Sendo a vida espiritual uma muito especial sociedade com Jesus, e também uma tendência de todo o se do cristão para Jesus, ninguém deve ter receio de ser repelido por Ele, pois não há ninguém a quem Ele não receba. Portanto, quer o leitor seja um daqueles que buscaram sempre a Presença divina, desde a juventude, e queira viver melhor, ou seja um dos que reconhecem que a sua vida tem sido de mediocridade e tibieza, ou ainda um daqueles que mal se ergueram do atoleiro do pecado mortal, nada disso importa; estas orientações são também para eles e para eles estão abertas todas as possibilidades aqui tratadas.
Há outro ponto ainda a notar. Falamos da procura de Cristo, mas já dissemos que a vida cristã se inicia na união íntima com Cristo. Não haverá contradição aqui?
Talvez pareça que existe, pelas palavras, mas a realidade não é tão contraditória como parece. Vejamos: a Presença de Nosso Senhor fora de nós não interfere com a sua Presença dentro de nós. E a Presença de Nosso Senhor na nossa alma não interfere com o seu crescimento nela mesma, nem com a sua vinda até nós, para entrar em união mais íntima conosco. De fato, é-nos proibido recebê-lo na Santa Comunhão se Ele não estiver já nas nossas almas com a sua Graça. Além disso, estamos empregando palavras humanas para explicar coisas divinas, e as palavras humanas são inadequadas para tal. Por vezes, precisamos empregar figuras variadas de linguagem para dar indicação do que queremos significar.
Uma forma de encarar o problema é a adotada por Santa Teresa no seu livro "Castelo Interior", em que ela compara a alma a um castelo. Quando um homem está em pecado, está fora do castelo. Deus está muitas vezes na nossa alma, e nós estamos fora de nós: não O podemos encontrar em nós e temos de O procurar em outra parte. Acontece muitas vezes que não podemos entrar em nós próprios; fechamo-nos a nós mesmos e não podemos encontrar a chave.
É uma analogia profundíssima. Apesar da confusão aparente das palavras, porém, o católico comum é capaz de compreender plenamente estas ideias e sabe que correspondem à realidade. Sim, mesmo depois de ter encontrado Deus nas profundidades da sua alma, pode ainda rezar a Deus no Céu, sem qualquer sentido de inconsistência. Não devemos, portanto, supor que estamos a negar o que já afirmamos sobre a morada de Deus em nós ao falarmos agora da partida à procura de Deus, porque, quer consideremos Deus dentro de nós, quer O consideremos fora de nós, temos sempre de partir de nós próprios para O encontrarmos. E mesmo quando nos encontramos já unidos a Ele, veremos que essa união pode ser aumentada ou aperfeiçoada, compartilhando com Ele daqueles mesmos atos com os quais O procuramos.
O primeiro meio de procurar a Deus que vamos considerar é a oração. A oração, diz-se, é “uma elevação da alma para Deus”, e também se define como “uma conversação com Deus” ou uma “procura amorosa de Deus pela alma”. Em um sentido específico é também o “pedido das graças convenientes a Deus”.
Na prática, começamos a orar atraindo Deus ao nosso pensamento, ou, falando com mais propriedade, dirigindo o nosso pensamento a Deus. Ele está em toda a parte; pondo, portanto, de lado todos os outros pensamentos e considerando-nos na sua Presença, podemos sempre rezar. Torna-se, porém, necessário um esforço para nos libertarmos de todos os outros pensamentos, e precisamos formar ideia clara de Deus para dominá-los ou para ocupar a nossa imaginação. Neste sentido podemos citar a ligação que se verifica entre a oração e a leitura, porque a leitura desempenha um papel preponderante em formar uma ideia de Deus. "Como, pois, invocarão Aquele em quem não creram? e como crerão Naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não há quem pregue?" (Rm 10,14). Pois bem, os Apóstolos nos falaram dEle pela pregação, como o continuam fazendo ainda hoje os seus sucessores, e pelos seus escritos; indiretamente, também pelos escritos dos que se inspiraram neles e no Evangelho do mesmo Senhor, proclamando uma só Fé e um só Batismo (Ef 4,5). Assim é que por meio da leitura espiritual formamos ideia de Deus, como também pelo ouvir a pregação e os bons testemunhos.
