolvendo em várias partes do corpo, a sensibilidade começou a desaparecer, mas naquela época o diagnóstico médico não era tão fácil e rápido como nos dias atuais. A certeza surgiu em janeiro de 1885 quando, após uma fatigante caminhada para o exercício do ministério, pôs o pé em uma vasilha contendo água escaldante pensando ser morna, e não sentiu incômodo algum: perdera a sensibilidade térmica, o que indicava estar leproso. Aos familiares, diz: "Trato de levar minha cruz com alegria, como Nosso Senhor Jesus Cristo".

Ao Pe. Léonor Fuesnel, então seu superior provincial, o Pe. Damião faz um pedido: "Pois bem, meu reverendo padre, já não tenho dúvidas, sou leproso; que o Bom Deus seja bendito! Não tenha muita pena de mim, pois estou perfeitamente resignado com minha sorte. Não peço mais que uma graça: suplicai a nosso Muito Reverendo Padre que envie algum [sacerdote] que possa uma vez ao mês descer até nossa tumba para confessar-me e, no restante do tempo, ocupar-se das capelas do outro lado da ilha, onde não há doentes".

Em uma carta dirigida a um escritor que visitara aquela colônia de leprosos, o Pe. Damião escreveu em outubro de 1885:

Desde o mês de março passado meu correligionário, o Pe. Alberto, deixou Molokai e o arquipélago para regressar a Tahiti. Desde então sou o único sacerdote em Molokai e tenho a fama de estar atacado eu próprio pela terrível doença. Os micróbios da lepra se instalaram finalmente na minha perna esquerda e na orelha. Minhas pálpebras começam a cair. Me é impossível viajar a Honolulu, pois a lepra se faz visível. Logo minha figura ficará deteriorada, suponho. Estando certo de que a doença é real, permaneço tranqüilo e resignado, e até sou mais feliz entre as pessoas aqui. O bom Deus sabe o que é melhor para minha santificação, e nesta convicção digo todos os dias um bom 'Fiat voluntuas tua' [seja feita a tua vontade]. Tenha a bondade de rezar por este seu amigo provado e recomendar-me, assim como aos meus desventurados leprosos, a todos os servidores de Deus."

A Eucaristia, seu Alimento

Pe. Damião era um entusiasta da sagrada Eucaristia. Afinal, a Adoração Eucarística fazia parte do espírito da congregação em que ingressara, e nas viagens pelas regiões entregues a seus cuidados ele lamentava não ter, por vezes, o Santíssimo Sacramento para junto a Ele apresentar suas preces, suas confidências, seus anseios. Em carta de maio de 1886 ao Pe. Alberto Montiton, seu grande amigo que se transferira de Molokai para Thaiti, se lê:

A terrível doença, cujo começo conheceis, faz progressos espantosos e ameaça impedir-me, talvez logo, de celebrar a Santa Missa e, não tendo outro sacerdote, eu me veria privado da santa Comunhão e do santo Sacramento. Tal privação é a que mais me custará e que tornará insuportável minha situação. Não é a doença e os sofrimentos o que me desencoraja; longe disso. Até aqui me sinto feliz e contente e, se me fosse dada a oportunidade de sair daqui em boa saúde, diria sem titubear: fico com meus leprosos."


Distinguido pelas autoridades

Apesar dos vários meses em que permanecera em uma verdadeira prisão, – pois esteve preso pela sagrada obediência, – pôde o Pe. Damião experimentar algum consolo: foi-lhe permitida a viagem a Honolulu sem cometer desobediência ou incorrer em censuras. Pelo contrário, recebeu a visita do próprio Rei do Havaí, Kalakaua I, de seu primeiro ministro Walter M. Gibson, e do bispo Mons. Bernard Hermann Koeckemann.

Em setembro de 1881 a princesa havaiana Lydia Liliuokalani havia visitado os leprosos em Molokai, e ficou tão comovida com a miserável situação em que se encontravam imersos associada à extrema dedicação do sacerdote missionário que não conseguiu pronunciar o discurso que havia preparado, cujo texto tinha às mãos. Retornando a Honolulu solicitou que o esforçado padre fosse investido como Comandante Cavaleiro da Real Ordem de de Kalakaua, honraria que a ele foi então concedida pelo soberano reinante em reconhecimento aos seus "esforços no alívio dos sofrimentos e na mitigação das dores dos infelizes", sendo humildemente aceita e considerada como uma atenção dada aos seus leprosos. A insígnia era uma medalha com a Cruz da Real Ordem de Kalakaua. Anos depois, em meio aos sofrimentos finais de sua enfermidade, o Pe. Damião exclamou: "O Senhor me condecorou com sua cruz particular: a lepra".


Pe. Damião já deformado pela lepra (hanseníase), à época uma moléstia terrível e incurável: verdadeira sentença de morte lenta e degradante


Trabalhando até ser abatido pela doença

Apesar da progressão implacável da doença, padre Damião não esmoreceu: ao contrário, continuou a ministrar os Sacramentos, a visitar os enfermos, a consolar os sofredores e, principalmente, a pregar o Evangelho. Aos 19 de março de 1889, completou 25 anos de ordenação presbiteral, porém no dia 28 do mesmo mês tombou, afinal, qual valoroso guerreiro de Cristo que sempre fora, prostrado em seu leito para não mais deixá-lo. Seu estado de saúde já era grave por demais.

Confessou-se ao Pe. Wendelin Moellers, que o assistiu, o qual, ele próprio, em seguida confessou-se ao santo homem que ali jazia, e juntos ambos renovaram seus votos religiosos. Este mesmo sacerdote foi encarregado pelo Pe. Damião de dizer ao superior geral que seu "mais doce consolo nesses momentos era morrer membro da Congregação dos Sagrados Corações". Em 15 de abril de 1889, após quase 16 anos entre os leprosos de Molokai e tendo-se tornado um deles, Pe. Damião partiu para a eternidade.

Contava apenas 49 anos, mas a aparência lhe atribuía idade muito superior. Foi sepultado no cemitério da comunidade em que vivia, mas em 1936 os seus restos mortais retornaram à Bélgica, sendo postos em um jazigo na igreja dos Sagrados Corações, em Louvain. Por ocasião da beatificação (feita por João Paulo II em 1995) os ossos de sua mão direita, – que tão bravamente e tanto batizou, ungiu, consagrou, abençoou, – retornaram ao Havaí.


Honrado, distinguido e venerado por católicos e não católicos

A veneração e o respeito pelo Pe. Damião de Molokai não se restringem à Igreja Católica: diversas confissões não católicas viram nele altíssimas qualidades, e ainda em vida ele foi distinguido com a admiração e o apoio (inclusive financeiro) advindos de agremiações não alinhadas com as convicções pelas quais o sacerdote missionário viveu e morreu. Uma detalhada carta aberta foi dirigida pelo escritor Robert Louis Stevenson a um ministro da religião por ele seguida, em firme e fundamentada defesa da memória do recém falecido Pe. Damião, vítima de críticas destrutivas que visavam a Santa Igreja através de seu dedicado servo.


São Damião de Molokai prestes a morrer para este mundo, aos 49 anos, totalmente debilitado pela doença contraída voluntariamente, por amor

Declarou à ocasião o grande líder espiritual e político indiano "Mahatma" Ghandi: "Se a assistência aos leprosos é tão cara ao coração dos missionários católicos, deve-se ao fato de que nenhuma obra exige, como ela, um espírito de sacrifício. Ela exige o mais elevado ideal, a mais perfeita abnegação. O mundo político e jornalístico não tem heróis os quais possa glorificar e que sejam comparáveis ao Pe. Damião de Molokai. A Igreja tem, entre os seus, milhares de pessoas que, como ele, sacrificaram sua vida em serviço dos leprosos. Valeria a pena pesquisar em qual fonte um tal heroísmo se alimenta".

Na presença do rei Alberto II da Bélgica e de sua esposa, a rainha Paola Ruffo de Calábria, o Santo Padre Bento XVI canonizou o Pe. Damião de Molokai, "Apóstolo dos Leprosos", aos 11 de outubro de 2009, quando passou a ser chamado São Damião de Molokai. Foi grande a alegria dos irmãos e irmãs da Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria e da Adoração Perpétua ao Santíssimo Sacramento do Altar espalhados pelo mundo.

