O grandioso Milagre Eucarístico de Lanciano


O QUE CHAMAMOS "MILAGRE" é um Sinal especialíssimo do Poder divino à humanidade ou a um indivíduo em particular, que se caracteriza por ser “superior, diferente ou contrário à natureza”1, e que é visível e/ou passível de análise mediante os cinco sentidos físicos dos seres humanos.

Algumas orientações religiosas (como é o caso, por exemplo, do espiritismo) afirmam que os milagres não existem; entendem que Deus não quebraria as regras que Ele próprio estabeleceu para a sua Criação. Já a Igreja Católica entende que seria muita pretensão de nossa parte querer determinar o que Deus deve ou não fazer. Se cremos numa Força suprema, que criou e rege o Universo, havemos também de nos reconhecer incapazes de compreender os Desígnios divinos, ao menos em sua totalidade. A Igreja entende que só faz sentido crer em Deus como o Criador que age e se revela na História: o Deus Vivo, que se faz conhecer também através de eventos históricos.

A Parapsicologia chama de fenômeno supranormal àquilo que popularmente se conhece como milagre. É importante saber, no entanto, a diferença entre o supranormal e as ocorrências ditas paranormais ou extra-sensoriais. Dentro da pesquisa autêntica e científica da Parapsicologia, o fenômeno supranormal se reconhece basicamente por três pontos:

1. Pelo fato, em si mesmo superior à natureza;

2. Pelo modo, diferente dos modos da natureza;

3. Por quem ou o quê o faz. Assim, fenômenos provocados pelos seres humanos, mesmo que sejam impressionantes ou inexplicáveis, não são fenômenos supranormais, isto é, não são milagres.2

Neste artigo, vamos conhecer aquele que muitos, incluindo inúmeros médicos e homens de ciência, consideram o maior fenômeno supranormal da História: um dos maiores milagres de todos os tempos.

Este grandioso milagre teve o seu início por volta do ano 780 dC, na cidade italiana de Lanciano (‘Anxanum dos Frentamos), onde viviam os monges de São Basílio, no Mosteiro de São Legoziano. Torna-se entretanto ainda muitíssimo mais espantoso porque é um fenômeno que continua ocorrendo até os nossos dias(!) tendo mais de 12 séculos de existência, portanto.

Segundo os dados históricos, havia entre os monges um que se destacava mais pelo intelecto e aptidão para os estudos seculares do que pela determinação religiosa. Sofria com uma dificuldade terrível: em seu íntimo, duvidava que o pão e o vinho se tornassem verdadeiramente Corpo e Sangue de Cristo na Santa Missa, no momento da Consagração, como afirmam as sagradas Escrituras e a Tradição Cristã Católica.

Tal padre era, porém, um cristão fiel, e permanecia orando continuamente para superar o incômodo espinho em sua mente. Como sacerdote, evidentemente, não podia conviver com a dúvida sobre um dos pontos mais fundamentais da sua fé. Esta situação persistiu por um considerável período de tempo, até que, certa manhã, ao celebrar a santa Missa, após proferir as palavras da Consagração, ele viu a Hóstia converter-se em Carne Viva, e o Vinho em Sangue Vivo!

Sentiu-se, como podemos imaginar, extremamente confuso e dominado pelo temor; todavia logo depois foi transportado para um estado de êxtase, no qual permaneceu por um longo momento. Por fim, em meio à transbordante alegria, rosto banhado em lágrimas, voltou-se para os presentes, que nada entendiam, e exclamou: “Oh, testemunhas afortunadas, a quem o Santíssimo Deus, para destruir a minha falta de fé, quis revelar-se a Si mesmo neste Santíssimo Sacramento, fazendo-se visível diante dos nossos olhos! Venham irmãos, venham todos e maravilhem-se com o nosso Deus, tão próximo de nós! Venham contemplar a Carne e o Sangue de nosso amado Cristo!”.

Os fiéis, estupefatos, aproximaram-se do Altar. Uns foram às lágrimas, outros caíram de joelhos: havia Carne viva no lugar da hóstia; Sangue em vez de vinho!

A Hóstia-Carne apresentava, como hoje ainda se pode observar, coloração ligeiramente escura; rósea quando iluminada pelo lado oposto, e aparência fibrosa; o Sangue era espesso, hoje encontra-se coagulado, em nódulos.

A notícia logo se espalhou na pequena cidade, transformando o monge numa espécie de “novo S. Tomé”. Serenadas as emoções, as relíquias foram guardadas num tabernáculo de marfim especialmente construído. A partir do ano de 1713, a Carne vem sendo conservada numa custódia de prata, e o Sangue num cálice de cristal, onde permanecem até hoje.

Até aqui, os céticos poderiam dizer que se trata de uma história criada pela devoção popular. Tudo não passaria de uma "piedosa" fraude, inventada para aumentar a fé do povo. Mas o Milagre de Lanciano é infinitamente mais do que uma alegação sem provas. No decorrer dos tempos, os ataques dos ateus seriam, um a um, derrubados pelas comprovações científicas procuradas pela própria Igreja.

Ocorre que o Vaticano adota uma postura muito rígida para com as alegações de milagres, e nesse caso não foi diferente. As relíquias já vinham sendo mantidas como objetos de veneração há séculos, mas a Igreja não se pronunciou oficialmente antes de uma confirmação científica. É exatamente o que torna este caso em particular tão especial.

Em novembro de 1970, os Frades Menores Conventuais, que guardam a igreja do Milagre (denominada 'São Francisco' desde 1252), autorizados, confiaram a médico renomado e de idoneidade moral reconhecida a análise científica das relíquias, que foi realizada por meio de minuciosas e rigorosas provas de laboratório. Foi convidado o Dr. Odoardo Linoli, chefe de serviço dos Hospitais Reunidos de Arezzo e docente de anatomia e histologia patológica e de química e microscopia clínica, e o professor Ruggero Bertelli, da Universidade de Siena, que o auxiliou.

Procederam-se os exames. A-pós meses de trabalho, em 4 de março de 1971, foi publicado o relatório contendo os resultados das análises, que foram os seguintes:

a. A Carne é carne verdadeira.

b. O sangue é sangue verdadeiro.

c. A carne é parte tecido muscular do coração (miocárdio, endocárdio e nervo vago).

d. A carne e o sangue são do mesmo tipo sanguíneo (AB), e pertencem à espécie humana.

e. No sangue foram encontrados, além das proteínas normais, os seguintes materiais: cloretos, fósforos, magnésio, potássio, sódio e cálcio.

f. A conservação da carne e do sangue, deixados em estado natural por 12 séculos e expostos à ação de agentes atmosféricos e biológicos, permanece como fenômeno extraordinário.

A partir daí, o Milagre Eucarístico já não se restringia mais a uma questão de fé: estava cientifica e clinicamente comprovado. Mas a história não acaba aí: novas investigações laboratoriais foram realizadas em 1981. Mais uma vez, o trabalho foi realizado com absoluto rigor científico e documental, desta vez incluindo a análise microfotográfica. Os resultados foram os seguintes:

1. A carne analisada é carne verdadeira. O sangue é sangue verdadeiro;

2. A carne e o sangue pertencem à espécie humana;

3. A carne pertence ao coração, em sua estrutura essencial;

4. Na carne estão presentes, em seções: miocárdio, endocárdio, nervo vago e ventrículo cardíaco esquerdo;

5. A carne e o sangue pertencem ao mesmo grupo sanguíneo: AB (o sangue tipo AB é característico do povo judeu e é o mesmo tipo encontrado no ‘Santo’ Sudário de Turim);

6. No sangue foram encontradas as proteínas normalmente existentes, nas proporções percentuais idênticas, às encontradas no sangue normal fresco, como se retirados de um ser humano ainda vivo(!);

7. No sangue foram encontrados também os sais minerais em proporções idênticas àquelas de um ser humano vivo normal: cloro, fósforo, magnésio, potássio, sódio e cálcio.

8. A conservação da carne e do sangue, deixados em estado natural durante doze séculos e expostos aos agentes físicos, atmosféricos e biológicos, constitui fenômeno extraordinário (extrapola os limites do comum, do ordinário).



Mais acima, o relicário contendo o milagroso Fragmento de carne logo acima do cálice com os coágulos de sangue; mais abaixo, em close, o milagroso Fragmento de Carne humana identificado clinicamente como Tecido cardíaco


Detalhes que merecem destaque

* Segundo os resultados das análises, os materiais são de uma pessoa viva, como se retirados de um ser humano vivendo atualmente! As características bioquímicas do Sangue são as que se esperaria de material colhido naquele mesmo instante, de um ser humano vivo!

** A Carne que lá está é do coração, o músculo que propulsiona o sangue, – portanto a vida, – ao corpo inteiro, e que é também o símbolo do amor. Lembremo-nos que Nosso Senhor manifestou-se com seu Sagrado Coração exposto a Santa Margarida Maria Alacoque.

*** O Sangue, hoje, está em forma de cinco coágulos. Apesar de serem diferentes em tamanho e forma, todos apresentam exatamente o mesmo peso! Mais: pesando-se todos os coágulos juntos se obtêm, igualmente, exatamente o mesmo peso! Em outras palavras, o peso de cada um dos coágulos é igual, e é também o mesmo peso de todos juntos! Este fato, por si só, representa um outro milagre dentro do grande milagre!

Um caso como este não pode ser explicado como ação do “poder da mente”, sugestão ou fenômeno meramente paranormal. A própria parapsicologia classifica o Milagre Eucarístico de Lanciano como fenômeno supranormal, e a ciência o atesta como “fenômeno extraordinário”, isto é, que extrapola os limites do ordinário, do comum. Não existe sequer esboço de explicação científica natural para este caso, que não se trata de um fenômeno ocorrido numa data determinada, mas um Milagre Permanente: ocorreu há cerca de 1.300 anos e continua ocorrendo até hoje, na preservação inexplicável dos Materiais.

‘Comei e bebei todos vós, isto é o meu Corpo que é dado por vós’. Mais do que uma simples simbologia, como possa parecer, este é o Sinal Divino de que no Sacramento da Comunhão está o Alimento da nossa esperança nas Promessas de Cristo...
(Santo Tomás de Aquino)

____
Notas:

1. Definição clássica de Sto. Tomás de Aquino, em QUEVEDO, Oscar G. Os Milagres e a Ciência, 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2000, p. 11-27.

2. QUEVEDO, Oscar G. Os Milagres e a Ciência, São Paulo: Loyola, 1998.

_________________

Fontes e ref. bigliográfica:

• DEGRANDIS, Robert, A Cura pela Missa, 29ª ed. São Paulo: Loyola, 2006, p. 130.

• QUEVEDO, Oscar G. Os Milagres e a Ciência, parte 1 / 'O cientista prescruta a natureza', São Paulo: Loyola, 1998, pp. 11-46.

