PARA CONCLUIR COM chave de ouro nossa singela trilogia sobre o culto de adoração, exclusivo a Deus, e a veneração da Virgem e dos santos, nada melhor que a soberba análise de Dom Estevão Bettencourt para a revista "Pergunte e Responderemos" (grande inspiração de nossa 'O Fiel Católico'), n. 348/1991. Segue.
Detalhe da pintura que representa 'todos os santos', por Fra Angelico (1395-1455) |
O culto dos Santos, ponto nevrálgico no diálogo entre católicos e protestantes, é justificado pela Tradição cristã mais antiga, apoiada aliás em fundamentos bíblicos pré-cristãos (cf. 2Mc 15,14). O Concílio de Trento o reafirmou, procurando, porém, coibir abusos e mal-entendidos instaurados na piedade católica. O Concílio do Vaticano II reiterou a doutrina da Igreja, pondo em relevo os aspectos cristocêntrico e teocêntrico dessa prática de piedade.
Com efeito, a solidariedade (e os laços de fraternidade) existente entre os membros do povo de Deus não é extinta pela passagem da vida terrestre para a celeste; ao contrário, o amor fraterno que anima os justos nesta vida é liberto de escórias do pecado na outra vida; torna-se, pois, mais ardoroso e genuíno. Deus, que nos fez membros da mesma Comunhão, proporciona aos Santos no Céu o conhecimento das nossas necessidades para que eles possam interceder por nós, como intercederiam na Terra. Essa intercessão quer-nos levar mais a fundo dentro do plano de Deus; é encaminhada para a glória de Deus e o louvor do Redentor; os Santos são totalmente relativos a Cristo; são obras-primas de Cristo, que nos levam, por suas preces e seus exemplos, a reconhecer melhor a grandeza da nossa Redenção.
Vê-se, pois, quanto é entranhada na Teologia católica a devoção aos Santos. Não é obrigatória, mas facultativa; como quer que seja, decorre de lúcida compreensão do plano salvífico de Deus, principalmente no que diz respeito à Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe dos homens (cf. Jo 1925-27).
1. A história da questão
O culto de veneração (não de adoração) dos Santos foi até o século XVI prática tranquila e óbvia entre os cristãos. As raízes desta praxe estão já nas páginas do Antigo Testamento. Com efeito, até o século II a.C. os judeus professavam a existência do cheol ou o entorpecimento da consciência dos defuntos, relegados promiscuamente para um lugar subterrâneo; aí estariam incapazes de receber qualquer sanção. No século II, dissipou-se tal noção; aflorou no povo de Israel a consciência de que os irmãos que deixam esta vida mantêm lúcido um núcleo de sua personalidade e vivem como membros da Aliança de Deus com o seu povo; consequentemente, são solidários com os fiéis peregrinos na Terra e intercedem por eles.
É o caso, por exemplo, de Jeremias Profeta, que, falecido no século VI a.C, aparece a Judas Macabeu no século II a.C., juntamente com o Sumo Sacerdote Onias (também falecido), como "o amigo de seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo, pela cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus" (2Mc 15,14).
No Novo Testamento, esta consciência se fortalece: na epístola aos Hebreus o autor recorda os justos do Antigo Testamento, heróis da fé, e insinua a sua solidariedade com os irmãos ainda vivos na Terra. Com efeito, afirma: "Todos eles, embora pela fé tenham recebido um bom testemunho, apesar disso não obtiveram a realização da promessa. Pois Deus previa para nós algo de melhor, a fim de que sem nós não chegassem à plena realização" (Hb 11,39s).
Logo a seguir, o autor imagina esses justos colocados num estádio como que a torcer pelos irmãos ainda existentes neste mundo; constituem uma densa nuvem de torcedores interessados no bom êxito do certame que nos toca: "Portanto também nós, com tal nuvem de testemunhas ao nosso redor, rejeitando todo fardo e o pecado que nos envolve, corramos com perseverança para o certame que nos é proposto" (Hb 12,1).
Diz a propósito a Bíblia de Jerusalém, em nota de rodapé a 2Mc 15,14: "Esse papel conferido a Jeremias e a Onias é a primeira atestação da crença numa oração dos justos falecidos em favor dos vivos". Corremos, pois, acompanhados por testemunhas que nos querem ver vitoriosos como eles foram.
Consciente disto, já nos seus primeiros tempos a Igreja começou a prestar veneração particular àqueles defuntos que por sua vida e morte haviam confessado Jesus Cristo. Como relatam as fontes históricas, na segunda metade do século II, firmou-se o costume de haver uma Celebração Eucarística sobre o túmulo dos mártires no dia do aniversário da sua morte (considerado como o dia do seu natalício). Após o período de perseguições, que se encerra em 313 com a Paz de Constantino, os cristãos construíram capelas e igrejas sobre os mesmos túmulos dos seus mártires.