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1. As citações literais deste artigo foram retiradas das fontes listadas abaixo:
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Notas bibliográficas:
BRION, Édouard. Le Père Damien de Molokai, apôtre des lépreux (versão chilena em espanhol intitulada 'El Camino de Damián', traduzida pelo Pe. Fabián Pérez del Valle SS.CC.), Santiago do Chile, maio de 2000
COURONNE, Bernard; LERENARD, André; MALRIEU, Montgeron. La canonisation du Père Damien de Veuster, website da Congregação dos Sagrados Corações (www.ssccpicpus.com)
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Ref.:
SAINT AMANT, Alejandro Javier. 'São Damião de Molokai, um pastor que deu a vida por suas ovelhas', disp. em:

rautos.org/artigo/9546/Sao-Damiao-de-Molokai--um-pastor-que-deu-a-vida-por-suas-ovelhas.html
Acesso 29/3/016

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Padre libanês fala sobre o Estado Islâmico, a perseguição aos cristãos e as relações entre cristãos no Oriente Médio


Por Igor Andrade – Frat. Laical São Próspero

PADRE SOUHAIL DIB ISSA, 44, sacerdote libanês e de família síria, ordenado na Síria aos 25 anos de idade, falou a Igor Andrade, – membro da Associação São Próspero, – sobre o panorama do cristianismo no Oriente Médio e os conflitos com os muçulmanos. É sempre útil e aconselhável que nos informemos a respeito de fatos tão complexos tendo como ponto de partida o testemunho de quem que viveu (e indiretamente ainda vive) estas realidades a partir de dentro, como experiência de vida, mais do que por meio de pesquisas e/ou estudos.


Em Poucas palavras, qual a história do cristianismo no Oriente Médio? Como era, como mudou e como está agora?

O cristianismo no Oriente Médio foi fundado pelo próprio Senhor Jesus Cristo e seus Santos Apóstolos, que começarem a pregar em Jerusalém e em todo o território da Síria (cf. At 11). O cristianismo crescia, com prodígios e sinais, até o século VII. Foi quando o dito "estado islâmico" (EI) invadiu o Oriente médio matando milhares de cristãos. Apenas os que declararam fé no Islã foram salvos da morte e transformados contra os cristãos que sobraram, graças a lei do imposto pago ao EI. Agora, os cristãos são muito poucos, lutando para sobreviver.


Como é a relação entre os cristãos e os muçulmanos?

Na verdade há dois tipos de muçulmanos. Há os fanáticos que nos consideram infiéis e perseguem os cristãos, e uma segunda parte, de "moderados", que consideram os cristãos cidadãos de segundo grau.


O Sr. acha, a partir do que viu e viveu lá, que as perseguições sofridas pelos cristãos são por motivo religioso?

Sim. O motivo é cem por cento religioso.


O 'estado islâmico', localizado em Síria e Iraque, não cessa de inovar nos requintes de crueldade dos seus métodos. Recentemente, divulgou um vídeo que mostra quatro prisioneiros acusados de espionagem (um idoso) acorrentados e sendo lentamente queimados vivos


Há muitos cristãos que vivem, por causa da guerra, no exílio?

Se calcularmos as pessoas de todos os países árabes, como Palestina, Líbano, Síria, Jordânia, Iraque, Egito... São quase 20 milhões de cristãos exilados(!).


Há unidade entre católicos e ortodoxos na região?

Sim, com certeza. O que os une, primeiro, é o Cristo e Nossa Senhora, depois o fato de ser país árabe, a mesma cultura, mesmas tradições...

Pe. Souhail diz que no Oriente Médio a divisão entre cristãos católicos e ortodoxos não é tão "forte" como no Brasil, especialmente para o povo, que tem laços muito fortes de famílias mistas, que não veem problemas em participar da Liturgia ou de celebrações de casamentos em uma e outra Igreja; são frequentes também os casamentos mistos (entre católicos e ortodoxos) onde um padre católico vai à celebração ortodoxa e abençoa, ou um padre ortodoxo vai à celebração católica e participa desta. A exceção fica por conta da Comunhão: quando um católico vai a uma celebração ortodoxa, participa de tudo, mas não comunga; da mesma maneira fazem os ortodoxos.


Como está a fé deles? Na atual situação, o senhor acha que “o sangue dos mártires é semente de novos cristãos”?

Sim, porque a igreja foi construída sobre a fé dos primeiros mártires a partir dos santos Apóstolos, que morreram mártires. Essa foi sempre a fé da igreja.


Uma reação armada por parte dos cristãos seria uma alternativa para poupar vidas?

Com certeza, se nós cremos no Corpo místico de Jesus e que nós somos os membros deste Corpo santo. Se a sua mão está ferida, afeta todo o seu corpo, e o sangue derramado desta mão é o sangue do corpo todo.


A comunidade internacional faz pouco caso do genocídio dos cristãos?

Sim, faz pouco caso. (...) Ajudam aos muçulmanos mais do que aos cristãos perseguidos1. Aqui no Brasil o governo abriu a porta dos refugiados da Síria e vieram muitas famílias cristãs, mas o governo brasileiro não tem capacidade de mantê-los materialmente; nisso, até agora, nós não notamos nenhuma ajuda para essas famílias da parte de igreja.

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1. Dentro desta mesma realidade, vemos por aqui diversas declarações da parte de nossos políticos, – especialmente os de ideologia esquerdista, supostamente muito preocupados em proteger as minorias, – contra a 'islamofobia', isto é, o preconceito contra muçulmanos, mas não se toca no assunto dos milhões de cristãos (homens, mulheres, idosos e crianças) que estão sendo cruelmente torturados, assassinados e perseguidos, sendo obrigados a abandonar suas casas e municípios para escapar da barbárie.
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Sobre a Moral e o senso comum

"Chegará o dia em que teremos que provar ao mundo que a grama é verde" (G. K. Chesterton)

RECEBEMOS AO ARTIGO "Por que o liberalismo não é a solução – parte II", de um leitor que se identifica como "Prof. Paiva", um comentário do qual consta o trecho que reproduzimos abaixo, seguida de nossa resposta:

Mas eu estou vendo um 'calcanhar de Aquiles' nessa sua linha de pensamento. Pelo jeito o Sr. é um filósofo? Então, vamos desenvolver o problema. Filosofia não é a minha especialidade mas eu vejo um buraco muito grande na sua defesa que é o seguinte: confiar no bom senso humano. Isso funciona? Acho que nunca funcionou, por isso temos tenta injustiça no mundo.
Um exemplo, eu não conheço povo mais sensato do que o alemão, e a maioria deles elegeu e apoiou Hitler até o fim."

Responde Igor Andrade, da Frat. Laical São Próspero, autor do referido artigo:

Salve Maria!

Agradeço imensamente o comentário e à oportunidade de aprofundar mais nesse assunto que tanto me atrai. Bom, o senhor focou aqui na questão do bom senso. Sinceramente, creio que nossa cultura trata com descaso o ser humano enquanto ente racional. Novamente destaco que o senso comum dos homens (ou 'bom senso') provém da razão, que é, como nos ensina a Filosofia clássica, a parte mais nobre do homem.

Sobre o seu questionamento relativo a “confiar no bom senso humano”, é muito interessante ressaltar um ponto que, à primeira vista, fica um tanto quanto obscuro: o bom senso tem a ver com a realidade prática do dia a dia, não com a teoria moral.

Tomemos, por exemplo, um ponto da Lei Natural (que todo ser humano deve seguir ) impressa no Decálogo mosaico, “Não Matarás”: ora, todos os homens da Terra (que vivem em sociedade) sabem que matar outro homem é errado, – inclusive os assassinos. – Não necessariamente o sabem teoricamente, mas o sabem na prática, isto é, vivem como se matar fosse errado, ainda que não representem este princípio no intelecto.