• MOREIRA, Francisco Adail Martins. Festas Litúrgicas de Jesus e Maria, São Paulo:
Loyola, 2003, pp. 106,107.

• NASINI, Gino. O Milagre e os Milagres Eucarísticos. São Paulo: Loyola / Palavra
& Prece, 2011, pp. 166-167.

• AQUINO, Felipe. Eucaristia. São Paulo: Canção Nova, 2007, pp.110, 111.
www.ofielcatolico.com.br

Quais as diferenças entre católicos e ortodoxos orientais?

Pelo zelo na Liturgia e na Arte sacra, igrejas ortodoxas orientais são belas e ricamente ornamentadas em qualquer lugar do mundo; acima, a vista interna da igreja da paróquia ortodoxa russa do Cazaquistão 

DE TEMPOS EM TEMPOS, surge algum leitor que nos propõe esta pergunta. Entendemos, então, que chega o momento de respondê-la: em síntese, são treze as diferenças doutrinárias e disciplinares que distanciam os ortodoxos orientais da Igreja Católica.

É interessante notar que a maioria daqueles que de modo superficial simpatizam com a rica tradição ortodoxa oriental acabam por entender que ela perde, por assim dizer, o "encanto" quando conhecida a fundo e vista bem de perto. Apesar do grande respeito que temos por estes nossos queridos irmãos cismáticos, não temos como negar que boa parte dos argumentos que eles utilizam para justificar os desacordos entre eles e nós, como veremos, são flagrantemente desprovidos de qualquer fundamento.

Os ortodoxos não aceitam: 1) o primado e 2) a infalibilidade do Papa; 3) a Processão do Espírito Santo a partir do Filho; 4) o Purgatório póstumo; 5) os dogmas da Imaculada Conceição e 6) da Assunção de Maria Santíssima (apenas enquanto dogmas); 7) o Batismo por infusão e não por imersão; 8) a falta da Epiclese na Liturgia Eucarística; 9) o pão ázimo (sem fermento) na Celebração Eucarística; 10) a Comunhão Eucarística sob a espécie do pão apenas; 11) o Sacramento da Unção dos Enfermos como é ministrado no Ocidente; 12) a indissolubilidade do Matrimônio; 13) o celibato do clero.

Seja observado, logo de início, que em geral os orientais têm por ideal a volta da Igreja ao que ela era até o sétimo Concílio Geral (Nicéia II em 787), pois aceitam plenamente os Concílios de Nicéia I (325), Constantinopla I (381), Éfeso (431), Calcedônia (451), Constantinopla II (553), Constantinopla III (681), Nicéia II (787). O Concílio de Constantinopla IV, que excomungou o Patriarca Fócio em 869/870, evidentemente é rejeitado pelos orientais.

Como se pode ver, nem todos esses pontos diferenciais são da mesma importância. O que mais concorre para a manutenção do Cisma é o da fidelidade ao Papa como Pastor Supremo, assistido pelo Espírito Santo em matéria de fé e de Moral. A seguir, comentamos e procuramos esclarecer cada um destes pontos:


1. Primado do Papa

Alega a Teologia ortodoxa que a jurisdição universal e suprema do Papa implicaria que os outros bispos são subordinados a ele como nada além de seus representantes, o que eles consideram um desvio ou um erro. A esta concepção equivocada, porém, respondeu o Concílio do Vaticano II:

Aos Bispos é confiado plenamente o ofício pastoral ou o cuidado habitual e cotidiano das almas. E, porque gozam de um poder que lhes é próprio e com toda razão são antístites dos povos que eles governam, não devem ser considerados (meros) vigários (representantes) do Romano Pontífice.”
(Constituição Lumen Gentium 27)

Como demonstra muito facilmente a mais elementar noção do senso comum (entenda), não há nenhum sentido em se questionar o primado do Bispo de Roma, o Papa, que garante a unidade e a coesão da Igreja, preservando-a de iniciativas meramente pessoais e subjetivas. Exatamente por isso o discípulo Simão, e apenas ele, recebeu o nome-título de Pedra-Cefas (entenda).


2. Infalibilidade do Papa

Em 1870, fazendo eco à fé antiquíssima dos cristãos, o Concílio do Vaticano I declarou o Papa infalível quando fala em termos definitivos para a Igreja inteira e em matéria de fé de moral (entenda). – Já segundo a Teologia ortodoxa oriental, esta definição extinguiria a autoridade dos Concílios.

Evidente que tal contestação não em nenhuma razão de ser, pelo simples fato de que o Papa não pode "decidir" nada contrário àquilo que foi definido dogmaticamente em qualquer Concílio da Igreja. Já no tempo dos Apóstolos ocorreu o primeiro Concílio, em Jerusalém1. Segundo a Igreja Católica, então, os Concílios gerais ou universais têm plena razão de ser, já que também o Papa participa deles (por si ou por seus delegados) e aprova as suas conclusões. Nos nossos dias, mais e mais se têm insistido sobre a colegialidade dos Bispos.


3. A procedência do Espírito Santo a partir do Filho (Filioque)

Esta é possivelmente a mais conhecida discordância entre católicos e ortodoxos e que, mais uma vez, não tem nenhuma razão de ser a não ser a pura incompreensão e a inflexibilidade para o diálogo aberto e fraterno, como era a característica de um determinado período histórico. A concepção da Igreja Católica decorre do fato de que em Deus não há distinções, a não ser onde haja oposição relativa, como no caso do Filho que possui Natureza humana, sedo que o mesmo não se pode afirmar do Pai e do Espírito Santo. Entretanto, não podemos jamais nos esquecer de que não somos politeístas: cremos e adoramos apenas um Deus, que se manifesta a nós em Três Pessoas diferentes, mas não separadas2.

Se, portanto, entre o Filho e o Espírito Santo não há a separação de Espirante e Espirado, um não se distingue do outro ou, em outras palavras, o Filho e o Espírito Santo são um só em Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo, no Evangelho segundo S. João (15, 26) afirma textualmente que o Espírito procede do Pai; claramente, porém, não tenciona propor aí uma Teologia sistemática e exclusiva, mas põe em relevo um aspecto da verdade, – assim como em tantas e tantas outras ocasiões, – sujeito a ser completado pela reflexão.

De fato, no caso desta questão, a dificuldade é mais de linguagem do que de doutrina. Tanto assim que os orientais preferem dizer que o Espírito Santo procede do Pai "através do Filho", – o que claramente é apenas uma maneira diferente de dizer praticamente a mesma coisa ou, no mínimo, algo muito parecido. Torna-se evidente que, com um pouco de boa vontade, poderia-se facilmente conciliar as posições.


4. Purgatório

Este é um caso curioso e que (infelizmente precisamos dizer) evidentemente depõe contra a boa vontade dos teólogos orientais. Ocorre que os ortodoxos do Oriente aceitaram a existência do Purgatório sem nenhuma dificuldade até o século XIII. Foi somente no ano 1231 ou 1232 que o metropolita Georges Bardanes, de Corfu, pôs-se a impugnar a doutrina bíblica e apostólica do fogo do Purgatório (entenda), apenas porque não haveria, literalmente, fogo no Purgatório(!).

Os teólogos orientais subsequentes lamentavelmente vieram a apoiar a contestação de G. Bardanes, mas nem por isso ousaram negaram a realidade (como dissemos antes, plenamente bíblica e plenamente fundamentada na Tradição apostólica) da necessidade de um estado de purificação intermediário entre a vida terrestre e a bem-aventurança celeste para as almas daqueles que morrem com resquícios de pecado: estes seriam perdoados por Deus em vista da oração da Igreja; estariam assim fundamentados os sufrágios pelos defuntos.

A recusa do Purgatório, então, só ocorreu entre os orientais, absurdamente, no século XVII(!) e sob a influência de autores protestantes(!!). Ora, admitir uma doutrina que teria, então, estado errada por dezessete séculos, não é o mesmo que admitir a sua fragilidade também depois da mudança?

Por fim, o fato histórico é que daí por diante a Teologia oriental tornou-se em parte dividida; muitos teólogos ortodoxos continuam admitindo a necessidade de um estado intermediário entre a morte e a bem-aventurança celeste, assim como também reconhecem o valor dos sufrágios pelos defuntos. Eis aí mais um fato histórico e teológico que só vem a confirmar para todo o povo cristão a exclusividade da Igreja Católica no papel de única Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo e mantida pelo Espírito Santo.


5. A Imaculada Conceição de Maria

Esta, incrivelmente, é por vezes confundida com um pretenso nascimento virginal de Maria (segundo tal confusão absurda, Santa Ana teria concebido sem a colaboração de São Joaquim!). Assim, simplesmente porque tal concepção virginal carece de qualquer fundamento (evidente, e nunca foi parte da Teologia católica!), também a verdadeira doutrina da Imaculada Conceição é em algum nível contestada pelos orientais, embora não seja negada por eles.

Contraditoriamente, porém, toda a literatura, a Liturgia e as mais tradicionais devoções dos ortodoxos enaltecem grandemente e com insistência (provavelmente até maior do que o fazem as obras clássicas católicas) a pureza plena e absoluta da Virgem Maria, professando a mesma coisa que nós, católicos, de modo implícito. Concretamente, a única diferença real é que eles não formularam nem definiram um dogma de fé específico a respeito desta realidade, que na prática creem de modo idêntico ao nosso, – e isto é algo bastante fácil de se confirmar, bastando que se observe a arte sacra oriental, eivada do princípio ao fim de belos e múltiplos ícones em honra à santidade incomparável de Maria Santíssima.


6. A Assunção de Maria Santíssima

Este ponto, juntamente com o anterior, é de surpreender o leigo, pois como já dissemos a devoção dos ortodoxos por Nossa Senhora é evidente e profundíssima, tanto que á primeira vista dá a impressão de ser tão grande quanto a católica ou até mesmo maior, em certas cerimônias, usos e costumes.

Crida pelos cristãos desde a Antiguidade, foi proclamado este dogma de fé pela Igreja Católica em 1950, pelo Papa Pio XII, de acordo com as tradições teológicas ocidental e oriental. Merece especial atenção, novamente, a iconografia oriental, que representa de maneira muito expressiva a Virgem sendo assunta aos Céus por seu Divino Filho (daí a diferença entre os termos 'Ascensão do Senhor' e 'Assunção de Maria': ela, elevada por Ele, que é Deus e se eleva por seu próprio Poder Divino).

Qual é, então, o problema? De fato, o que fere os orientais neste caso, – assim como no caso da Imaculada Conceição, – não é a proclamação da Assunção em si, simplesmente porque eles também creem nisto; o problema está, apenas e tão somente, na promulgação do dogma, a qual eles consideram que não deveria ter ocorrido (até por não terem tomado parte em sua elaboração).


7. Batismo por infusão ou aspersão da água

Aqui está um problema difícil de compreender, não só pelos católicos como também pela maior parte dos próprios cristãos orientais, que discordam da estranha posição ortodoxa oriental. Dizem esses teólogos que é importante no Batismo o contato da água com o corpo inteiro da pessoa, simbolizando purificação.