A veneração dos mártires, após a era do martírio sistemático, estendeu-se aos monges (que procuravam viver o espírito do martírio em absoluta renúncia no deserto); em seguida, foi devotada também aos Bispos e sacerdotes e demais fiéis do povo de Deus. Os Bispos eram os juízes da devoção espontânea dos cristãos, de modo que lhes competia aprovar ou não tal ou tal manifestação de piedade. Os Santos eram proclamados pela piedade dos fiéis e os Bispos consentiam ou não consentiam em tais gestos.
Nos séculos Vlll/IX foi debatida a questão das imagens (iconoclasmo). (Curiosamente,) o objeto da controvérsia eram principalmente as imagens de Jesus Cristo; só acidentalmente foram abordadas as imagens dos Santos e, consequentemente, o próprio culto dos Santos. O Concílio Ecumênico de Niceia II (787) declarou lícito o uso das imagens sagradas: a estas se presta um culto relativo à pessoa ou às pessoas representada(s) pelas imagens (e por estas a Deus, nunca à imagem em si). Tal culto em relação aos Santos é de veneração (dulia) e não de adoração (latreia), que compete a Deus só.
Um passo adiante no aprofundamento da temática foi dado pelo Papa João XV: no ano 993 ele procedeu à primeira canonização formal. Isto quer dizer que doravante não valeria mais a aclamação de um Santo por parte do povo de Deus, aprovada pelo Bispo local. O Papa atribuía a si a função de canonizar os Santos[1] — o que se faria após meticuloso processo ou exame dos respectivos indícios de santidade — a fim de se evitarem equívocos por parte do entusiasmo das massas de fiéis. O primeiro Santo assim canonizado foi Santo Ulrico, Bispo de Augsburgo (Baviera), falecido em 973. Nessa ocasião (em 993), João XV endereçou a encíclica Cum Conventus Esset aos Bispos da Alemanha e da Gália, em que realça dois importantes princípios da veneração dos Santos:
“Honramos os servos para que a honra recaia sobre o Senhor, que disse: 'Quem vos acolhe, a Mim acolhe' (Mt 10,40). Além do quê, nós, que não podemos confiar em nossas próprias virtudes, sejamos sempre ajudados pelas preces e os méritos dos Santos.”
(Denzinger-Schònmetzer, Enquiríd n° 756 [342])
(Pode surpreender alguns, muito habituados a uma leitura altamente tendenciosa da História, mas é fato que) em plena Idade Média, o Concílio do Latrão IV (1215) promulgou uma advertência sobre abusos ocorrentes no culto das relíquias(!):
“O fato de que alguns expõem relíquias dos Santos para vendê-las e as apresentam ao público desordenadamente, tem acarretado danos para a religião cristã. A fim de que isto não mais aconteça, estabelecemos pelo presente decreto que doravante as relíquias antigas não sejam expostas fora do respectivo cofre nem sejam apresentadas para venda. As que forem recém-descobertas, ninguém ouse venerá-las publicamente sem que tenham sido previamente reconhecidas pelo Pontífice Romano. De resto, os prelados não permitam que os fiéis desejosos de venerar relíquias nas igrejas desses prelados sejam iludidos por falsas imagens ou documentos, como em vários lugares, por motivo de lucro, tem acontecido habitualmente,”
(Denzinger-Schònmetzer, Enquirídio n°818 [440])
Vê-se que havia abusos decorrentes da fragilidade humana. Abusos, porém, que não deviam implicar a supressão do uso justificado por motivos teológicos, como adiante se verá. O culto dos Santos e das relíquias era algo de tão radicado na piedade católica que o Papa Martinho V, no questionário apresentado aos seguidores de Wiclef e Huss (contestatários reformistas dos séculos XIV e XV), incluiu a seguinte pergunta: "Crê e afirma que é lícito aos fiéis venerar as relíquias e as imagens dos Santos?" (Bula Inter Cunetas, de 22/02/1418, questão 29; D.-S., Enquirídio no 1269 [679]). De acordo com o princípio tradicional Lex Orandi Lex Credendi (a lei da oração é a lei da fé, a oração é expressão e escola de fé autêntica), o culto dos Santos praticado na Liturgia da Igreja não era apenas uma questão de disciplina ou uma prática venerável; era, sim, algo que se prendia ao patrimônio da fé católica. Negar o culto de veneração aos Santos seria ferir, ao menos indiretamente, uma verdade de fé católica. Eis por que o Papa mandava perguntar aos contestatários se aceitavam a veneração dos Santos.
Os abusos já condenados pela autoridade da Igreja no século XIII foram-se avolumando nos séculos subsequentes. O fim da Idade Média foi de piedade férvida ou mesmo exuberante, mas pouco ilustrada pela doutrina da fé, de modo que os fiéis manifestavam seus sentimentos religiosos de maneiras evidentemente aberrantes. Isto provocou a réplica de Lutero e Calvino no século XVI.