Mais interessante ainda é que isso é observável até nos mais tirânicos assassinos, que são aqueles que justificam o seu erro. Estes podem dizer que matar não é errado, quando apoiam o aborto e outras atrocidades, mas não vivem em consonância com o que pregam. “Mas os assassinos que dizem isto”, – poderão me questionar, – “eles mesmos não matam?”. Sim, podem até fazê-lo, mas estão conscientes da sua maldade (num certo nível de suas consciências, sabem que matar é sempre errado). E mais: defendem-se se alguém tentar matá-los. 

Usei tal exemplo por ser, na minha opinião, o mais didático. Mas isso pode ser estendido para: “Não roubarás” e todos os demais Mandamentos do Decálogo mosaico. Por quê? Porque tal realidade nos é imposta pela Razão. A Razão do homem, devido sua liberdade, pode ser afetada para o bem (virtude) ou para o mal (vício), por isso devemos agir com a Recta Ratio (Reta Razão – aprofundar este ponto demandaria muito espaço, aqui, talvez o faça em outro artigo).

Sabemos então que o homem vive vislumbrando a Lei moral, isto é, o bom senso. Contudo, “todo homem deseja, por natureza o conhecimento”1; assim sendo, o esforço intelectual se faz necessário, para que essa lei seja devidamente representada em nosso espírito. Percorremos, pois, um caminho saindo de um estado de inocência para um estado de ciência.

Transcrevo aqui um trecho da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, onde Kant explicita essa mesma realidade, destacada na pergunta (grifos meus):

A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. E é por isso que a própria sagacidade — que de resto consiste mais em fazer ou não fazer do que em saber — precisa também da ciência, não para aprender dela, mas para assegurar às suas prescrições para lhes dar estabilidade. O homem sente em si mesmo um forte contrapeso contra todos os mandamentos do dever que a razão lhe representa como tão dignos de respeito: são as suas necessidades e inclinações, cuja total satisfação ele resume sob o nome de felicidade. Ora a razão impõe as suas prescrições, sem nada aliás prometer às inclinações, e também como que com desprezo daquelas pretensões tão tumultuosas e aparentemente tio justificadas Daqui nasce uma dialética natural, quer dizer uma tendência para opor arrazoados e subtilezas às leis severas do dever, para pôr em dúvida a sua validade ou pelo menos a sua pureza e o seu rigor e para as fazer mais conformes, se possível, aos nossos desejos e inclinações, isto é, no fundo, para corrompê-las e despojá-las de toda a sua dignidade, o que a própria razão prática comum acabará por condenar.
É assim, pois, que a razão humana comum, impelida por motivos propriamente práticos e não por qualquer necessidade de especulação (que nunca a tenta, enquanto ela se satisfaz com ser simples sã razão), se vê levada a sair do seu círculo e a dar um passo para dentro do campo da filosofia prática. Aí encontra ela informações e instruções claras sobre a fonte do seu princípio, sobre a sua verdadeira determinação em oposição às máximas que se apoiam sobre a necessidade e a inclinação. Assim espera ela sair das dificuldades que lhe causam pretensões opostas, e fugir ao perigo de perder todos os puros princípios morais em virtude dos equívocos em que facilmente cai. Assim se desenvolve insensivelmente na razão prática comum, quando se cultiva, uma dialética que a obriga a buscar ajuda na filosofia, como lhe acontece no uso teórico; e tanto a primeira como a segunda não poderão achar repouso em parte alguma a não ser numa crítica completa da nossa razão.

Creio ter respondido suficientemente este ponto, mas novamente reitero: o ser humano carrega a mancha do Pecado original; não somos anjos. Ainda trocamos o Sumo Bem por bens menores e passageiros nesta vida. Mas não nos esqueçamos: nossos Pais comeram do fruto da Ciência do Bem e do Mal: nossa razão pode ser fonte de bem viver. Evidentemente, admito que a ação da Graça é extremamente necessária para bem agir, mas a parte que cabe ao homem realizar já foi dada por Deus pela Razão.

No artigo indicado abaixo, é tratada a dignidade do ente racional; sugiro a leitura para a melhor compreensão dos princípios que apresentei ao longo desta argumentação:

• A dignidade do ente racional no pensamento kantiano (clique para ler)

Regnare Christum Volumus!

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1. Aristóteles, início de 'Metafísica' I (IV aC).
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Por que o liberalismo não é a solução – parte II

G. K. Chesterton

Por Igor Andrade – Assoc. São Próspero e Movimento Somar para Vencer

RECEBEMOS DE UM LEITOR anônimo, como comentário ao post "Por que o Liberalismo não é a solução" as perguntas que reproduzimos abaixo, seguidas das respostas do autor daquele artigo:

Henrique ou Igor, eu gostei do texto, eu tinha dúvidas sobre isso pq vejo sites católicos criticando o liberalismo, mas gostaria de fazer uma pergunta: O liberalismo não é melhor do que o socialismo? Pelo que eu entendi o texto coloca os dois no mesmo saco?
Outra coisa que eu queria saber é o seguinte: Se o autor é contra as liberdades individuais porque o capitalismo liberal pode chegar no extremo de usar até o aborto como um comércio, então quem deve controlar as coisas? Quem vai dar os limites p'ara o indivíduo? O Estado? Talvez vai dizer que é a igreja, mas o Estado é laico, fora que tem gente de toda religião, então não tem como a Igreja controlar tudo. Então teria que ser o Estado, mas quem garante que o Estado vai fazer aquilo que é certo? Ninguém, a gente fica sempre nas mãos de um maluco populista como o Hitler ou o Stalin (ou o Lulla) que ganha a eleição e vai ditar as regras pra todos. Não é melhor então garantir a liberdade dos indivíduos?
Se o capitalismo não é perfeito, isso eu concordo, mas é bem melhor do que o comunismo que sempre acaba em tirania. Isso é o que eu entendo. Voces poderiam me ajudar um pouco mais?"

Salve Maria! Irmão, começo agradecendo o seu comentário, o Sr. não faz ideia de o quanto isso é eficaz para o meu trabalho. Agora vou procurar aprofundar o necessário de acordo com as suas perguntas, na ordem que o Sr. mesmo as dispôs. Abaixo:


O liberalismo não é melhor do que o socialismo?

Isso depende muito do ponto de que se parte. Olhando exclusivamente do ponto de vista econômico, o Liberalismo é muito melhor. Ou seja, se o objetivo é unicamente fazer dinheiro, o liberalismo ganha. Contudo, o preço a ser pago é muito alto (isso se você considera a dignidade humana).


Pelo que eu entendi o texto coloca os dois no mesmo saco?

Como mencionei acima, procurei tratá-los sem "passar por cima" das suas evidentes diferenças, porém demonstrando que ambas as correntes partem do mesmo princípio: o utilitarismo

Basicamente, o utilitarismo olha o mundo buscando a otimização das coisas para proporcionar "a maior quantidade de felicidade para a maior parte possível" (a felicidade NESTA VIDA como bem Maior). Esse princípio utilitarista pode ser “trabalhado” de dois modos distintos: o Utilitarismo Altruísta e o Utilitarismo Egoísta.

• O Utilitarismo Altruísta pode ser reduzido – dizendo bem porcamente, para fins didáticos – às doutrinas de “esquerda” (sim, é um termo pobre, mas é o mais prático), que visa proporcionar felicidade (aqui e agora, nesta vida) para a maior parte de pessoas, “distribuindo” os bens que proporcionam essa felicidade. 

Neste sentido, Nazismo (Nacional Socialismo), Fascismo, Stalinismo, Leninismo e todas as doutrinas coletivistas, de modo geral, entram num mesmo quadro.

• Já o Utilitarismo Egoísta visa a felicidade (imediata) do indivíduo, do “eu”; e é aí que o Liberalismo se encaixa, porque é individualista. Agora procedam-se algumas classificações: Liberalismo Clássico, Escola Austríaca, Escola de Chicago, Libertarianismo e todas as doutrinas que supervalorizam o indivíduo e tratam o próximo como instrumento de trabalho para se chegar a um fim específico, que é a felicidade nesta vida entram neste mesmo rol.