Para nós, católicos, tanto os de rito romano quando de rito oriental, o Sacramento é um sinal que realiza o que significa; logo, a Água batismal significa e realiza a purificação da alma. Basta lembrar que os Apóstolos, nos primeiríssimos anos, quando saíram aos quatro cantos do mundo para levar o Evangelho, nas mais diversas situações nem sempre dispunham de rios ou de grandes volumes de água para imergir os batizandos que surgiam a todo instante. Foi este, aliás, o caso do próprio S. Paulo Apóstolo, sem dúvida o mais emblemático3.


8. Epiclese

Os orientais julgam essencial na Liturgia Eucarística a Invocação do Espírito Santo (Epiclese) antes das palavras da Consagração; ora, estas faltam no Cânon Romano (Oração Eucarística nº 1), pois os latinos julgam que a Consagração do pão e do vinho se faz pela repetição das palavras do Cristo, assim como Ele ordenou: “Isto é o meu Corpo… Isto é o meu Sangue…”.

Assim, as Orações Eucarísticas compostas depois do Concílio VII (1962-65) têm a Epiclese não para corrigir uma pretensa "falha" anterior, mas para salvaguardar uma antiga Tradição.


9. Pão ázimo

Jesus, em sua última ceia, observou o ritual da Páscoa judaica, que prescrevia (como ainda prescreve) o uso do pão ázimo ou não fermentado. A Igreja Católica também guardou o costume, – que foi, assim, guardado pelo próprio Cristo, – na Celebração da Eucaristia. Está mais do que bem respaldada, como se vê.

Uma observação importante: o uso do pão fermentado não é excluído por nós, católicos, pois, em última análise, se trata sempre de pão.


10. A Comunhão Eucarística sob as espécies do pão apenas

Até o século XII, a Comunhão era ministrada sob as duas espécies, pão e vinho; o uso foi abolido em razão dos graves inconvenientes que gerava (profanação, sacrilégios…). Todavia, após o Concílio VII é permitido que se dê a Comunhão sob as duas espécies a grupos devidamente preparados.


11. Unção dos Enfermos

Baseados na Epístola de S. Tiago (5,14ss), os orientais ortodoxos têm a Unção dos Enfermos como Sacramento. Divergem, porém, dos ocidentais em dois pontos:

a) A Unção não é reservada aos gravemente enfermos nem tem a marca de preparação para a morte, mas, ao contrário, vem a ser um rito de cura para qualquer enfermo;

b) A Unção, no Oriente, tem forte caráter penitencial, a tal ponto que ela é conferida também aos pecadores, mesmo os sadios, a título de satisfação pelos pecados.

Pode-se dizer, portanto, que a Unção “dos Enfermos” nas comunidades orientais ortodoxas é dada a todos os fiéis que tenham algum problema de saúde corporal ou espiritual. Isto ocorre especialmente na Semana Santa e entre os russos.

Essas diferenças, bastante suaves e simples de contornar, infelizmente foram muito exploradas nos debates entre latinos e gregos. Os ocidentais reservam a Unção para os casos de moléstias graves ou sério perigo de vida (entenda a Unção dos Enfermos).


12. Divórcio

Baseados no Evangelho segundo S. Mateus (5,32 e 19, 9) mas indo contra ao que dizem os Evangelhos segundo S. Marcos (10, 11s) e S. Lucas (16,18), e a 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios (7,10ss), os ortodoxos reconhecem o divórcio.

A Igreja Católica, por coerência, não interpreta S. Mateus em sentido contrário a S. Marcos, S. Lucas e S. Paulo, o que seria absurdo; assim, não reconhece o divórcio de um Matrimônio sacramental validamente contraído e consumado, mas entende que em Mt 5 e 19 se trata da dissolução dos casamentos ilícitos, o que ela pratica até hoje (entenda).


13. Celibato do Clero

Segundo a compreensão desses nossos irmãos, seria esta uma restrição imposta nos séculos posteriores, contrária à decisão do primeiro Sínodo Ecumênico no ano 325. Há alguma verdade nisso?

O celibato do clero tem seu fundamento na 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios (7, 25-35), onde S. Paulo recomenda expressamente a vida una ou indivisa. Esta foi sendo praticada espontaneamente pelo clero até que, em aproximadamente 306, o Concílio regional de Elvira (Espanha) a sancionou para os eclesiásticos de grau superior. A legislação de Elvira foi-se propagando no Ocidente por obra de outros Concílios regionais.

Diferentemente, os orientais estipularam que, após a Ordenação, os clérigos de grau superior (do diaconato para cima) não poderiam contrair Matrimônio, mas eram autorizados a manter o uso do Matrimônio os que tivessem casado antes da ordenação. O Concílio de Niceia I (325) rejeitou a proposta segundo a qual o celibato no Oriente seria observado sem exceções, como no Ocidente; isto por protesto do Bispo egípcio Pafnúncio, o qual guardava pessoalmente o celibato. Os Bispos orientais são todos celibatários e, por isto, recrutados entre os monges.

† † †

Como se vê, no último item como em outros, muitas das diferenças são disciplinares e não impedem a volta à unidade entre cristãos orientais e ocidentais. Podem-se admitir o pão fermentado na Eucaristia, a Epiclese como regra, que parte do clero seja casada. Outros pontos podem ser discutidos com muita tranquilidade, e com alguma revisão de termos, chegar-se a um termo, como é o caso da procedência do Espírito Santo. O maior obstáculo permanece o do primado do Papa.

Paulo VI e João Paulo II demonstraram compreender bem o problema, que acreditavam (como a Igreja ainda crê) que pode ser resolvido satisfatoriamente sem que se abra mão dos pontos inegociáveis de nossa fé e doutrina. Escreveu S. João Paulo II em sua encíclica Ut Unum Sit ('Para que seja um'), a qual é muito recomendável que seja lida e compreendida por todos os católicos:

Entre todas as Igrejas e Comunidades Eclesiais, a Igreja Católica está consciente de ter conservado o Ministério do sucessor do Apóstolo Pedro, o Bispo de Roma, que Deus constituiu como perpétuo e visível fundamento da unidade e que o Espírito ampara para que torne participantes deste bem essencial todos os outros.

Segundo a feliz expressão do Papa Gregório Magno, o meu Ministério é de Servus servorum Dei. Por outra parte, como pude afirmar por ocasião do Encontro do Conselho Mundial das Igrejas em genebra aos 12 de junho de 1984, a convicção da Igreja Católica de, na fidelidade à Tradição apostólica e à fé dos Padres, ter conservado, no Ministério do Bispo de Roma, o sinal visível e a garantia da unidade, constitui uma dificuldade para a maior parte dos outros cristãos, cuja memória está marcada por certas recordações dolorosas. Por quanto sejamos disso responsáveis, como o meu Predecessor Paulo VI, imploro perdão.

Com o poder e a autoridade sem os quais tal função seria ilusória, o Bispo de Roma deve assegurar a comunhão de todas as Igrejas. Por este título, ele é o primeiro entre os servidores da unidade. Tal primado é exercido em vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, a celebração sacramental e litúrgica, a missão, a disciplina e a vida cristã. Compete ao Sucessor de Pedro recordar as exigências do bem comum da Igreja, se alguém for tentado a esquecê-las em função dos interesses próprios. Tem o dever de advertir, admoestar e, por vezes, declarar inconciliável com a unidade da fé esta ou aquele opinião que se difunde. Quando as circunstâncias o exigirem, fala em nome de todos os Pastores em comunhão com ele. Pode ainda – em condições bem precisas, esclarecidas pelo Concílio do Vaticano I – declarar ex cathedra que uma doutrina pertence ao depósito da fé. Ao prestar este testemunho à verdade, ele serve à unidade

Dirigindo-me ao Patriarca Ecumênico Sua Santidade Dimitrios I, disse estar consciente de que, 'por razões muito diferentes, e contra a vontade de uns e outros, o que era um serviço pôde manifestar-se sob uma luz bastante diversa'. Mas é com o desejo de obedecer verdadeiramente à Vontade de Cristo que eu me reconheço chamado, como Bispo de Roma, a exercer este Ministério. (…) O Espírito Santo nos dê sua Luz e ilumine todos os pastores e os teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este Ministério possa realizar um serviço de amor reconhecido por uns e por outros.

(Ut Unum Sit nºs 88/94-95, 25/5/1995)

Vemos que o Papa não abdica (nem poderia abdicar) do seu Ministério, que garante a unidade da Igreja, antes o afirma com todas as letras; mas pede que os teólogos proponham modalidades de exercício desse Ministério que satisfaçam a todos os cristãos (leia a Ut Unum Sit na íntegra).

Suplicamos, humildes, ao Espírito Santo que inspire os responsáveis para que realmente colaborem para a solução das dificuldades que os cristãos não católicos enfrentam no tocante ao primado do Papa!

_____
Notas:
1. Por volta do ano 48, apresenta-se em Antioquia o problema relativo à oportunidade da circuncisão para os não-judeus, quando cristãos provenientes da Judeia reclamam a 'liberdade adquirida em Cristo Jesus', que Paulo e Barnabé também invocam para não impor esse rito aos cristãos vindos do paganismo. A comunidade então interpelar os Apóstolos e os Anciãos de Jerusalém e lhes enviam Paulo e Barnabé, com seu companheiro grego Tito, acompanhados de uma delegação.
(N. do A., conf. Portal do Vaticano: Basilica San Paolo Fuori le Mura, disp. em:
vatican.va/various/basiliche/san_paolo/po/san_paolo/concilio.htm
Acesso 26/4/016)


2. 'As Pessoas divinas são relativas umas às outras. Por não dividir a Unidade divina, a distinção real das Pessoas entre si reside unicamente nas relações que as referem umas às outras: nos nomes relativos das Pessoas, o Pai é referido ao Filho, o Filho ao Pai, o Espírito Santo aos dois; quando se fala destas três Pessoas, considerando as relações, crê-se todavia em uma só Natureza ou Substância. Pois tudo é uno n'Eles, onde não se encontra a oposição de relação. Por causa desta Unidade, o Pai está todo inteiro no Filho, todo inteiro no Espírito Santo; o Filho está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Espírito Santo; o Espírito Santo, todo inteiro no Pai, todo inteiro no Filho'.
(CIC §255)

3. O Batismo por aspersão (com a água aplicada geralmente sobre a cabeça) é explicitamente descrito  nas Sagradas Escrituras como prática comum da Igreja (ainda que não exclusiva) desde os primeiríssimos tempos. No caso do Apóstolo Paulo, ainda chamado Saulo quando partiu para Damasco em perseguição à Igreja (At 9,1-2), após a sua maravilhosa conversão mediante a visão do Senhor, foi recebido em casa de um Judas (onde permaneceu, cego e em jejum absoluto, por três dias) e ali mesmo foi batizado por Ananias, dentro de um quarto e em pé: 'Imediatamente, lhe caíram dos olhos como que escamas, e tornou a ver. A seguir, levantou-se e foi batizadoDepois tomou alimento e sentiu-se fortalecido.' (At 9,18-19). Na expressão no original em grego koiné,ANASTAS EBAPTISQH (anastas ebaptisthê), o particípio 'anastas' indica uma ação imediata entre o levantar e ser batizado. Havia certamente água no quarto porque já era prática judaica aspergirem-se frequentemente em diversas situações.
• Além deste caso, o mesmo Livro dos Atos menciona carcereiro de Filipo, que foi igualmente batizado 'imediatamente' em sua casa, juntamente com 'toda a sua família' (At 16, 33), em sua residência, logo após lavar as chagas de Paulo e Silas, sem nenhuma menção a rio, piscina ou grande tanque.
• O segundo capítulo do Livro dos Atos ainda menciona que 'mais ou menos três mil' foram batizados em Jerusalém. Note-se que não havia rio ou água corrente dentro da cidade que permitiria a imersão
de milhares de pessoas naquela ocasião. 