Para alguns, basta-lhes a noção de Deus; outros contemplam a humanidade de Nosso Senhor em alguns dos seus Mistérios, outros ainda concentram a sua atenção no Tabernáculo ou no Crucifixo. A melhor regra, porém, nesta como em outras questões semelhantes sobre a ação, é cada um rezar pela forma que entender mais conveniente. Sim, é preciso que o católico dito "tradicionalista" tenha a coragem de aceitar que não há, nem nunca haverá, de fato, um conjunto de regras fixas para todos os momentos ou para toda e qualquer situação que vai surgindo na busca espiritual.
Como já foi dito, o que funciona para um não necessariamente funcionará para o outro. Há, por exemplo, católicos que se realizam rezando o santo Terço diariamente. Há outros tantos que simplesmente não conseguem fazê-lo, e se condenam e sofrem por isso, sentindo-se culpados, infiéis ou incapazes... Mas não deveriam! A verdade é que nenhum católico é obrigado a rezar o Terço diariamente. Por mais piedosa, santa e frutuosa que seja esta prática, aquele que encontra sérias dificuldades em cumpri-la (dificuldades que não conseguem vencer mesmo que muito persistam) acabará por arrefecer e talvez desanimar completamente na vida de oração, caindo mesmo – num desfecho radical –, em risco de perder a própria alma, se não compreender e aceitar que deve buscar outro meio (que lhe seja mais natural) de cultivar a oração e a Comunhão com Deus – e com os Santos, os santos Anjos e a santa Mãe da Igreja.
Há alguns princípios que nos podem guiar. A oração é, em certo aspecto, uma coisa muito simples e, num outro aspecto, muito complexa. Visa um fim múltiplo, e se tivermos em mente os seus diferentes objetivos, podemos concernir qual a melhor forma de rezar.
O principal fim da oração é cumprir o primeiro dever de todo o homem imposto pelo sagrado Mandamento: prestar a Deus o culto devido. Esse culto inclui a adoração, que é o reconhecimento do Domínio supremo de Deus sobre nós e nossa dependência absoluta dEle, inclui a ação de graças, porque devemos tudo à bondade de Deus, e compreende também o reconhecimento da nossa condição de pecadores com um arrependimento sincero pelas nossas faltas contra Deus e a resolução de as expiar. Todavia não há necessidade, é claro, de traduzir estes sentimentos em palavras todas as vezes que oramos, mas convém que todos os dias e por qualquer forma declaremos esses sentimentos.
Não há para isso melhor meio do que aquele que nos indicou Nosso Senhor: rezar o Pai Nosso. Devemos, portanto, tomar todos os dias uma atitude formal de oração, de preferência de joelhos, e prestar assim a devida homenagem, mesmo que seja muito breve, a Deus.
Há outro fim que devemos ter em vista na oração, que é obter certas graças que nos são necessárias.
A menor ação da nossa vida espiritual depende de Deus para ser iniciada e praticada; a própria conservação da nossa vida depende da divina Providência, e o êxito final dos nossos esforços exige a graça especial da perseverança final. Algumas destas graças são-nos concedidas por Deus, sem as pedirmos, porque Nosso Senhor Jesus Cristo é nosso infalível Mediador, e porque temos no Céu uma Mãe que se empenha em nos alcançar todo o bem. Muitas vezes, as principais graças são-nos concedidas sem que as peçamos, como é o caso do próprio dom da vida: quem de nós pediu para ser e nascer? Há, porém, outras graças bem necessárias que Ele não nos concederá se não as pedirmos. É certo que Ele conhece bem as nossas necessidades, mas não é para O informarmos que Ele deseja que peçamos, e sim para nos informarmos a nós próprios da necessidade que temos dEle, de modo que vejamos nEle a Fonte de todo o bem e para que, ensinando-nos a ter confiança nEle, não nos convençamos de que teremos tudo o que quisermos sem o pedirmos, o que poderia nos tornar arrogantes e soberbos, iludidos numa falsa sensação de absoluta autossuficiência e independência. Esta é uma das razões por que devemos dedicar todos os dias um período de tempo certo à oração. Ambas estas necessidades se podem satisfazer escolhendo a forma de oração que mais apelo exerça em nós, fazendo uso dela diariamente. Mais importante do que a duração, a beleza ou a forma é a persistência e a fidelidade.