Sobre a linha liberal – para que não me acusem de mal interpretá-la – sugiro fortemente a leitura do magnífico romance "A Revolta de Atlas", da autora libertária Ayn Rand. A maior parte do livro é dedicada da descrever a situação de um país (no caso, os EUA) repleto de gente incompetente e sentimentalista, de um governo paternalista e de uma economia decadente e uma sociedade com cada vez menos liberdade individual (parece MUITO o Brasil de hoje). A proposta da protagonista é justamente que os mais capazes (os 'Atlas' que carregam o mundo nas costas) passem por cima da dignidade humana para atingir seus objetivos. Para um romance dá certo. Mas o mundo real não é um romance. Quem é John Galt?1

De todo modo, ambas as linhas utilitaristas legitimam a moral relativista e tratam o ser humano (enquanto ente racional e livre) como um obstáculo a ser ultrapassado. Lembra do princípio maquiavélico “Os fins justificam os meios”? Pois bem, tanto Liberalismo quanto o Socialismo seguem tal doutrina, ignorando o princípio da caridade e da possibilidade de se colocar no lugar do outro – a Regra de Ouro do Evangelho.


Se o autor é contra as liberdades individuais (porque o capitalismo liberal pode chegar no extremo de usar até o aborto como um comércio), então quem deve controlar as coisas? Quem vai dar os limites para o indivíduo? O Estado? Talvez vai dizer que é a igreja, mas o Estado é laico, fora que tem gente de toda religião, então não tem como a Igreja controlar tudo. Então teria que ser o Estado, mas quem garante que o Estado vai fazer aquilo que é certo?

O Sr. se equivocou. Eu sou completamente A FAVOR da liberdade individual e completamente CONTRA esse Estado inflado que manda e desmanda na vida dos homens. Sobre “quem deve controlar as coisas”, eu acredito no bom senso que a Razão desenvolve naturalmente nos homens. Como disse G. K. Chesterton, o “Apóstolo do Senso Comum”: “O novo tipo de governo comercial irá combinar tudo o que há de pior em todos os planos para um mundo melhor” ('Um Esboço da Sanidade').

"Os limites” são impostos pela moral racional (aqui estou entrando em filosofia prática), por isso sugiro a leitura da obra de Chesterton (clique para saber mais) e da própria Doutrina Social da Igreja (Rerum Novarum, Quadragesimo Anno, Centesimus Annus, etc.). Aconselho também a leitura da obra "A Política da Prudência", de Russell Kirk.

Termino aqui agradecendo pelo seu comentário e fazendo votos para que o Sr. compreenda sempre mais e se empenhe em trabalhar para melhorar, naquilo que for possível, o nosso país, sempre lembrando que nesta vida seguimos “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”. REGNARE CHRISTVM VOLVMVS!

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1. Para os que já leram 'A Revolta de Atlas', a frase 'Quem é John Galt?' é bem conhecida. Tornou-se um slogan libertário e já foi usada em manifestações por todo o mundo. 'Quem é John Galt?' basicamente resume a pergunta 'Quem move o mundo e quem é culpado quando ele para?'. (N. do E.)
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Não acontece só por aqui... Sobre a Marcha pela Vida no Peru e o modus operandi da mídia ideologizada

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A MARCHA PELA VIDA 2016 fez história no último sábado, 12, no Peru, tornando-se o evento que reuniu a maior multidão em defesa da vida e rechaço à legalização do aborto no país. Entretanto, sem precisar fonte alguma, a agência de imprensa espanhola EFE converteu a cifra oficial de 750 mil participantes a apenas 10 mil(!).

Às 19h (horário local) do dia 12 de março, o Arcebispo de Lima e Primaz do Peru, Cardeal Juan Luis Cipriani (foto), anunciou a cifra oficial do volume de participantes da Marcha pela Vida: 750 mil pessoas fizeram todo o percurso para defender “o nosso primeiro direito”. – Enquanto isso, circulava já há cerca de duas horas uma matéria da agência espanhola EFE "informando" que "10 mil pessoas" haviam participado do evento(!).

Em declarações ao Grupo ACI, Carol Maraví, porta-voz da Marcha pela Vida 2016, explicou: “Nós temos a quantidade de pessoas pelas medidas do percurso, pontos de concentração e imagens de helicóptero”. De fato é inegável, – bastando que se olhe a foto do cabeçalho deste artigo para confirmá-lo, – que centenas de milhares compareceram ao evento.

À noite ainda haviam muitas pessoas descendo da avenida Brasil para a praia, na área conhecida como Costa Verde, para participar do concerto de encerramento do evento. A porta-voz da Marcha pela Vida criticou que existam meios como a EFE, que “manipulam e tratam de criar, com más intenções, uma cifra inventada. Quem lhes deu essa cifra? Ninguém!”, precisou.

O Grupo ACI contatou David Blanco, editor chefe da agência EFE no Peru, responsável pela absurda estimativa. Perguntado em que teria se baseado para definir que somente haviam 10 mil participando do evento, respondeu simplesmente: “Foi uma cifra aproximada, foi o cálculo feito pelas pessoas da agência EFE que estiveram no evento. Baseamo-nos em nossas análises”(!)... Em outras palavras, foi divulgada "oficialmente", como se fosse um fato, a mera opinião de um grupo evidentemente não imparcial. Acabou reconhecendo depois o editor chefe da mesma EFE, que assistiu a marcha pela TV, que foi “o cinegrafista” quem fez o cálculo estimado, sem consultar nenhum porta-voz do evento nem as autoridades policiais(!).

Consultado acerca de por que não corrigiram a informação depois da reportagem, quando foi anunciada a verdadeira cifra, Blanco disse que “neste momento não estamos apenas atentos a este evento. A notícia foi divulgada e daí já passamos a outro tema, (...) e já não comentamos novamente a respeito”(!). Disse ainda que os organizadores do evento, se estiverem preocupados, devem enviar à agência um comunicado de imprensa. “Se esse comunicado for enviado, tomaremos em conta”, disse. “Essa seria uma nota seguinte. A anterior já foi divulgada, você sabe como funciona isso, já foi publicada e não pode ser retirada”, expressou.

O problema, porém, é ainda mais grave do que parece. O Grupo ACI investigou e constatou que a agência EFE, ao contrário do que afirmou Blanco, costuma publicar sim atualizações e correções das suas notas. Por exemplo, no dia seguinte mesmo ao da Marcha pela Vida, a EFE publicou uma correção de dados em uma nota menor, que tratava do caso de um montanhista ferido em Serra Nevada.

Consultados pelo Grupo ACI, os representantes da Marcha pela Vida precisaram que o comunicado com a cifra de participantes foi, sim, enviado à agência EFE. Além disso, diz Carol Maraví, o trabalho dos veículos de comunicação “é informar, e para informar tem obrigação de estar no lugar dos fatos”. Independente de os jornalistas simpatizarem ou não com determinada causa ou evento, “a população tem o direito de saber a verdade”, pontuou. Além disso, destacou que a Marcha pela Vida consegue converter, a cada ano, a defesa do direito a viver em um grande evento público no qual “famílias inteiras participam e livremente saem às ruas a fim de dizer sim à vida e não ao aborto”.


* * *


Enquanto isso, do lado de cá... – Desnecessário dizer que o trabalho da chamada "imprensa marrom" nos veículos de comunicação ideologizados é sempre muito semelhante: desinformar, distorcer, desqualificar a oposição, ignorar ou, se não for possível, minimizar a importância dos eventos que contrariam a causa que patrocinam.

Também no delicado momento político atual do Brasil, os exemplos se multiplicam, com números grosseiramente manipulados e patéticas tentativas de desqualificar as recentes maiores manifestações populares da história da América latina e do mundo ocidental. Alguns tentam dizer que são manifestações "contra a corrupção", de modo genérico. Outros tentam reduzir a sua importância e legitimidade, – como o jornal "Folha de São Paulo", um velho instrumento do esquerdismo em nosso país, que em matéria tentou insinuar que a massa de milhões de pessoas espalhadas por todo o país era constituída apenas de pessoas ricas(!), e que portanto não representariam "o povo" (ora, se toda aquela multidão reunida em todas as capitais do país fosse formada realmente exclusivamente por pessoas ricas, então o nosso país estaria entre os mais ricos do mundo). Presta-se assim um enorme desserviço à Pátria, alimentando-se o velho discurso de ódio socialista do "nós contra eles".