___
Ref.:
BETTENCOURT, Estevão, osb, revista 'Pergunte e responderemos' nº 480, 2002, pp. 200ss
www.ofielcatolico.com.br

Um novo Milagre eucarístico na Polônia


LEGNICA, POLÔNIA, abril de 2016 – Dom Zbigniew Kiernikowski, Bispo de Legnica, aprovou no dia 17 de abril de 2016 a veneração de uma santa Hóstia Consagrada que sangra, devidamente comprovado o fenômeno milagroso, a qual, nas palavras do prelado, “possui as características distintivas de um Milagre eucarístico”.

No Natal de 2013, uma Hóstia consagrada caiu no chão da igreja da paróquia polonesa de Saint Jack –, relata o Sr. Bispo em um comunicado –, e depois de recolhida foi posta em um recipiente com água, segundo certa norma. Pouco tempo depois, apareceram manchas vermelhas no Pão Eucarístico.

Dom Stefan Cichy, que era então o Bispo de Legnica, criou uma comissão especial para analisar a Hóstia. Em fevereiro de 2014, um pequeno fragmento foi colocado sobre um corporal e passou por provas de vários institutos médicos e análises clínicas.

Para a maravilha e exultação de todo o povo cristão, o comunicado final do Departamento de Medicina Forense atestou, entre outros pontos, que:

A imagem histopatológica encontrou no material partes fragmentadas do músculo estriado transversal, semelhante ao músculo do coração.1

Ainda mais, as provas determinaram também que o tecido é de origem humana e que apresentava sinais químicos de que o seu portador tenha sido submetido a sofrimentos físicos(!). Como se vê, são coincidências flagrantes com o mais famoso caso de Milagre eucarístico, o de Lanciano, Itália (saiba mais).

Dom Kiernikowski confirmou que, em janeiro de 2016, apresentou o caso à Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano.

Em abril do mesmo ano, de acordo com as recomendações da Santa Sé, o prelado pediu ao pároco de Saint Jack, Andrzej Ziombrze, que prepare "um lugar adequado para as Relíquias, de tal forma que os fiéis pudessem venerá-las”.

_____
Fonte:
1. ACI Digital, 'Novo milagre eucarístico na Polônia', disp. em:
acidigital.com/noticias/novo-milagre-eucaristico-na-polonia-92095/
Acesso 23/4/016
www.ofielcatolico.com.br

A crise política e econômica e o famoso 'Estado laico'

Votação do impeachment de Dilma Roussef (17/4/016)

ASSISTI ONTEM, no programa de final de tarde do canal Globo News, "Diálogos com Mário Sérgio Conti", jornalista famoso por suas trapalhadas, uma tragicômica entrevista com o prof. Luiz Felipe de Alencastro, da FGV (Fundação Getúlio Vargas) de São Paulo. Esquerdista incansável em sua missão sagrada de nos alertar quanto aos supostos grandes males provocados pelo conservadorismo na história do Brasil, Alencastro não perdeu a oportunidade para defender o chamado Partido dos Trabalhadores e suas táticas, aliás com uma competência bem maior que a do advogado (que deveria ser da União, mas que se comporta como funcionário particular de Dilma Roussef) José Eduardo Cardoso.

Algo que me chamou a atenção nesta entrevista foram os veementes e escandalizados protestos do entrevistado, – compartilhados e referenciados com idêntico escândalo pelo entrevistador, – contra a manifestação de parte dos deputados que votaram a favor do impeachment na Câmara dos Deputados no domingo, 17/4/016, pelo fato de terem falado em Deus ou invocado valores religiosos durante suas declarações, como se isto, por si só, desqualificasse qualquer ato ou posição dos que se atrevem a fazê-lo.

A mesma indignação, o mesmo escândalo e o mesmo horror vêm demonstrando outros jornalistas e comentadores desta e de outras emissoras: para estes, citar Deus ou afirmar princípios religiosos parece constituir o pior dos crimes para um representante do povo. Ainda no começo desta semana, disparou o Guga Chacra, correspondente da mesma Globo News em Nova York para o programa "Em Pauta": "Esta postura é preocupante, porque o Brasil é um país laico; com essas pessoas (que citam Deus), nós não conseguiremos 'avançar' na questão do gênero, por exemplo". Mal terminou de dizê-lo, recebeu as prontas e unânimes congratulações dos outros comentaristas, entre os quais Gerson Camarotti, Sandra Coutinho, Eliane Cantanhêde e o apresentador Sérgio Aguiar.

É neste momento que eu, do meu sofá, enquanto cidadão brasileiro honesto, contribuinte e, bem ou mal, consumidor de alguns programas daquela emissora, sinto-me traído.

Traído porque sou brasileiro e sou cristão, assim como algo em torno de 90% da população brasileira ou mais (Censo 2010/Pew Research Center). Fique claro que estes números contemplam apenas católicos e protestantes; se considerarmos também os adeptos das outras correntes religiosas existentes em nosso país, chegaremos realmente muito, muito perto dos 100%. Segundo o mesmo Censo, apenas ínfimos 0,39% da população brasileira é ateia).

Dizendo de outro modo, não chegamos sequer a um por cent... Não, não, na realidade não temos nem meio por cento de ateus em nosso país e, mesmo assim, entre os membros da dita "classe falante", a palavra de ordem, que assume características de mantra hipnótico que como num passe de mágica confere razão instantânea a quem o profere é: "O país é laico!", – dito no sentido de que qualquer manifestação pública de fé esteja terminantemente proibida ou, no mínimo, seja altamente inconveniente.

A frase é repetida infalivelmente toda vez que se ouse insinuar qualquer argumento que possa, ainda que indiretamente, levar à associação com pressupostos religiosos. E, como eu disse, encerra de imediato toda discussão, fecha instantaneamente a questão. Ninguém ousa discordar deste suposto argumento invencível. Se o país é laico, logo é inadmissível, absurdo, pavoroso e sumamente escandaloso que se use qualquer ponto de partida calcado na fé religiosa e/ou que sequer se pronuncie publicamente a palavra "Deus".


Guga Chacra

Assim, no programa "Em Pauta", todos os comentaristas concordaram, à velocidade da luz, com Guga Chacra, que acha um grande absurdo, uma prova cabal da suprema falta de bom senso ou de lógica que algum representante de um povo praticamente 100% crente em Deus ouse falar em... Deus!

Curiosíssimo é que esses comunicadores profissionais e supostamente bem formados deveriam saber que Estado laico de modo algum é sinônimo de Estado ateu ou agnóstico, como brilhantemente esclarece o grande jurista Dr. Ives Gandra Martins:


O Estado laico não é ateu ou agnóstico. É um Estado desvinculado, nas decisões dos cidadãos que o assumem, de qualquer incidência direta das instituições religiosas de qualquer credo.  (...) O preâmbulo da Constituição Federal diz: 'Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático (...) promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil'. A Igreja Católica, os evangélicos ou judeus não estiveram na Assembleia Constituinte como instituições. Foram os cidadãos, de acordo com suas convicções, eleitos pelo povo, que definiram contra o voto daqueles que não acreditavam em Deus. (...) Quando se diz que, em um Estado laico, quem tem religião não tem voz, — porque vai levar suas convicções, — a pergunta que se faz é: e aqueles que têm convicções diferentes, com que direito as têm?”
Dr. Ives Gandra Martins, Seminário sobre liberdade religiosa, Assoc. dos Advogados de São Paulo (21/5/015)1

Disse tudo. Um Estado laico não mantém ou depende de alguma religião oficial. Não é a religião que submete o Estado, nem o representa, nem é a partir desta que o Estado se pauta, toma suas decisões e cria suas leis. Todavia, no Estado laico a religião, com os seus seus princípios, valores (morais e culturais) e influências, deve ter também a sua vez e o seu espaço, não sendo necessariamente rechaçada ou relegada à categoria de coisa ruim, inútil, desprezível. Nada disso.

Não cabem, portanto, esse estranhamento e essa rejeição tão absoluta de parte dos jornalistas pelo fato de os representantes do povo falarem em Deus ou citarem valores religiosos nos seus discursos. Ao contrário, nada mais natural, se é que estão falando em nome de um povo tão majoritariamente cristão e quase 100% crente num Deus Criador.

Evidente que os políticos religiosos precisam respeitar os seus pares ateus. Entretanto, é o caso de se perguntar que tipo de democracia nós vivemos, em que a vontade da esmagadora maioria é solenemente ignorada por um pequeno grupo de professores, intelectuais e comunicadores que, por sua vez, se veem no direito de determinar aquilo que será implantado, aceito, pregado e crido por todos. Em outras palavras, na prática é a opinião de "meia dúzia" sendo imposta a milhões; imposta a mim e a você, caro leitor.

Um exemplo muito claro está na questão do aborto. O brasileiro não quer a legalização. Vemos o aborto simplesmente como aquilo que é: o assassinato de um ser humano completamente inocente e completamente indefeso no ventre de sua mãe. A fé religiosa tem alguma influência nesta opinião? Provavelmente sim, ao menos em parte. Mas será que, por causa disso, a vontade soberana do povo se torna ilegítima? Claro e evidente que não! Ao contrário, nós temos direito à fé religiosa, e nossa fé influi, sim, nos nossos atos, nas nossas posturas, em nossa cultura, em nossas convicções. O governo atual, mesmo assim, tem como compromisso a “defesa da descriminalização do aborto e regulamentação do atendimento a todos os casos (até o nono mês de gestação!) no serviço público”2.

Ora, como é que um governo dito "democrático", de um partido que carrega a democracia como bandeira e fala o tempo todo em seu nome, quer empurrar "goela abaixo" desta população a implantação de leis que promovem algo que este mesmo povo vê como um mal em si mesmo?

