Sobre a Moral e o senso comum

"Chegará o dia em que teremos que provar ao mundo que a grama é verde" (G. K. Chesterton)

RECEBEMOS AO ARTIGO "Por que o liberalismo não é a solução – parte II", de um leitor que se identifica como "Prof. Paiva", um comentário do qual consta o trecho que reproduzimos abaixo, seguida de nossa resposta:

Mas eu estou vendo um 'calcanhar de Aquiles' nessa sua linha de pensamento. Pelo jeito o Sr. é um filósofo? Então, vamos desenvolver o problema. Filosofia não é a minha especialidade mas eu vejo um buraco muito grande na sua defesa que é o seguinte: confiar no bom senso humano. Isso funciona? Acho que nunca funcionou, por isso temos tenta injustiça no mundo.
Um exemplo, eu não conheço povo mais sensato do que o alemão, e a maioria deles elegeu e apoiou Hitler até o fim."

Responde Igor Andrade, da Frat. Laical São Próspero, autor do referido artigo:

Salve Maria!

Agradeço imensamente o comentário e à oportunidade de aprofundar mais nesse assunto que tanto me atrai. Bom, o senhor focou aqui na questão do bom senso. Sinceramente, creio que nossa cultura trata com descaso o ser humano enquanto ente racional. Novamente destaco que o senso comum dos homens (ou 'bom senso') provém da razão, que é, como nos ensina a Filosofia clássica, a parte mais nobre do homem.

Sobre o seu questionamento relativo a “confiar no bom senso humano”, é muito interessante ressaltar um ponto que, à primeira vista, fica um tanto quanto obscuro: o bom senso tem a ver com a realidade prática do dia a dia, não com a teoria moral.

Tomemos, por exemplo, um ponto da Lei Natural (que todo ser humano deve seguir ) impressa no Decálogo mosaico, “Não Matarás”: ora, todos os homens da Terra (que vivem em sociedade) sabem que matar outro homem é errado, – inclusive os assassinos. – Não necessariamente o sabem teoricamente, mas o sabem na prática, isto é, vivem como se matar fosse errado, ainda que não representem este princípio no intelecto.

Mais interessante ainda é que isso é observável até nos mais tirânicos assassinos, que são aqueles que justificam o seu erro. Estes podem dizer que matar não é errado, quando apoiam o aborto e outras atrocidades, mas não vivem em consonância com o que pregam. “Mas os assassinos que dizem isto”, – poderão me questionar, – “eles mesmos não matam?”. Sim, podem até fazê-lo, mas estão conscientes da sua maldade (num certo nível de suas consciências, sabem que matar é sempre errado). E mais: defendem-se se alguém tentar matá-los. 

Usei tal exemplo por ser, na minha opinião, o mais didático. Mas isso pode ser estendido para: “Não roubarás” e todos os demais Mandamentos do Decálogo mosaico. Por quê? Porque tal realidade nos é imposta pela Razão. A Razão do homem, devido sua liberdade, pode ser afetada para o bem (virtude) ou para o mal (vício), por isso devemos agir com a Recta Ratio (Reta Razão – aprofundar este ponto demandaria muito espaço, aqui, talvez o faça em outro artigo).

Sabemos então que o homem vive vislumbrando a Lei moral, isto é, o bom senso. Contudo, “todo homem deseja, por natureza o conhecimento”1; assim sendo, o esforço intelectual se faz necessário, para que essa lei seja devidamente representada em nosso espírito. Percorremos, pois, um caminho saindo de um estado de inocência para um estado de ciência.

Transcrevo aqui um trecho da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, onde Kant explicita essa mesma realidade, destacada na pergunta (grifos meus):

A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. E é por isso que a própria sagacidade — que de resto consiste mais em fazer ou não fazer do que em saber — precisa também da ciência, não para aprender dela, mas para assegurar às suas prescrições para lhes dar estabilidade. O homem sente em si mesmo um forte contrapeso contra todos os mandamentos do dever que a razão lhe representa como tão dignos de respeito: são as suas necessidades e inclinações, cuja total satisfação ele resume sob o nome de felicidade. Ora a razão impõe as suas prescrições, sem nada aliás prometer às inclinações, e também como que com desprezo daquelas pretensões tão tumultuosas e aparentemente tio justificadas Daqui nasce uma dialética natural, quer dizer uma tendência para opor arrazoados e subtilezas às leis severas do dever, para pôr em dúvida a sua validade ou pelo menos a sua pureza e o seu rigor e para as fazer mais conformes, se possível, aos nossos desejos e inclinações, isto é, no fundo, para corrompê-las e despojá-las de toda a sua dignidade, o que a própria razão prática comum acabará por condenar.
É assim, pois, que a razão humana comum, impelida por motivos propriamente práticos e não por qualquer necessidade de especulação (que nunca a tenta, enquanto ela se satisfaz com ser simples sã razão), se vê levada a sair do seu círculo e a dar um passo para dentro do campo da filosofia prática. Aí encontra ela informações e instruções claras sobre a fonte do seu princípio, sobre a sua verdadeira determinação em oposição às máximas que se apoiam sobre a necessidade e a inclinação. Assim espera ela sair das dificuldades que lhe causam pretensões opostas, e fugir ao perigo de perder todos os puros princípios morais em virtude dos equívocos em que facilmente cai. Assim se desenvolve insensivelmente na razão prática comum, quando se cultiva, uma dialética que a obriga a buscar ajuda na filosofia, como lhe acontece no uso teórico; e tanto a primeira como a segunda não poderão achar repouso em parte alguma a não ser numa crítica completa da nossa razão.

Creio ter respondido suficientemente este ponto, mas novamente reitero: o ser humano carrega a mancha do Pecado original; não somos anjos. Ainda trocamos o Sumo Bem por bens menores e passageiros nesta vida. Mas não nos esqueçamos: nossos Pais comeram do fruto da Ciência do Bem e do Mal: nossa razão pode ser fonte de bem viver. Evidentemente, admito que a ação da Graça é extremamente necessária para bem agir, mas a parte que cabe ao homem realizar já foi dada por Deus pela Razão.

No artigo indicado abaixo, é tratada a dignidade do ente racional; sugiro a leitura para a melhor compreensão dos princípios que apresentei ao longo desta argumentação:

• A dignidade do ente racional no pensamento kantiano (clique para ler)

Regnare Christum Volumus!

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1. Aristóteles, início de 'Metafísica' I (IV aC).
www.ofielcatolico.com.br

Um comentário:

  1. Uma boa dica é o livro do C.S. Lewis, "Cristianismo Puro e Simples". Nele há um capítulo inteiro dedicado à Lei Natural.

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