Bem mais grave do que isso, apenas dois dias após toda essa massiva manifestação popular, o alvo principal da insatisfação do povo, – o ex-presidente Lula (citado 186 vezes nas investigações de corrupção da operação Lava Jato), – foi empossado como ministro-chefe da Casa Civil, numa clara manobra para escapar da condenação e da cadeia. Vai, na prática, por um claro golpe de Estado, assumir do Palácio do Planalto a presidência da República do nosso país. Um criminoso e chefe de quadrilha que rasga a Constituição e dá um tapa na cara de cada cidadão de bem deste país retoma o poder (que nunca perdeu de fato) e agora volta a nos governar oficialmente. Situações que nos levam a refletir sobre que tipo de "democracia" é a que temos...

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Fonte:
ACI Digital, com ICatólica, disp. em:
http://www.icatolica.com/2016/03/como-agencia-efe-reduziu-750-mil.html
Acesso 16/3/016
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Por que o Liberalismo não é a solução

Adam Smith e Karl Marx: diferentes, mas com alguma coisa em comum

Por Igor Andrade – Assoc. São Próspero

NESTES TEMPOS de crise política e social, – não só no Brasil, mas no mundo, – já é um fato evidente que o socialismo, nas suas mais variadas formas de se apresentar, não é um caminho viável. Seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista ético e político, o socialismo nunca deu e nunca dará certo, porque contraria a própria natureza humana, tratando o homem não com a “dignidade de ente racional”1, mas como um número ou como um mero animal. No fim, "os porcos viram os homens"2.

Do outro lado, está o Liberalismo, muito atrativo com suas comidas deliciosas, seu cinema repleto de efeitos especiais, seus videogames viciantes, suas armas semiautomáticas, sua liberdade... Lembra-me muito uma situação que todos – exceto, talvez, Nossa Senhora (mas não tenho certeza quanto a isso) já passamos, inclusive o Cristo: a tentação ao pecado:

O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: Dar-te-ei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares.
(Mt 4, 8-9)

Muito semelhante à proposta de um mundo liberal, não é? Quem assistiu ao filme “O Lobo de Wall Street”3 sabe bem do que estou falando. Quem viveu (ou vive) como o protagonista, mais ainda. Sim, meu caro, o capitalismo não é amigo da humanidade. Se o sistema socialista é o "lobo-mal" que quer devorar os três porquinhos, o liberal quer vender um porquinho pelo preço de dois, juntar o dinheiro e criar um império de venda de carne suína, passando por cima de quem for preciso.

Estas são afirmações soltas, mas... qual o fundamento? Como posso dizer... é a realidade das coisas quem o diz. Isso se constata olhando (ou vivendo) o mundo corporativo e suas consequências, em cujos detalhes não vou me deter, mas gostaria de dar um exemplo que desenvolverei daqui a três parágrafos: a indústria do aborto.

Por que isso ocorre? Porque o Liberalismo é uma ideologia que, como toda ideologia, não se curva diante da realidade, não se conforma com a objetividade do mundo e se põe, como o alemão do bigodinho, “para além do bem e do mal”.

Liberalismo e Socialismo – dicotomia grosseira que me provoca aversão – são duas correntes econômicas distintas que têm o mesmíssimo fundamento: o erro do materialismo. O absurdo de tomar a felicidade nesta vida como o autêntico fim último do homem, como se não houvesse nenhuma “terra além-mar”, como se o homem fosse um animal com defeito de fábrica que anseia por um infinito inexistente.

O modo com que o Socialismo promete o paraíso na Terra creio que já conhecemos bem, mas e o Liberalismo? Como disse Tom Jobim, “o dinheiro não é tudo. Não se esqueça também do ouro, dos diamantes, da platina e das propriedades”; em outras palavras, a satisfação plena do homem vem pela soma dos bens materiais. O Liberalismo ignora que nesta vida apenas desenvolvemos a dignidade de ser feliz, aqui nos é dada a oportunidade de alargar o coração para receber o Prêmio.

Porém, por partir da premissa utilitária, a moral liberal possibilita atos desumanos como o aborto. Quem assistiu ao documentário "Blood Money" (clique aqui para assistir ou assista mais abaixo) sabe perfeitamente o que é a indústria do aborto e tem uma ideia de quanto dinheiro ela movimenta, além da absoluta falta de humanidade envolvida no processo todo. Quem acompanhou o escândalo envolvendo o grupo abortista Planned Parenthood (clique aqui e leia) sabe o quão desumanos e frios podem ser os homens que têm no dinheiro o fim último de suas vidas.

Creio que o que disse até aqui tenha sido apenas uma breve introdução a um assunto tão profundo, que afeta tão diretamente a essência de nossas vidas, e que certos grupos estão propondo como alternativa política, econômica e cultural para o Brasil, nossa Terra de Santa Cruz.

Quero deixar claro que neste artigo tomei “Liberalismo” como termo genérico que compreende os princípios da doutrina de Adam Smith, da Escola Austríaca, da Escola de Chicago, – enfim a “doutrina” libertária de modo geral quanto aos princípios, já que essas diversas linhas de pensamentos têm diferenças. Sem babaquice ideológica, por favor, entendam os leitores que não estou aqui generalizando todas as situações.


Documentário 'Blood Money' dublado:


_________________
1. Referência à Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant.
2. Referência ao livro “A Revolução dos Bichos”, de George Orwel.
3. Filme de Martin Scorsese protagonizado por Leonardo DiCaprio baseado nas memórias de Jordan Belfort, famoso corretor de títulos da bolsa norte-americana que retrata o modo de vida materialista levado às últimas consequências.
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Introdução à Bíblia ou às Sagradas Escrituras - estudo V

Os quatro Evangelistas, por Jacob Jordaens (1625–1630)

Os livros considerados canônicos pelos primeiros cristãos

GRANDE ERA O MATERIAL literário de que dispunham os primeiros cristãos, no que diz respeito à manutenção da Fé. Pelo fato de Jesus e os Apóstolos utilizarem a versão grega da Septuaginta (como vimos em estudo anterior), esta também passou a ser de uso da nascente Igreja Apostólica (KELLY, 1978; Soc. Bíblica do Brasil, 2003, V). No início do primeiro século já estavam disponíveis as epístolas paulinas e outras cartas então chamadas “Católicas”1, como as primeiras epístolas universais de S. Pedro e S. João.

Na segunda metade deste mesmo século, ficaram disponíveis os quatro Evangelhos, a epístola universal de S. Tiago, as segundas epístolas de S. Pedro e S. João, a terceira de S. João, a carta aos Hebreus e o livro do Apocalipse. Com a definição do Cânon de Jâmnia (final do séc. I – saiba mais aqui), levantou-se na Igreja nascente uma dúvida quanto à canonicidade dos livros do AT que não encontravam correspondência em tal cânon. Por consequência, esta dúvida se estendeu aos livros cristãos que lhes faziam referência. O questionamento a estes livros da literatura cristã, produzidos no período apostólico (séc. I), deu margem para que outros livros do mesmo período também fossem questionados pelas razões mais diversas. Esta motivação se deu principalmente pelo surgimento dos primeiros grupos sectários, como os judaizantes2 е os gnósticos, sendo que estes últimos produziam sua própria literatura.

A questão dos livros canônicos foi ainda mais agravada pelo fato de que os Apóstolos não deixaram para a Igreja esta definição. Realmente, nem poderiam tê-lo feito. Em At 12,1-19 lemos que S. Tiago (irmão de S. João) foi morto à espada por Herodes. Sua morte se deu antes mesmo da conversão de S. Paulo, e são as epístolas paulinas as Escrituras mais antigas do NT. Portanto, Tiago nem sequer conheceu qualquer escritura do NT. Paulo e Pedro morrem em Roma, sob o reinado de Nero, aproximadamente em 45 d.C. Neste tempo não estavam disponíveis ainda nenhum dos Evangelhos.