Um terceiro e último ponto que importa abordar nestas considerações é que o cristianismo, – no caso a Igreja Católica, – com seus valores, ideais e princípios inegociáveis, construiu a nossa civilização. Nosso país e nossa cultura são fundados e permanecem fortemente calcados na contribuição da Igreja. Se hoje temos, – entre muitas outras coisas, – as casas de caridade, hospitais, a universidade, a cartografia, a educação e o Direito, como os conhecemos, temos a obrigação de saber que tudo isso não foi apenas fortemente influenciado, mas verdadeiramente construído pela e com a Igreja e sobre as bases dos valores judaico-cristãos. Como é que um pequeníssimo grupo de comunicadores poderia então, de uma hora para outra, decidir que de agora em diante é proibido falar em Deus?! Sob a alegação de que não podemos "ofender" aqueles que não têm fé? Ora, isto é simplesmente ridículo, dada a simples estatística, a mera aceitação da realidade dos fatos.

Por fim, cabe dizer que a concepção dos que entendem que num Estado laico só os que não acreditam num Criador é que podem definir as regras de convivência, – vedando qualquer manifestação contrária ao seu ateísmo ou agnosticismo, – representa o panorama da autêntica ditadura de uma ínfima minoria contra a vontade da suprema maioria. Deveriam estes, até por coerência, lutar pela supressão de todos os feriados religiosos, a partir do maior deles, o Natal. Deveriam pedir a mudança de todos os nomes de cidades que têm santos como patronos e destruir todos os símbolos que lembrassem qualquer invocação religiosa, como uma das sete maravilhas do mundo moderno, o Cristo Redentor, para não criar constrangimentos aos 0,39% que não acreditam em Deus. Deveriam protestar também contra o fato de a moeda padrão do mundo, o Dólar, ter como inscrição a frase "In God We Trust".

Não permitiremos que, por esta onda de loucura e incoerência, seja pisoteado todo o passado da nossa civilização, desde a obra de Monteiro Lobato às Epístolas de São Paulo, não ficando imunes sequer as obras clássicas dos grandes filósofos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, entre tantos outros.


O discurso avassalador do senador Magno Malta (PR-ES), em vídeo editado por Felipe Moura Brasil



______
1. Consultor Jurídico, 'Estado laico não é ateu ou agnóstico, diz Ives Gandra Martins', disp. em:
conjur.com.br/2014-mai-21/estado-laico-nao-ateu-ou-agnostico-ives-gandra-martins
Acesso 22/4/016
2. Resoluções do 3º Congresso do PT, p. 80. disp. em:
pt.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Resolucoesdo3oCongressoPT.pdf
Acesso 
22/4/016
www.ofielcatolico.com.br

Entre a ideologia e o (bom) senso comum

O Julgamento de Cristo por Pilatos (1881)
segundo Mihály Munkácsy

Por Igor Andrade – Frat. Laical São Próspero

DEPOIS DE ESCREVER uma série de artigos para "O Fiel Católico" sobre o liberalismo, que terminou com um sobre a Moral e o Senso Comum, senti a necessidade de abordar a relação entre Ideologia e Senso Comum, mas a partir de um ponto de vista teórico-filosófico, ao invés de prático-dogmático. Por se tratar de uma obra de apostolado, tive de me valer de termos mais simples, o que limitou minha explanação e – sinto em admitir – o entendimento do público aparentemente mais erudito, que, junto de mim, me considerou raso e sem fundamento. Longe de uma tentativa de redimir-me com o público, o presente artigo visa abordar o tema titular com maior profundidade e menor probabilidade de erro e má interpretação.

Comecemos abordando o primeiro termo em si mesmo. O que é “ideologia”? Como bem explicou Vitor Matias em seu artigo “Mimetismo Ideológico e Corrupção de Termos”, ideologia é um sistema de ideias acerca da realidade, – mas que não tem ligação direta com a mesma; – são ideias abstratas que não têm por fundamento as coisas objetivas, mas parte de um princípio meramente subjetivo. Ora, quando se confunde o critério subjetivo com o objetivo, têm-se um sério problema de interpretação da realidade. Afinal, a phisis existe apesar do sujeito ou a partir dele? Dependendo de qual for a escolha, as consequências práticas podem ser completamente diferentes... Digamos, por exemplo, agonia, dor e miséria, além de algumas centenas de milhões de inocentes (e talvez alguns culpados) mortos.

Pois bem, olhar para a phisis de maneira objetiva significa dizer que as coisas que são objeto do conhecimento (humano) existem apesar do sujeito. 2+2=4 eu querendo ou não; objectum, do latim, significa “aquilo que é lançado de encontro a”, ou seja, é a realidade que se me apresenta, que se impõe diante do meu intelecto para contemplação. Daí, deriva-se o conceito de verdade das coisas. Respondendo à pergunta que Pilatos faz ao Cristo, “Quid est veritas?” (o que é a verdade?): A verdade é a adequação da mente do sujeito ao objeto (ou, de maneira mais extensiva, à realidade de modo geral).



Por exemplo, a realidade se apresenta ao sujeito de tal modo que ele percebe que o grafite é preto. Quando o sujeito recebe essa informação (através de um processo de conhecimento no qual não me deterei agora), elabora um enunciado que deve ser adequado àquilo que a realidade lhe apresentou, isto é, “o grafite é preto”: tal enunciado é simplesmente verdadeiro. Se o indivíduo, contudo, elabora que “o grafite é branco”, isso incorre numa não-verdade, porque a mente não se adequou à realidade apresentada: tal enunciado é falso.

Para aqueles que rebaixam sua condição racional e se dobram a ponto de acatarem a alguma ideologia ('de esquerda' ou 'de direita', por exemplo), não é esse o modo de proceder, sendo que estes partem de um princípio subjetivo. Subjectum, do latim, significa “aquilo que é lançado debaixo de”, no sentido de “portar”; o sujeito da ação é aquele em quem a ação ocorre: o sujeito belo é aquele em quem a qualidade da beleza reside; portanto, um princípio subjetivo de contemplação da realidade é aquele que parte do sujeito que realiza o ato de contemplar aquilo que se segue a partir dele. Nesse caso, primeiro o indivíduo elabora um enunciado (porque parte do cógito) e, depois, confronta-o com a realidade. Elabora “o grafite é branco” e, a partir disso, procura adequar a realidade objetiva à sua subjetividade; daí o quadro “Ceci n’est une pipe” ('Isso não é um cachimbo') é apenas o começo de uma longa e demorada tragédia na história humana.

O problema começa a aumentar quando este sujeito quer não só contemplar, mas agir objetivamente a partir de seus princípios subjetivos. Assim sendo, na ideologia, não é o sujeito que se adequa à realidade, mas o contrário: é o objeto (real) que deve se adequar ao sistema de ideias acatado pelo sujeito. Confunde-se as noções de objetivo e subjetivo.

O quadro geral do paciente se agrava ainda mais – já estando este a ponto de perder por completo sua sanidade mental – quando, além de confundir as noções de objetivo e subjetivo, ele não nega a verdade. Se a verdade fosse simplesmente negada, ou a postura adotada fosse uma espécie de agnosticismo ('não podemos conhecer a verdade mesma, então cada um age segundo os seus costumes'), os danos à humanidade não chegariam nem aos pés dos que foram infligidos de fato ao longo da história manchada pelas ideologias. A postura adotada pelos ideólogos não foi a de recusar a verdade, mas de recusar que a verdade é a adequação do sujeito à realidade. Foi tomada uma postura mais radical, quando a realidade passou a ter de se adequar ao sujeito. Voltou-se à era pré-socrática e a phisis foi novamente vista como um eterno devir, uma mudança contínua, uma "metamorfose ambulante".

Contudo, deve-se ressaltar que, ao contrário dos pré-socráticos, essa mudança de concepção da realidade pelos ideólogos tem um fim político, escatológico; seu objetivo é o "paraíso" pós-revolução, seja ela uma revolução “de direita” ou “de esquerda”.

Os reflexos de tal falha na concepção da realidade se dão no agir humano. Tal visão justifica tudo: pedofilia, incesto, estupro, zoofilia, genocídios, tortura, aborto, entre outras atrocidades. Não confie no que acaba de ler; leia “A Dialética dos Sexos”, da feminista Shulamith Firestone, e/ou as “Onze teses sobre Feuerbach”, de Karl Marx, onde ele afirma com todas as letras que o que existe de fato são as ações do sujeito, não a realidade objetiva, que seria uma visão burguesa do mundo(!).

“O triunfo da ideologia”, diz Russell Kirk, “seria o triunfo do que Edmund Burke chamou de ‘mundo antagonista’, o mundo da desordem”, o mundo do Caos. O que os ideólogos não percebem – demos-lhes um voto de boa-fé – é que o Caos não gera Cosmos.

Pois bem, vimos até aqui o porquê de a ideologia em si mesma, não importando a direção que toma ('esquerda' ou 'direita') ou o nome que recebe (nazismo, fascismo, socialismo, liberalismo, anarquismo, comunismo, entre outros), é tão nefasta. Agora pretendo mostrar “o outro lado”, o Bom Senso, aquele senso do óbvio, aquele senso que simplesmente não pergunta se a grama é de fato verde, se isso se trata apenas de uma ilusão dos sentidos ou de uma influência da sociedade ou ainda de qualquer outra ideia que não diga respeito ao real objetivo.

Chegará o dia em que teremos que provar ao mundo que a grama é verde
G. K. Chesterton

Gilbert Keith Chesterton
Começo a segunda parte com esse aforismo do "Apóstolo do Senso Comum". Aquele que tratava as trivialidades como tremendas conseguiu sintetizar, inúmeras vezes, problemáticas inteiras em curtas frases. No presente caso, trata-se da problemática do evidente.

Em sua crônica “O Mistério de um Desfile”, Chesterton apresenta uma controvérsia do século XVII acerca da existência do mundo material. Cita o bispo anglicano George Berkeley, que defendia a inexistência da matéria, e seu rival acadêmico Samuel Johnson, que defendia o senso comum:

Johnson [...] não apreciava idéias tão insondáveis como as defendidas por Berkeley e chutou uma pedra dizendo: ‘é assim que refuto a ele!’. Ora, chutar uma pedra não tornaria uma discussão metafísica clara o suficiente; além disso, machucaria. Mas quão pitoresco e perfeito seria se eu atravessasse o gramado na posição alegórica de chutar o bispo Berkeley! Que grupo completo: o grande transcendentalista caminhando com a cabeça entre as estrelas, mas atrás dele o realista coxo vingador com o pé levantado.

“Chutar uma pedra não tornaria uma discussão metafísica clara o suficiente”. – Destaco tal expressão usada por Chesterton porque ela apresenta o maior problema do realismo, o maior problema em estabelecer o Bom Senso como algo que resiste à Ideologia: as coisas mais óbvias e evidentes são as mais difíceis de se explicar. Ao mesmo tempo são fáceis e difíceis de se conhecer.