O Pai-Nosso, como é óbvio, por ser a oração magna ensinada diretamente por nosso Senhor e Salvador, deve ser constante em nossas orações, e, como não podemos desprezar o auxílio precioso e incomparável de Nossa Senhora, a Ave-Maria também deve ter sempre o seu lugar em nossas invocações. Se quisermos fazer uso de um bom livro de orações, devemos empregar os meios que melhor nos pareçam para o fim que temos em vista. Importa que a lista de orações não seja demasiado longa. Vale mais rezar um Pai-Nosso com sinceridade do que desfiar as contas do Rosário inteiro sem pensar em Deus.
Por que – ao contrário do que afirmam certos diretores espirituais –, dizemos que as orações que decidirmos rezar todos os dias não devem ser muito longas? Para que se não se convertam numa tarefa pesada. De outra forma, é muito provável que acabemos por as recitar mal e que, mais cedo ou mais tarde, acabemos por não dizer nenhuma. Devemos reconhecer que somos humanos e falhos, e também é preciso saber diferenciar a condição dos religiosos e a dos leigos. Os primeiros têm suas rotinas bem definidas e próprias, conforme a regra de sua ordem ou congregação religiosa. Os segundos vivem uma situação completamente diferente. Também é diferente a situação de uma pessoa jovem, a de um adulto maduro e a de um idoso. Estes últimos, por exemplo, em geral têm mais tempo livre, mais paciência e mais conhecimento de si mesmos. Muitos leigos jovens que se dispõem e tentam se obrigar a rezar por longas horas por dia acabam desanimando e abandonando a vida espiritual, sentindo-se frustrados consigo mesmos e, muitas vezes, consciente ou inconscientemente frustrados com Deus. que esperavam que iria lhes dar toda a força para cumprir um itinerário que não é o ideal para eles.
A oração é coisa tão essencial à nossa vida espiritual que a não devemos associar à ideia de um incômodo. Além disso, não é por muito falarmos que somos ouvidos, mas, isto sim, se forem boas as disposições do nosso coração. Mas não iria, por acaso, esta recomendação contra a admoestação do santo Apóstolo, que diz: "Orem continuamente"? A esse respeito, muitos grandes santos já chegaram à conclusão de que a mais perfeita solução é fazer de toda a vida uma grande e contínua oração. O que trabalha, trabalhe rezando, e não necessariamente uma oração vocal (o que seria inviável) ou recitando fórmulas em sua mente. A grande oração é praticar a fé todos os momentos e oferecer cada minuto de nossos dias a Deus por meio dos nossos atos, pensamentos e escolhas. Quando deixamos de fazer algum mal, perdoamos, assumimos uma postura humilde ou aconselhamos bem um colega de trabalho ou estudo, por exemplo, isto é uma oração que elevamos a Deus e certamente o agrada mais do que muitos sacrifícios, jejuns e penitências (conf. Jr 7,22; Os 6,6; Mt 9,13).
A única condição que Nosso Senhor impôs para cumprir as promessas que fez a respeito da oração foi que devíamos rezar em Seu Nome. Por palavras, devemos orar em sociedade com Ele e para benefício do Seu Corpo Místico. Unidos a Ele, temos à nossa disposição os seus Merecimentos infinitos, para apresentar diante de Deus; unidos a Ele, podemos dizer a Deus: "Este é o vosso Filho bem amado, no qual pusestes as vossas complacências: ouvi-O".
As disposições para a oração são as disposições para uma sã sociedade com Cristo: fé, esperança, caridade, humildade e submissão à Vontade de Deus. É certo que mesmo o pecador pode e deve rezar: mesmo esse deve orar também por intermédio de Jesus Cristo, confiando nos seus Merecimentos infinitos, para que a sua oração seja ouvida diante do Trono de Deus, mas, se não tem essas disposições de fato, deve tê-las pelo menos em desejo.
** Ler a segunda e conclusiva parte
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Fonte:
BOYLAN, Eugene. This Tremendous Lover, Cork City: The Mercier Press, 1955, capítulo VIII.
www.ofielcatolico.com.br
Excelente artigo! Parabéns!
ResponderExcluirGostei do post. Gostaria que o amigo fizesse alguns post sobre o livro de Santa Tereza. O Castelo Interior
ResponderExcluirExcelente texto! Já tem disponível a segunda parte? não consegui encontrar...
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