Os demais Apóstolos foram evangelizar nos lugares mais longínquos da Terra (por exemplo, S. Mateus na Etiópia, S. Tomé na Índia, etc). Até o séc. III, os cristãos das regiões bárbaras ignoraram a existência de qualquer um dos livros do NT (IRENEU, 1995, p. 252-254). Com a morte de todos os Apóstolos, já no início do segundo século, seus sucessores legítimos assumem o seu Ministério dado por Cristo, confirmando toda a Igreja na Doutrina Apostólica que haviam recebido pessoalmente de seus mentores.

Neste período, começaram a aparecer seus próprios escritos. Dentre eles se destacam a Primeira Carta de Clemente aos Coríntios, as sete Cartas de Inácio de Antioquia, as Cartas de Policarpo de Esmirna, as cartas de Pápias de Hierápolis e outras. Muitas destas cartas eram recebidas como canônicas pelos fiéis. Como se vê, o conjunto de livros que deveriam ser considerados canônicos, pela Igreja Cristã, ainda era uma grande interrogação nos nos primeiros séculos. A literatura oriunda dos grupos heréticos começou a confundir os primeiros cristãos, porque estas lhes eram apresentadas como escrituras sagradas e inspiradas oriundas dos Apóstolos (ex: o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe, etc.); e aos poucos foram tomando lugar nos estudos catequéticos e nas celebrações de culto.

É neste contexto que a literatura cristã pós-apostólica cresceu de forma exponencial, com vários textos em defesa da antiga e autêntica Fé apostólica sendo produzidos contra os grupos heréticos que cresciam. Nesta disputa, um tema que não poderia faltar, é claro, são os livros que deveriam ser considerados canônicos. Através dos escritos antigos que se conservaram até nosso tempo, veremos qual foi o testemunho dos primeiros cristãos sobre o conjunto dos livros sagrados.


Testemunhos do séc II

1. Melitão de Sardes – O testemunho individual mais antigo de que se tem notícia sobre as Escrituras é o de Melitão, Bispo de Sardes. Conforme uma citação de uma carta de Polícrates ao Papa Vítor, Melitão é “continente, vivendo todo no Espírito”. Sabe-se que endereçou uma apologia em favor dos cristãos ao Imperador Marco Aurélio. Visitou os lugares santos para estudar o cânon do AT. Seus escritos lamentavelmente se perderam com o tempo. No entanto, seu testemunho sobre as Escrituras Sagradas foi preservado por Eusébio de Cesareia em sua “História Eclesiástica”. 


Eusébio de Cesareia
Segundo Eusébio, no início do prefácio da obra “Éclogas”, desta forma Melitão relaciona os livros canônicos do AT:

Melitão a Onésimo, seu irmão. Saudações, Visto que muitas vezes manifestaste o desejo, inspirado pelo zelo relativamente à doutrina, de possuir extratos da Lei e dos profetas sobre o Salvador e o conjunto de nossa fé, e ainda quiseste conhecer com exatidão o número dos antigos livros e a ordem que seguem, dediquei-me a tal tarefa, uma vez que conheço teu zelo pela fé e tua aplicação ao estudo da doutrina. O Amor de Deus sobretudo faz com que o aprecies, enquanto lutas tendo em mira a salvação eterna. Tendo ido, portanto, ao Oriente e tendo estado até mesmo no lugar onde a Escritura foi anunciada e cumprida, tive exato conhecimento acerca dos livros do antigo Testamento. Levantei uma lista, que te envio. São os seguintes os seus nomes: de Moisés cinco livros: Gênesis, Exodo, Números, Levítico, Deuteronômio; Jesus Navé [Josué), Juízes, Ruth; quatro livros dos Reis [I e II Samuel e I e II Reis], dois dos Paralipômenos II e II Crônicas]; Salmos de Davi, Provérbios ou Sabedoria de Salomão; Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Jó; profetas: Isaías, Jeremias4 e os Doze num só livro; Daniel, Ezequiel, Esdras5 . Destas obras extraí alguns trechos, que distribuí por seis livros.
(EUSEBIO, 2000, p. 214-215)

Dos livros que foram recusados pelos judeus da Palestina, Melitão menciona apenas Sabedoria. A Referência ao título geral “Jeremias”, conforme a Septuaginta, estavam organizados os livros de Jeremias, Baruc, as Lamentações e a Epístola de Jeremias. Pela expressão “os Doze num só livro” refere-se aos doze profetas ditos menores, a saber, Oséias, Amós, Miquéias, Joel, Obadias, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. Melitão não relaciona o livro de Ester entre os livros canônicos.

2. São Justino de Roma – Justino viveu entre os anos 100 e 165, na cidade de Roma. Trabalhava dirigindo uma escola de Filosofia. É considerado o maior defensor da Fé cristã do séc. II contra as perseguições promovidas pelo Imperador. De sua primeira obra, escrita ao Imperador, é que encontramos seu testemunho sobre os livros sagrados:

Entre os judeus, houve profetas de Deus, através dos quais o Espírito profético anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros, e os reis, que segundo os tempos se sucederam entre os judeus, apropriando-se de tais profecias, guardaram-nas cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os próprios profetas as consignaram em seus livros, escritos em sua própria língua hebraica. Quando Ptolomeu, rei do Egito, se preocupou em formar uma biblioteca e nela reunir os escritos de todo o mundo, tendo tido notícia dessas profecias, mandou uma embaixada a Herodes, que então era rei dos judeus, pedindo-lhe que mandasse os livros deles. O rei Herodes mandou os livros, como dissemos, em sua língua hebraica. Todavia, como seu conteúdo não podia ser entendido pelos egípcios, Ptolomeu pediu, por meio de uma nova embaixada, que Herodes enviasse homens para os verter para a língua grega. Depois disso, os livros permaneceram entre os egípcios até o presente e os judeus os usam no mundo inteiro. Estes, porém, ao lê-los, não entendem o que está escrito, mas considerando-nos inimigos e adversários, matam-nos, como vós o fazeis, e atormentam-nos sempre que podem fazê-lo, como podeis facilmente verificar. Com efeito, na guerra dos judeus agora terminada, Bar Kókeba, o cabeça da rebelião, mandava submeter a terríveis torturas somente os cristãos, caso estes não negassem e bla femassem Jesus Cristo.
(31. JUSTINO, 1995)

Como podemos ver, Justino não apresenta uma relação de livros, apenas referencia a versão da Septuaginta.



Sto. Ireneu de Lyon

3. Santo Ireneu de Lião ou de Lyon
 – Santo Ireneu viveu provavelmente entre os anos 150 e 202. Foi discípulo pessoal do Bispo de Esmirna (atual Istambul na Turquia), Policarpo; e este, por sua vez, discípulo direto de São João Apóstolo e Evangelista. Em seu tempo, combateu ferozmente a heresia gnóstica, dedicando a este trabalho um conjunto de cinco livros, que foi intitulado “Contra as Heresias" (IRENEU, 1995). É desta obra que Eusébio transcreve o pensamento de Ireneu quanto aos livros canônicos:

Antes que os romanos tivessem estabelecido o império, e quando os macedônios ainda dominavam a Ásia, Ptolomeu, filho de Lagos, muito desejoso de enriquecer com os melhores escritos dos homens a biblioteca que instituíra em Alexandria, pediu aos habitantes de Jerusalém suas Escrituras traduzidas para a língua grega. Estes, naquela época ainda sujeitos aos macedônios, enviaram a Ptolomeu setenta anciãos, dos mais peritos nas Escrituras e no conhecimento das duas línguas e realizou-se desta forma o plano de Deus. Ptolomeu, querendo provar particularmente a perícia de cada um, e a fim de evitar que, por confronto entre si, eles falseassem na tradução a verdade contida nas Escrituras, separou-os uns dos outros e ordenou-lhes que todos escrevessem a tradução do mesmo texto; assim fez relativamente a todos os livros. Mas, ao se reunirem no mesmo lugar com Ptolomeu, e conferindo as traduções, Deus foi glorificado e as Escrituras foram reconhecidas como realmente divinas, pois todos haviam expressado idéias idênticas com idênticas palavras, idênticos nomes, do começo ao fim. Desta forma, até os pagãos presentes reconheceram terem sido as Escrituras traduzidas sob Inspiração de Deus. Não é de admirar tenha Deus agido desta maneira. Efetivamente, perdidas as Escrituras por ocasião do cativeiro do povo sob Nabucodonosor, e tendo os judeus após setenta anos regressado a seu país, mais adiante, no tempo de Artaxerxes, rei dos persas, ele próprio inspirou o sacerdote Esdras da tribo de Levi [cf. Esd 9,3841] relativamente à reconstituição das palavras dos profetas anteriores e à restauração entre o povo da legislação promulgada por Moisés.(EUSEBIO, 2000, p. 245-246)
Mateus, no entanto, publicou entre os hebreus em sua própria língua um Evangelho escrito, enquanto Pedro e Paulo anunciavam a Boa Nova em Roma e lançavam os fundamentos da Igreja. Mas, após a morte deles, Marcos, discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos por escrito igualmente o que Pedro pregara. Lucas, porém, companheiro de Paulo, deixou num livro o Evangelho pregado por este último. Enfim, João, o discípulo que reclinou sobre o peito do Senhor [çf Jo 13,25. 21,20], publicou também ele um evangelho, enquanto residia em Éfeso, na Ásia.
(Ibid.) 

Ainda nos parágrafos 5 a 8, Eusébio afirma que no quinto livro de “Contra as Heresias”, Ireneu faz menção do Apocalipse de João, da primeira carta de Pedro, o Pastor de Hermas6" e do livro Sabedoria de Salomão (Ibid., p. 244-245). Ainda segundo Eusébio, Ireneu na obra “Exposições diversas” “relembra a carta aos Hebreus e a Sabedoria dita de Salomão, incluindo trecho de ambas” (Ibid., p. 273).

Com toda clareza podemos observar que, na Igreja de Cristo, ainda no séc. II não havia consenso sobre quais eram os livros canônicos tanto do AT quanto do NT.

__________
Notas e ref. bibliográfica:
1. Como eram chamadas pelos cristãos primitivos as Epístolas de Pedro, João, Judas e Tiago.
2. Cristãos que continuavam a observar a Lei de Moisés. É por causa deles que os apóstolos se reúnem em Jerusalém cf. At,15.
3. Cristãos seguidores da heresia gnóstica ou Gnose, que ensinava que a matéria é ruim e que por isso o mundo foi criado por um deus decaído (saiba mais).
4. Conforme veremos neste mesmo capítulo, sob o título geral“Jeremias” estavam organizados o Livro de Jeremias, as Lamentações de Jeremias, Baruce a Epístola de Jeremias. Isto porque os cristãos adotaram a mesma organização presente na Septuaginta e que figuram nas Bíblias Católica e Ortodoxa.

5. Corresponde ao 2 Esdras da Septuaginta, isto é Esdras e Neemias.
6. Obra da literatura cristã pós-apostólica do séc. II (HERMAS, 1995).

Fontes:

• LIMA. Alessandro Ricardo. O Cânon Bíblico: a origem da Lista dos Livros Sagrados, Brasília: ComDeus, 2007.
• KELLY, J. N. D. Early Chritian Doctrine. Harper San Francisco; rev. edition. March, 29, 1978, pp. 53-54.
• IRENEU, Bispo de Lion. Contra as Heresias, 1ª ed., trad. de Lourenço Costa. São Paulo: Paulus. 1995 (Patrística 4).
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Esclarecimento sobre a transferência de Dom Darci José Nicioli


CIRCULA PELA INTERNET a falsa notícia de que a transferência de Dom Darci José Nicioli, ex-Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Aparecida, para a Diocese de Diamantina (MG), pelo papa Francisco, teria sido uma espécie de castigo pela crítica indireta ao ex-presidente Lula durante a Homilia no domingo, 6/3/016 (vídeo acima), transcrita abaixo:

Peça meu irmão e minha irmã a graça de pisar a cabeça da serpente, de todas as víboras que insistem e persistem em nossa vida, daqueles que se autodenominam 'jararacas', pisar a cabeça da serpente, vencer o mal pelo bem, por Cristo Nosso Senhor. Amém!"

Nestes tempos conturbados, tais palavras rapidamente provocaram alvoroço, com apaixonadas reações pró e contra nas redes sociais. Não entraremos no mérito da questão, nem emitiremos opinião a respeito da atitude do Sr. Bispo: foi ele imprudente, ou foram justas e necessárias as suas palavras? Responda a consciência de cada um.

Fato é que, em nossos tempos, são muitos os padres e bispos que pregam abertamente o marxismo e até apoiam ditaduras socialistas sanguinárias (com direito a bispo sentando-se à mesa com Lula e apoiando publicamente o governo corrupto e anticristão do PT), mas bastou uma frase em sentido contrário para que voltássemos a ouvir a velha cantilena: "A Igreja não deve interferir na política...". 

Lembramos apenas que não foi Dom Darci quem chamou o ex-presidente de "jararaca" (o nome de Lula em momento algum foi pronunciado pelo prelado), e sim o próprio, que num de seus famosos arroubos populistas repletos de frases de efeito e vazios de conteúdo, chamou-se a si mesmo "jararaca", que teria sido atingida "no rabo" mas não na cabeça...


* * *

O que viemos deixar claro, nesta nota, é que a transferência de Dom Darci não foi, de modo algum, um castigo aplicado pelo Papa. Aliás, se a mudança tivesse sido provocada pela declaração do Bispo, então seria uma demonstração de aprovação do Papa, já que, na realidade, Dom Darci foi promovido, elevado de cargo, tornando-se o novo Arcebispo de Diamantina.

De qualquer modo, não se poderia mesmo atribuir a promoção de Dom Darci às palavras ditas na homilia em Aparecida, já que esse tipo de transferência é programada e comunicada com boa antecedência, e sobre estas se guarda sigilo até os últimos dias. O próprio novo Arcebispo esclareceu que o cargo lhe havia sido oferecido pelo Papa no início de fevereiro, ainda durante a viagem do Santo Padre ao México.
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Perdoar para ser perdoado – o modo cristão

Por Felipe Marques – Assoc. São Próspero



Pai, perdoai-os; eles não sabem o que fazem!” (Lucas 23,34)

COMO DIZ G. K. Chesterton: “Por natureza, a evidência do Éden é algo que não pode ser encontrado. Por natureza, a evidência do pecado é algo impossível de não encontrar”¹. É possível encontrar o mal e o pecado no simples ato de ler um jornal ou então, no não tão simples ato de olhar para si mesmo e reconhecer as próprias misérias. Devido ao Pecado Original e à Queda de Adão e Eva, toda a humanidade ficou manchada e desfigurada, literalmente longe de seu propósito e fim último de sua existência: Deus.

Então, é conhecido e perceptível que há um abismo imenso entre a perfeição de Deus e o homem, e por culpa do próprio homem. Era necessário que esse abismo, – que essa culpa, – fosse vencido. Porém, o homem por si mesmo não é capaz de vencê-lo. A ofensa que foi feita a Deus só podia ser perdoada pelo próprio Deus, sendo assim, eis que o SENHOR, em Sua bondade e amor, vem ao nosso encontro.

O budismo e diversas religiões hinduístas têm a crença de que a religiosidade é toda baseada na ação do homem ativo que encontra deus, e esse deus encontrado é um deus passivo, que nada faz. O cristianismo ensina justamente o contrário: não somos nós que buscamos Deus em primeiro lugar, mas é Deus mesmo Quem Se revela ao homem buscando restabelecer a união com a criatura decaída.