Ora, isso é muito fácil de se perceber: comece explicando para si mesmo o que é pedra. Todos nós conhecemos pedras de diversos tipos, tamanhos, cores e formatos; mas o que é pedra? Entrando no campo da conduta, que é a Coragem? Não ações corajosas, mas a coragem mesma? Creio que entende o leitor a que me refiro quando faço tais questionamentos. Não vou me deter neste ponto. A provocação tem unicamente o intuito de mostrar que conhecer a realidade em si não é fácil. O problema da Ideologia é que ela percebeu isso, mas é soberba demais para optar pelos dois caminhos que restam: ou se esforçar mais para compreender a realidade, ou se submeter aos afazeres de um ser humano comum e deixar essa difícil e hercúlea tarefa para o filósofo.

É claro que quando me refiro à Ideologia nesses termos, faço alusão à Filosofia de Salão, tão famosa a partir do século XVIII, que não forma filósofos, mas sofistas, demagogos e, no pior dos casos, detentores do poder da fala.

Na obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, Immanuel Kant diz:

Não é arte alguma fazer-se compreender do comum dos homens renunciando a todo discernimento meticuloso, mas isso produz também uma mixórdia tediosa de observações mal-alinhavadas e princípios semi-raciocinantes, com o que se deliciam as cabeças insossas, porque sempre serve para conversa fiada, ao passo que as dotadas de discernimento se sentem confusas; apesar de que os filósofos, que enxergam muito bem através desses embustes, preferem se afastar para, só depois de chegar a um determinado discernimento, conquistar o direito de ser popular.

Noutras palavras, é bom falar de tal modo que se entenda por todos, porém isso só deve ser feito depois de um longo trabalho filosófico. Somente depois de se subir à montanha deve-se retornar à caverna; do contrário, o sujeito se torna um demagogo ideólogo, que mais inventa do que conhece sobre a realidade.

Portanto, aos aspirantes a filósofos, digo que estudem como se não houvesse amanhã e que entendam a phisis na qual tudo está inserido; aos ideólogos, sugiro, sem o menor escrúpulo e ao modo mais chestertoniano possível, que chutem uma pedra quando proposições como “as pedras não existem”, ou algo semelhante se lhes passar pela mente.

____
1. Phisis ou Physis significa o conjunto de todas as coisas naturais; a palavra também significa 'origem'. Como os gregos consideravam que tudo o que existe é natural, a phisis significa o conjunto de todas as coisas, e 'o problema da physis' é a pergunta sobre a origem e constituição de todas as coisas que existem (N do E).
www.ofielcatolico.com.br

São Francisco de Sales – Biografia e espiritualidade do autor de Filoteia


Por Ismael da Cunha – Oratório Secular de São Filipe Neri de São Paulo

FRANCISCO DE SALES, primogênito de uma nobre família francesa, nasceu em 1567, no castelo de Thorens, Savoia (França). Como era a tradição entre os nobres da época, durante todo o período dos seus estudos teve de exercitar-se como cavaleiro e espadachim para tornar-se também um guerreiro.

Sua vocação, no entanto, estava nas carreiras intelectuais. Aos quinze anos de idade já estava cursando Direito na Universidade de Paris (Sorbonne). Paralelamente a esse curso, completou os estudos em Filosofia e Teologia. Nesse período, a Universidade de Sorbonne era palco para o desfile das novas ideias que se apresentaram com a Renascença e a dita Reforma protestante.

Em 1588, já bacharel, Francisco de Sales iniciou doutoramento em direito civil e canônico em Pádua, na Itália. Finalizou esses estudos em 1591, retornando à França no ano seguinte. Novamente com a família, expôs sua decisão de ser da Igreja. Desde pequeno almejava ser sacerdote.

Não foi fácil convencer o pai, que já desenhara o futuro do filho: advogado do Senado da Savoia, casado com uma moça de boa posição e excelentes qualidades. A decisão do filho, contudo, se fez concretizar quando foi nomeado preboste[1] do capítulo catedrático[2] na diocese de Genebra (Suíça) pelo Mons. Claude de Granier, bispo de Genebra.


Castelo de Thorens, onde nasceu S. Francisco de Sales

A vida religiosa

A cidade para onde Francisco foi designado estava dominada pelas ideias protestantes e pela “república” de Calvino, a ponto de o bispo daquela diocese ter sido obrigado a passar a residir em Annecy, capital da Savoia, para fugir da fogueira calvinista.

Como religioso, Francisco enfrentaria muitos combates. Desde a sua ordenação, entregou-se às pregações, à celebração da Santa Missa e, sobretudo, às Confissões.

Em 1594, foi para uma região habitada por muitos protestantes denominada Chablais. Acompanhado por seu primo, Louis de Sales, passou a trabalhar pela conversão daquelas pessoas. Foi uma luta intensa. Quatro anos de esforços para, como dizem acerca desse episódio, “forçar as muralhas de Genebra pela oração e invadi-la com a caridade”. Suas ações principiaram com a publicação e distribuição em domicílio de cadernos que tratavam da Doutrina católica. Com o tempo, passou à pregação direta e à controvérsia.

Nesse período, foi nomeado bispo coadjutor[3] pelo papa Clemente VIII. Logo em seguida, em 1602, após o falecimento de Mons. Granier, foi sagrado bispo de Genebra. Dedicou-se às tarefas pastorais, atendendo exemplarmente às reformas recomendadas pelo Concílio de Trento.


A Ordem da Visitação

Em 1604, enquanto pregava os sermões de Quaresma em Dijon, França, Francisco de Sales conheceu Joana de Chantal, uma jovem senhora de origem nobre que se dedicava à família e também às obras de misericórdia e caridade. Órfã de mãe, aos vinte e oito anos Joana enviuvara do barão de Rabutin-Chantal.


Representação do encontro de S. Francisco de Sales
e Sta. Joana Francisca de Chantal

Santa Joana Francisca de Chantal

O Bispo de Genebra passou a se encarregar da direção espiritual de Joana e transmitiu a ela a importância do abandono em Deus. Seis anos após esse encontro, seguindo os conselhos e orientações de seu diretor, Joana fundava a Ordem da Visitação em Annecy, na França. Em seguida, coordenou a fundação do segundo mosteiro naquele país. Joana de Chantal faleceu em 1641 e foi canonizada em 1767, pelo papa Clemente XIII.


Basílica do Mosteiro da Ordem da Visitação em Annecy

A Visitação, ordem de vida monástica contemplativa, está presente também na Itália, com casas fundadas ainda no século XVII, no Uruguai e no Brasil. A primeira fundação em terras brasileiras se deu em Pouso Alegre (MG), em 1902. A comunidade de Minas, no entanto, transferiu-se em 1915 para a capital de São Paulo, no bairro de Vila Mariana, onde permanece até hoje (saiba mais).


A espiritualidade salesiana

Praticamente todos os ensinamentos de São Francisco de Sales, bem como sua espiritualidade, têm origem em suas experiências de vida.

Os tempos de estudo e o contato com algumas ideias protestantes renderam a Francisco uma profunda dúvida acerca de sua própria salvação. O tormento só cessou na ocasião em que, ajoelhado diante de uma imagem de Nossa Senhora, ele realizou um ato de abandono e de esperança em Deus. Declarou ao Senhor que estava disposto a amá-lo durante esta vida, mesmo que o seu destino fosse a condenação eterna. Todas as dúvidas acerca da sua salvação foram então confiadas à Misericórdia divina.

S. Francisco de Sales oferece seu coração à Virgem Maria, acompanhado de Sta. Joana Francisca de Chantal, Catedral de Saint-Siffrein, França

Esse abandono em Deus, – ensinado também à Joana de Chantal, – marcou o caráter de Francisco de maneira muito acentuada e tornou-se uma das linhas-mestras da sua espiritualidade. Do abandono vêm a suprema serenidade e a paz características deste santo, que lutou para harmonizar uma alegria permanente e o esforço intenso parar cumprir a Vontade de Deus.

O bispo de Genebra encarregou-se ainda da direção espiritual de muitos, desde soldados e camponeses protestantes até nobres e freiras. Os conselhos que a eles dirigia venceram o tempo, pois chegam a nós por meio de suas duas principais obras: "Introdução à Vida Devota" ou "Filoteia" (1608) e o "Tratado do Amor a Deus" (1619).

Em "Introdução à Vida Devota", lemos:

Quase todos os autores que até esta data têm estudado a devoção, tiveram por pauta ensiná-la aos que vivem afastados do mundo. O meu objeto agora é doutrinar os que habitam nas cidades, vivem com suas famílias, tendo de seguir externamente uma conduta comum.

Francisco de Sales acolhia os pecadores, buscando compreendê-los. E os ensinava. Convidava à devoção e à prática de um amor a Deus que fosse ativo, preocupado em agradar a Deus em tudo. Ensinava como meditar, recomendando uma forma dialogada e simples, num método precioso e permeado de afeto, que deveria ser buscado por todo cristão católico. Dirigia ainda sua preocupação às qualidades que gerassem uma convivência amável entre as pessoas.

Todavia, em contrapartida à doçura, humildade e paciência, Francisco também era firme e enérgico. Foi essa luta por suavizar o caráter lhe permitiu apresentar aos seus dirigidos um quadro amável da luta interior.

Francisco morreu em Lyon, no ano 1622, quando visitava o convento de suas religiosas. No ano seguinte, seu corpo foi trasladado a Annecy. Seus ensinamentos marcaram profundamente a espiritualidade dos últimos quatro séculos.

Em 1664, Francisco de Sales foi canonizado; a Igreja celebra o seu dia aos 24 de janeiro. Em 1877, Pio IX o nomeou Doutor da Igreja e, em 1923, foi proclamado padroeiro dos jornalistas e escritores católicos pelo papa Pio XI, sendo, portanto, um dos padroeiros deste nosso apostolado.

São Francisco de Sales, rogai a Deus por nós!


_____
Notas:
1. Juiz civil ou militar da antiga magistratura francesa. O preboste, hierarquicamente, está abaixo do abade em uma ordem ou convento e o substitui em caso de ausência.
2. O termo 'capítulo catedrático' refere-se a certos corpos eclesiásticos da Igreja; 'capítulo' ainda designa as reuniões para a discussão de assuntos de interesse de uma ordem ou mosteiro.
3. Bispo coadjutor é um bispo titular que auxilia e também substitui um bispo ou arcebispo em caso de ausência. Diferentemente do auxiliar, o bispo coadjutor pode suceder o bispo, a exemplo do que aconteceu com Francisco de Sales.
www.ofielcatolico.com.br

O que é conservadorismo? – os Dez Princípios Conservadores segundo Russel Kirk


APESAR DE TODA a difamação, de toda a suja campanha contrária (o que não implica dizer que a campanha a favor tenha sido limpa), remando contra dúzias de "escândalos" mais ou menos fabricados sob medida, o apoio incondicional da mídia internacional (chora, equipe Globonews!), a debandada geral dos próprios liberais e de todas as previsões dos mais abalizados "especialistas"... Donald Trump venceu –, sim senhor –, as eleições norte-americanas. Foi a primeira vez, desde 1940, em que um dos grandes partidos nomeou um candidato à presidência sem qualquer experiência política (ou militar). Foi também a primeira vez em que um candidato fez campanha contra a globalização, entre muitas outras coisas.

Após a consolidação da vitória supostamente "surpreendente" para muitos (Olavo de Carvalho, já durante as primárias republicanas, dizia que Trump era 'o único capaz de ganhar as eleições'), pipocam reações à grande onda conservadora mundial que já deixou de ser mera hipótese. Alguns festejam, outros lamentam; outros, ainda, esperneiam, inconformados. Mas quem de nós já parou para se perguntar o que significa, afinal de contas, a palavra? O que define um "conservador"? O que é conservadorismo?..

Desgraçadamente, temos ('nós', brasileiros) esta maldita mania de tomar partido –, seja contra ou a favor determinada coisa –, sem conhecer o mínimo daquilo que estamos apoiando ou combatendo (haja vista a multidão que nos aparece, quase que diariamente, berrando contra aquilo que imaginam ter sido a 'inquisição', sem nunca ter lido sequer uma orelha de livro sobre o assunto). Sobre a questão do conservadorismo, achamos que será um bom começo estudar as teses kirkianas a respeito do assunto, nos seus dez princípios, que reproduzimos abaixo. Talvez isto ajude a dissipar a neblina de ignorância que aqui em nosso país grassa sobre as mentes tanto dos que o defendem quanto dos que o condenam. 


Russel Kirk
Tradução: Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior

NÃO SENDO nem religião e nem ideologia, o conjunto de opiniões designado conservadorismo não possui nem uma Escritura Sagrada nem um Das Kapital[1] que lhe forneça um dogma. Os primeiros princípios do pensamento conservador provêm daquilo que professaram os principais escritores e homens públicos chamados conservadores ao longo dos últimos dois séculos. Sendo assim, depois de algumas observações introdutórias a respeito deste tema geral, iremos arrolar dez destes princípios conservadores.

Talvez seja mais apropriado, a maior parte das vezes, usar a palavra “conservador” principalmente como adjetivo. Já que não existe um "modelo conservador", sendo o conservadorismo, na verdade, a negação da ideologia: trata-se de um estado da mente, de um tipo de caráter, de uma maneira de olhar para ordem social civil.

A atitude que nós chamamos de conservadorismo é sustentada por um conjunto de sentimentos, mais do que por um sistema de dogmas ideológicos. É quase verdade que um conservador pode ser definido como sendo pessoa que se acha conservadora. O movimento ou o conjunto de opiniões conservadoras pode comportar uma diversidade considerável de visões a respeito de um número considerável de temas, não havendo nenhuma "lei de teste" (test act)[2] ou "Trinta e Nove Artigos"(Thirty-Nine Articles)[3] do credo conservador.

Em suma, uma pessoa conservadora é simplesmente alguém que considera as coisas permanentes mais satisfatórias do que o “caos e a noite primitiva”[5]. (Mesmo assim, os conservadores sabem, como Burke, que a saudável 'mudança é o meio de nossa preservação'). A continuidade da experiência de um povo, diz o conservador, oferece uma direção muito melhor para a política do que os planos abstratos dos filósofos de botequim. Mas é claro que a convicção conservadora é muito mais do que esta simples atitude genérica.

Não é possível redigir um catálogo completo das convicções conservadoras; no entanto, ofereço aqui, de forma sumária, dez princípios gerais; tudo indica que se possa afirmar com segurança que a maioria dos conservadores subscreveria a maior parte destas máximas. Nas várias edições do meu livro, "The Conservative Mind", fiz uma lista de alguns cânones do pensamento conservador – lista que foi sendo levemente modificada de uma edição para outra; em minha antologia "The Portable Conservative Reader", ofereço algumas variações sobre este assunto. Agora, apresento-lhes uma resenha dos pontos de vista conservadores que difere um pouco dos cânones que se encontram nestes meus dois livros. Por fim, as diferentes maneiras através das quais as opiniões conservadoras podem se expressar são, em si mesmas, uma prova de que o conservadorismo não é uma ideologia rígida. Os princípios específicos enfatizados pelos conservadores, em um dado período, variam de acordo com as circunstâncias e as necessidades daquela época. Os dez artigos de convicções abaixo refletem as ênfases dos conservadores americanos da atualidade.


1. Um conservador crê que existe uma ordem moral duradoura

Esta ordem é feita para o homem, e o homem é feito para ela: a natureza humana é uma constante e as verdades morais são permanentes.

A palavra "ordem" quer dizer harmonia. Há dois aspectos ou tipos de ordem: a ordem interior da alma e a ordem exterior do Estado. Vinte e cinco séculos atrás, Platão ensinou esta doutrina, mas hoje em dia até as pessoas instruídas acham difícil de compreendê-la. O problema da ordem tem sido uma das principais preocupações dos conservadores desde que a palavra conservador se tornou um termo político.

O mundo do século XX experimentou as terríveis consequências do colapso na crença em uma ordem moral. Assim como as atrocidades e os desastres da Grécia do V século a.C., a ruína das grandes nações, em nosso século, nos mostra o poço dentro do qual caem as sociedades que fazem confusão entre o interesse pessoal, ou engenhosos controles sociais, e as soluções satisfatórias da ordem moral tradicional.

Foi dito pelos intelectuais progressistas que os conservadores acreditam que todas as questões sociais, no fundo, são uma questão de moral pessoal. Se entendida corretamente esta afirmação é bastante verdadeira. Uma sociedade onde homens e mulheres são governados pela crença em uma ordem moral duradoura, por um forte sentido de certo e errado, por convicções pessoais sobre a justiça e a honra, será uma boa sociedade – não importa que mecanismo político se possa usar; enquanto se uma sociedade for composta de homens e mulheres moralmente à deriva, ignorantes das normas, e voltados primariamente para a gratificação de seus apetites, ela será sempre uma má sociedade – não importa o número de seus eleitores e não importa o quanto seja progressista sua constituição formal.


2. O conservador adere ao costume, à convenção e à continuidade

É o costume tradicional que permite que as pessoas vivam juntas pacificamente; os destruidores dos costumes demolem mais do que o que eles conhecem ou desejam. É através da convenção – uma palavra bastante mal empregada em nossos dias – que nós conseguimos evitar as eternas discussões sobre direitos e deveres: o Direito é fundamentalmente um conjunto de convenções. Continuidade é uma forma de atar uma geração com a outra; isto é tão importante para a sociedade com o é para o indivíduo; sem isto a vida seria sem sentido. Revolucionários bem sucedidos conseguem apagar os antigos costumes, ridicularizar as velhas convenções e quebrar a continuidade das instituições sociais – motivo pelo qual, nos últimos tempos, eles têm descoberto a necessidade de estabelecer novos costumes, convenções e continuidade; mas este processo é lento e doloroso; e a nova ordem social que eventualmente emerge pode ser muito inferior à antiga ordem que os radicais derrubaram um seu zelo pelo Paraíso Terrestre.

Os conservadores são defensores do costume, da convenção e da continuidade porque preferem o diabo conhecido ao diabo que não conhecem. Eles creem que ordem, justiça e liberdade são produtos artificiais de uma longa experiência social, o resultado de séculos de tentativas, reflexão e sacrifício. Por isto, o organismo social é uma espécie de corporação espiritual, comparável à Igreja; pode até ser chamado de comunidade de almas. A sociedade humana não é uma máquina, para ser tratada mecanicamente. A continuidade, a seiva vital de uma sociedade não pode ser interrompida. A necessidade de uma mudança prudente, recordada por Burke, está na mente de um conservador. Mas a mudança necessária, redarguem os conservadores, deve ser gradual e descriminativa, nunca se desvencilhando de uma só vez dos antigos cuidados.


3. Conservadores acreditam no que se poderia chamar de princípio do preestabelecimento

Os conservadores percebem que as pessoas atuais são "anões nos ombros de gigantes"[4], capazes de ver mais longe do que seus ancestrais apenas por causa da grande estatura dos que nos precederam no tempo. Por isto os conservadores com frequência enfatizam a importância do preestabelecimento – ou seja, as coisas estabelecidas por costume imemorial, de cujo contrário não há memória de homem que se recorde. Há direitos cuja principal ratificação é a própria antiguidade – inclusive, com freqüência, direitos de propriedade. Da mesma forma a nossa moral é, em grande parte, preestabelecida. Os conservadores argumentam que seja improvável que nós modernos façamos alguma grande descoberta em termos de moral, de política ou de bom gosto. É perigoso avaliar cada tema eventual tendo como base o julgamento pessoal e a racionalidade pessoal. O indivíduo é tolo, mas a espécie é sábia, declarou Burke. Na política nós agimos bem se observarmos o precedente, o preestabelecido e até o preconceito, porque a grande e misteriosa incorporação da raça humana adquiriu uma sabedoria prescritiva muito maior do que a mesquinha racionalidade privada de uma pessoa.


4. Conservadores são guiados pelo princípio da prudência

Burke concorda com Platão que entre os estadistas a prudência é a primeira das virtudes. Toda medida política deveria ser medida a partir das prováveis conseqüências de longo prazo, não apenas pela vantagem temporária e pela popularidade. Os progressistas e os radicais, dizem os conservadores, são imprudentes: porque eles se lançam aos seus objetivos sem dar muita importância ao risco de novos abusos, piores do que os males que esperam varrer. Com diz John Randolph Roanoke, a Providência se move devagar, mas o demônio está sempre com pressa. Sendo a sociedade humana complexa, os remédios não podem ser simples, se desejam ser eficazes. O conservador afirma que só agirá depois de uma reflexão adequada, tendo pesado as conseqüências. Reformas repentinas e incisivas são tão perigosas quanto as cirurgias repentinas e incisivas.


5. Conservadores prestam atenção ao princípio da variedade

Eles gostam do crescente emaranhado de instituições sociais e dos modos de vida tradicionais, e isto os diferencia da uniformidade estreita e do igualitarismo entorpecente dos sistemas radicais. Em qualquer civilização, para que seja preservada uma diversidade sadia, devem sobreviver ordens e classes, diferenças em condições matérias e várias formas de desigualdade. As únicas formas verdadeiras de igualdade são a igualdade do Juízo Final e a igualdade diante do tribunal de justiça; todas as outras tentativas de nivelamento irão conduzir, na melhor das hipóteses, à estagnação social. Uma sociedade precisa de liderança honesta e capaz; e se as diferenças naturais e institucionais forem abolidas, algum tirano ou algum bando de oligarcas desprezíveis irá rapidamente criar novas formas de desigualdade.