Para refletirmos melhor nesse santo Mistério, é necessário mergulhar na Doutrina puríssima que a Santa Igreja nos deixa como herança, vasculhemos então o Catecismo da Igreja Católica, no caso, alguns trechos que seguem:

(...)A fé é a resposta do homem a Deus, que a ele Se revela e Se oferece, resposta que, ao mesmo tempo, traz uma luz superabundante ao homem que busca o sentido último da sua vida.
(CIC §26)

O desejo de Deus é um sentimento inscrito no coração do homem, porque o homem foi criado por Deus e para Deus. Deus não cessa de atrair o homem para Si e só em Deus é que o homem encontra a verdade e a felicidade que procura sem descanso (...)” 
(CIC §27)

«Exulte o coração dos que procuram o Senhor» (Sl 105, 3). Se o homem pode esquecer ou rejeitar Deus, Deus é que nunca deixa de chamar todo o homem a que O procure, para que encontre a vida e a felicidade. Mas esta busca exige do homem todo o esforço da sua inteligência, a rectidão da sua vontade, «um coração recto», e também o testemunho de outros que o ensinam a procurar Deus. És grande, Senhor, e altamente louvável; grande é o teu poder e a tua sabedoria é sem medida. E o homem, pequena parcela da tua criação, pretende louvar-Te – precisamente ele que, revestido da sua condição mortal, traz em si o testemunho do seu pecado, o testemunho de que Tu resistes aos soberbos. Apesar de tudo, o homem, pequena parcela da tua criação, quer louvar-Te. Tu próprio a isso o incitas, fazendo com que ele encontre as suas delícias no teu louvor, porque nos fizeste para Ti e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Ti.” 
(CIC §30)

Vejamos que não é o homem que primeiro ama Deus, muito pelo contrário, o Pecado Original é justamente a prova de que o homem nega a Deus, que o homem muitas vezes nega o Amor. Deus nos ama em primeiro lugar. Ele nos quer; Ele Se revela para nós; Ele veio ao nosso encontro para que não fiquemos perdidos ao buscá-Lo, mas antes, encontremos a Ele que nos ama sempre.

Temos exemplos claros de que Deus nos ama em primeiro lugar lendo o Livro de Jeremias: “Antes que no seio fosses formado, eu já te conhecia; antes de teu nascimento, eu já te havia consagrado, e te havia designado profeta das nações” (1, 5) e também no livro do profeta Isaías: “Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, Eu (Deus) não te esqueceria nunca. Eis que estás gravada na palma de minhas mãos, tenho sempre sob os olhos tuas muralhas” (49,15-16).

O amor do homem para com Deus é sempre uma resposta a este primeiro belíssimo e zeloso Amor que Deus tem para conosco. – Na liturgia latina, mais precisamente no rito extraordinário da Santa Missa, também conhecido como a Santa Missa Tridentina, no momento do Cânon (Oblação do Sacrifício) há um curto diálogo entre o celebrante e a assembleia para que seja despertado nas almas o verdadeiro sentimento de ação de graças. No último trecho desse diálogo, proclama o celebrante: “Gratias agamus Domino Deo nostro / Demos graças ao Senhor, nosso Deus”, e então a assembleia responde: “Dignum et justum est! / É digno e justo”². É uma proclamação de que Deus merece ser amado por nós, Ele merece uma resposta do homem pelo fato de ser Deus e, sendo Deus, Bom e Inefável, – em resumo, o próprio Amor, – merece ser amado por nós.

Mesmo que falhemos nessa missão de amar a Deus sobre todas as coisas, porém, o SENHOR nos aguarda sempre de braços abertos quando realmente nos arrependemos dos nossos pecados e pedimos perdão no Sacramento da Confissão. Isso fica bem esclarecido na parábola do Filho Pródigo no evangelho segundo São Lucas (15, 11-24). Deus é esse Rei cheio de amor, que entrega a Si mesmo para salvar-nos, nós que somos escravos e miseráveis!

Eis que São João nos ensina no capítulo 3 de seu Evangelho: “Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (16-17).

Deus não deseja a nossa condenação, muito pelo contrário, como afirma São Paulo em sua primeira Carta à Timóteo: “.Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (2,3-4). Quando as almas são condenadas ao inferno, são condenadas por culpa própria, porque usaram de forma incorreta sua vida terrena e sua liberdade e se mantiveram impenitentes até o último instante, e Deus que é justo dá a cada um conforme suas obras e escolhas. Todavia a justiça não anula a misericórdia, antes, ambas coexistem.

O SENHOR, sabendo de nossas fraquezas e de nossas debilidades, nos perdoa e nos presenteia com os meios pelos quais somos perdoados por Ele, especificamente falando dos Sacramentos da Igreja Católica. Os Sacramentos são meios seguros e eficazes de obter as graças de Deus e os benefícios que estes Dons geram em nossa alma, pelo toque da humanidade divina de Cristo que age na pessoa do sacerdote e cura as feridas mais horrendas que carregamos em nosso interior e ainda nos dá forças para podermos ser santos.

No sacramento da Confissão, quando o penitente está realmente arrependido de seus pecados, – compreendamos aqui que o arrependimento não é um simples "choramingo" momentâneo, mas antes o firme desejo de não cometer novamente o pecado, a total aversão e repulsa por aquilo que ofende a Deus, – Cristo lava essa alma com o Seu próprio Sangue glorioso, que com uma só gota pode salvar a humanidade inteira!

Não somente por sermos alvejados com o Sangue do cordeiro, mas também pela certeza da eficácia do Sacramento, alcançamos a paz da alma devido aos méritos de Cristo.

Sendo assim, faz-se necessário que realizemos um exame de consciência sincero e verdadeiro e nos perguntemos se realmente estamos amando a Deus. E não somente amar por palavras, mas por ações concretas.

Na oração do Pai-Nosso pedimos a Deus: “Perdoai-nos às nossas dividas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. Pois bem, se não tomarmos cuidado e vigiarmos nossas vidas, esse pedido se tornará uma auto-condenação, visto que ao não perdoarmos não seremos perdoados também. E uma das maiores fontes de perdão que emana do ser humano é justamente a própria miséria humana; pois, ao sabermos que somos amados por Deus e que Ele, em sua Majestade, nos perdoa os pecados, como podemos nós, miseráveis mendicantes, negar o perdão a um irmão arrependido? É a realidade divinamente ilustrada na parábola do servo impiedoso, no Evangelho segundo São Mateus (18,23-30).

É sumamente necessária, a cada um de nós, uma profunda reflexão e um diligente exame particular de consciência: estamos realmente perdoando? Ou queremos ser alvos da Graça divina mas retê-la para nós mesmos? Estamos sendo egoístas?

Lembre-se das suas próprias misérias, ó cristão, e que o SENHOR, nosso Deus, o perdoa quando você se arrepende verdadeiramente; então, seja misericordioso como o Pai é misericordioso. Entenda, com clareza, que o perdão não é amnésia, e que as ofensas recebidas não serão apagadas da sua memória; antes, são como que sinalizadores sensoriais que lhe permitem lembrar das próprias misérias. Assim, ajudam a compreender as misérias d'Aquele que tem um coração contrito e que quer mudar, quer ser santo também.

Perdoar para ser perdoado, perdoar verdadeiramente para alcançar a Paz divina: eis o remédio que muitas almas amarguradas buscam incessantemente e não encontram! Muitos não perdoam, alimentam o ódio e a vingança e não percebem que, assim, eles mesmos se tornam escravos do que alimentam. Ao conhecermos a Verdade, que é Deus, seremos libertos verdadeiramente, e essa liberdade também consiste no perdão, porque Deus mesmo nos perdoou e continua perdoando.

Peçamos perdão pelos nossos pecados no Sacramento da Confissão, e vivamos como nos é ensinado no Livro de Tobias: “Não faças a ninguém o que não queres que te façam” (4,15), e sigamos retamente as ordens do Cristo: "Perdoar não sete vezes, mas setenta vezes sete (Mt 18, 21-22).

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Notas e ref. bibliográfica:
1. CHESTERTON, Gilbert Keith - Women in the Workplace — and at Home publicado no The Illustrated London News, 18th December, 1926. Disponível em: http://www.sociedadechestertonbrasil.org/artigos/page/37/
2. Missal quotidiano e vesperal por Dom Gaspar Lefebvre. Disponível em: http://www.montfort.org.br/old/index.php?secao=documentos&subsecao=decretos&artigo=ordinario_santa_missa&lang=bra
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