6. Conservadores são refreados pelo princípio da imperfectibilidade

A natureza humana sofre irremediavelmente de certas falhas graves, bem conhecidas pelos conservadores. Sendo o homem imperfeito, nenhuma ordem social perfeita poderá jamais ser criada. Por causa da inquietação humana, a humanidade tornar-se-ia rebelde sob qualquer dominação utópica e se desmantelaria, mais uma vez, em violento desencontro – ou então morreria de tédio. Buscar a utopia é terminar num desastre, dizem os conservadores: nós não somos capazes de coisas perfeitas. Tudo o que podemos esperar razoavelmente é uma sociedade que seja sofrivelmente ordenada, justa e livre, na qual alguns males, desajustes e desprazeres continuarão a se esconder. Dando a devida atenção à prudente reforma, podemos preservar e aperfeiçoar esta ordem sofrível. Mas se os baluartes tradicionais de instituição e moralidade de uma nação forem negligenciados, se dá largas ao impulso anárquico que está no ser humano: “afoga-se o ritual da inocência”[6]. Os ideólogos que prometem a perfeição do homem e da sociedade transformaram boa parte do século XX em um inferno terrestre.

[* Que não pode se aperfeiçoar, no sentido de chegar à perfeição]


7. Conservadores estão convencidos de que liberdade e propriedade estão intimamente ligadas

Separe a propriedade do domínio privado e Leviatã se tornará o mestre de tudo. Sobre o fundamento da propriedade privada, construíram-se grandes civilizações. Quanto mais se espalhar o domínio da propriedade privada, tanto mais a nação será estável e produtiva. Os conservadores defendem que o nivelamento econômico não é progresso econômico. Aquisição e gasto não são as finalidades principais da existência humana; mas deve-se desejar uma sólida base econômica para a pessoa, a família e o estado. Sir Henry Maine, em sua Village Communities, defende vigorosamente a causa da propriedade privada, como diferente da propriedade pública:

Ninguém pode ao mesmo tempo atacar a propriedade privada e dizer que aprecia a civilização. A história destas duas realidades não pode ser desintrincada.” 

Pois a instituição da propriedade privada tem sido um instrumento poderoso, ensinando a responsabilidade a homens e mulheres, dando motivos para a integridade, apoiando a cultura geral e elevando a humanidade acima do nível do mero trabalho pesado, proporcionando tempo livre para pensar e liberdade para agir. Ser capaz de guardar o fruto do próprio trabalho; ser capaz de ver o próprio trabalho transformado em algo de duradouro; ser capaz de deixar em herança a sua propriedade para sua posteridade; ser capaz de se erguer da condição natural da oprimente pobreza para a segurança de uma realização estável; ter algo que é realmente propriedade pessoal – estas são vantagens difíceis de refutar. O conservador reconhece que a posse de propriedade estabelece certos deveres do possuidor; ele reconhece com alegria estas obrigações morais e legais.


8. Os conservadores promovem comunidades voluntárias, assim como opõem-se ao coletivismo involuntário

Embora os americanos tenham se apegado vigorosamente aos direitos privados e de privacidade, também têm sido um povo conhecido por seu bem sucedido espírito comunitário. Na verdadeira comunidade, as decisões que afetam de forma mais direta as vidas dos cidadãos são tomadas no âmbito local e de forma voluntária. Algumas destas função são desempenhadas por organismos políticos locais, outras por associações privadas: enquanto permanecem no âmbito local e são caracterizadas pelo comum acordo das pessoas envolvidas, elas constituem comunidades saudáveis. Mas quando as funções, quer por deficiência, quer por usurpação, passam para uma autoridade central, a comunidade se encontra em sério perigo. Se existe algo de benéfico ou prudente em uma democracia moderna, isto se dá através da volição cooperativa. Se, então, em nome de uma democracia abstrata, as funções da comunidade são transferidas para uma coordenação política distante, o governo verdadeiro, através do consentimento dos governados, cede lugar para um processo de padronização hostil à liberdade e à dignidade humanas.

Uma nação não é mais forte do que as numerosas pequenas comunidades pelas quais é composta. Uma administração central, ou um grupo seleto de administradores e servidores públicos, por mais bem intencionado e bem treinado que seja, não pode produzir justiça, prosperidade e tranqüilidade para uma massa de homens e mulheres privada de suas responsabilidades de outrora. Esta experiência já foi feita; e foi desastrosa. É a realização de nossos deveres em comunidade que nos ensina a prudência, a eficiência e a caridade.


9. O conservador percebe a necessidade de uma prudente contenção do poder e das paixões humanas

Politicamente falando, poder é a capacidade de se fazer aquilo que se queira, a despeito da aspiração dos próprios companheiros. Um estado em que um indivíduo ou um pequeno grupo é capaz de dominar as aspirações de seus companheiros sem controles é um despotismo, quer seja monárquico, aristocrático ou democrático. Quando cada pessoa pretende ser um poder em si mesmo, então a sociedade se transforma numa anarquia. A anarquia nunca dura muito tempo, já que, sendo intolerável para todos e contrária ao fato irrefutável de que algumas pessoas são mais fortes e espertas do que seus próximos. À anarquia sucede a tirania ou a oligarquia, nas quais o poder é monopolizado por pouquíssimos

O conservado se esforça por limitar e balancear o poder político para que não surjam nem a anarquia, nem a tirania. No entanto, em todas as épocas, homens e mulheres foram tentados a derrubar os limites colocados sobre o poder, a favor de um capricho temporário. É uma característica do radical que ele pense o poder como uma força para o bem – desde que o poder caia em suas mãos. Em nome da liberdade, os revolucionários franceses e russos aboliram os limites tradicionais ao poder; mas o poder não pode ser abolido; e ele sempre acha um jeito de terminar nas mãos de alguém. O poder que os revolucionários pensavam ser opressor nas mãos do antigo regime, tornou-se muitas vezes mais tirânico nas mãos dos novos mestres do estado.

Sabendo que a natureza humana é uma mistura do bem e do mal, o conservador não coloca sua confiança na mera benevolência. Restrições constitucionais, freios e contrapesos políticos (checks and balances), correta coerção das leis, a rede tradicional e intricada de contenções sobre a vontade e o apetite – tudo isto o conservador aprova como instrumento de liberdade e de ordem. Um governo justo mantém uma tensão saudável entre as reivindicações da autoridade e as reivindicações da liberdade.


10. O pensador conservador compreende que a estabilidade e a mudança devem ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade robusta

O conservador não se opõe ao aprimoramento da sociedade, embora ele tenha suas dúvidas sobre a existência de qualquer força parecida com um místico Progresso, com P maiúsculo, em ação no mundo. Quando uma sociedade progride em alguns aspectos, geralmente ela está decaindo em outros. O conservador sabe que qualquer sociedade sadia é influenciada por duas forças, que Samuel Taylor Coleridge chamou de Conservação e Progressão (Permanence and Progression). A Conservação de uma sociedade é formada pelos interesses e convicções duradouros que nos dão estabilidade e continuidade; sem esta a Conservação as fontes do grande abismo se dissolvem, a sociedade resvala para a anarquia. A Progressão de uma sociedade é aquele espírito e conjunto de talentos que nos instiga a realizar uma prudente reforma e aperfeiçoamento; sem esta Progressão, um povo fica estagnado. Por isto o conservador inteligente se esforça por reconciliar as reivindicações da Conservação e as reivindicações da Progressão. Ele pensa que o progressista e o radical, cegos aos justos reclamos da Conservação, colocariam em perigo a herança que nos foi legada, num esforço de nos apressar na direção de um duvidoso Paraíso Terrestre. O conservador, em suma, é a favor de um razoável e moderado progresso; ele se opõe ao culto do Progresso, cujos devotos crêem que tudo o que é novo é necessariamente superior a tudo o que é velho.

O conservador raciocina que a mudança é essencial para um corpo social da mesma forma que o é para o corpo humano. Um corpo que deixou de se renovar, começou a morrer. Mas se este corpo deve ser vigoroso, a mudança deve acontecer de uma forma harmoniosa, adequando-se à forma e à natureza do corpo; do contrário a mudança produz um crescimento monstruoso, um câncer que devora o seu hospedeiro. O conservado cuida para que numa sociedade nada nunca seja completamente velho e que nada nunca seja completamente novo. Esta é a forma de conservar uma nação, da mesma forma que é o meio de conservar um organismo vivo. Quanta mudança seja necessária em uma sociedade, e que tipo de mudança, depende das circunstâncias de uma época e de uma nação.

† † †

Assim, este são os dez princípios que tiveram grande destaque durante os dois séculos do pensamento conservador moderno. Outros princípios de igual importância poderiam ter sido discutidos aqui: a compreensão conservadora de justiça, por exemplo, ou a visão conservadora de educação. Mas estes temas, com o tempo que passa, eu deverei deixar para a sua investigação pessoal.

Eric Voegelin costumava dizer que a grande linha de demarcação na política moderna não é a divisão entre progressistas de um lado e totalitários do outro. Não, de um lado da linha estão todos os homens e mulheres que imaginam que a ordem temporal é a única ordem e que as necessidades materiais são as únicas necessidades e que eles podem fazer o que quiserem do patrimônio da humanidade. No outro lado da linha estão todas as pessoas que reconhecem uma ordem moral duradoura no universo, uma natureza humana constante e deveres transcendentes para com a ordem espiritual e a ordem temporal.

_________
1. Considerada a obra seminal de Karl Marx, "Das Kapital" é, indubitavelmente, um dos livros mais influentes do século XX e figura, mais além, entre as obras que mais influenciaram o pensamento humano em toda a História. A partir da ideologia de Marx surgiram sistemas políticos e econômicos que (em diversos momentos) dominaram pelo menos a metade do globo terrestre e por quase um século mantiveram o mundo à beira da guerra. Ainda hoje, mais de um bilhão de cidadãos chineses, por exemplo, vivem sob um regime que proclama fidelidade à ideologia marxista.
2. 'Test act' – Lei inglesa de 1673 que exigia dos titulares de cargos civis e militares professarem a fé da Igreja Anglicana através de uma fórmula de juramento (N. do T.).
3. Declaração oficial da doutrina da Igreja Anglicana (N. do T.).
4. A frase 'Chaos and old Night' provém do poema épico de John Milton 'Paradise Lost' (Book I; line 544). Milton usa esta frase para se referir à 'matéria' a partir da qual Deus ordenou e criou o mundo (N. do T.).
5. A expressão "Anões nos ombros de gigantes" é uma citação de Bernardo de Chartres, referido por
João de Salisbury (John de Salisbury) no 'The Metalogicon' (III, 4).
6. William Buttler Yeats, The Second Coming (N. do T.)

____
• Com Igor Andrade – Frat. Laical São Próspero

____
Fonte:
The Russell Kirk Center for Cultural Renewal, disp. em:

http://www.kirkcenter.org/
Acesso 6/3/016
www.ofielcatolico.com.br
Subir