Os dois reformadores aceitavam a veneração dos Santos (aliás, quem não venera um herói ou uma heroína?), mas contestavam a sua função de intercessores; esta parecia-lhes derrogar à exclusividade da ação salvífica de Jesus Cristo; em particular, Lutero argumentava que também o justo permanece pecador (um pecador revestido do manto dos méritos de Cristo, mas pecador debaixo de uma capa de justiça); por conseguinte dizia Lutero, os justos não podem ser instrumentos de salvação.
A estas asserções, o Concílio de Trento respondeu tanto na Profissão de Fé Tridentina (13/11/1564, DS 1867 [998]) como no "Decreto sobre a Invocação, a Veneração e as Relíquias dos Santos e as Imagens Sagradas" (3/12/1563). Este último afirma seis pontos:
1) Os Santos, que reinam com Cristo, oram pelos homens;
2) Invocá-los e implorar a sua intercessão é coisa boa e útil;
3) No entanto, Cristo (permanece) sendo o único Redentor;
4) Os benefícios em resposta à oração vêm de Deus através de seu Filho (a Deo per Filium) [o Concílio ainda exortou os Bispos a que instruíssem os fiéis conforme a Tradição da Igreja e impedissem os abusos existentes];
5) A veneração das relíquias se justifica pelo fato de que os corpos dos Santos eram templos do Espírito Santo e serão ressuscitados para a vida eterna;
6) Às imagens dos Santos prestem-se honra e veneração, tendo-se em vista aquele ou aqueles que tais imagens representam. A veneração das imagens estimula o agradecimento a Deus e a imitação dos heróis da fé (ver DS, Enquirídio no 1821-1825 [984-988]).
Como se vê, o Concílio de Trento reiterou a doutrina tradicional da Igreja, ao mesmo tempo que repeliu quaisquer abusos, para os quais chamou a atenção dos Bispos e mestres da fé, encarregados de velar pela pureza da doutrina e da piedade cristãs. Note-se, porém, que os padres conciliares quiseram salvaguardar a liberdade dos fiéis frente ao culto dos Santos; este é tido como bom e útil (bonum et utile), não, porém, obrigatório. A Igreja como tal cultua os Santos em seu calendário litúrgico, mas deixa ao critério de cada fiel definir os termos de sua devoção pessoal.
Até o Concílio do Vaticano II (1962-65) nada de novo se disse em caráter oficial sobre o assunto. Este último Concílio retomou a temática e deu-lhe uma formulação bem mais precisa e correspondente às objeções protestantes; enfatizou especialmente o caráter cristocêntrico e teocêntrico do culto dos Santos. Cristo e Deus Pai é que, em última análise, são cultuados quando se cultuam os Santos.
Assim, por exemplo, reza a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia:
“Nos natalícios dos Santos a Igreja apregoa o Mistério de Páscoa vivido pelos Santos que com Cristo sofreram e foram glorificados, e propõe o seu exemplo aos fiéis, para que atraia, por Cristo, todos ao Pai e por seus méritos obtenham os benefícios de Deus.”
(N. 104)
Tal texto demonstra o caráter fortemente teocêntrico e cristocêntrico ao culto dos Santos. Ele nos induz a reconhecer o Mistério da Páscoa ou da Vitória de Cristo sobre o pecado e a morte. O exemplo dos Santos deve levar os fiéis ao Pai mediante Jesus Cristo. O mesmo é dito pouco adiante: "As festas dos Santos proclamam as maravilhas de Cristo realizadas em seus servos e mostram aos fiéis os exemplos oportunos a ser imitados" (n. 111).
A Constituição Lumen Gentium insiste sobre o enfoque cristocêntrico, quando afirma:
“Assim como a comunhão cristã entre os cristãos na Terra mais nos aproxima de Cristo, assim o consórcio com os Santos nos une também a Cristo, do qual como de sua Fonte e Cabeça promana toda a graça e a vida do próprio Povo de Deus. Convém, portanto, sumamente que amemos esses amigos e co-herdeiros de Jesus Cristo, além disso irmãos e exímios benfeitores nossos; rendamos as devidas graças a Deus por meio deles, os invoquemos com súplicas e recorramos às suas orações, à sua intercessão e ao seu auxílio para impetrarmos de Deus as graças necessárias por meio de Seu Filho Jesus Cristo, único Redentor e Salvador nosso. Pois todo genuíno testemunho de amor manifestado por nós aos habitantes do Céu, por sua própria natureza tende para Cristo e termina em Cristo, que é a coroa de todos os Santos e, por Ele, em Deus, que é admirável nos seus Santos e neles é engrandecido.”
(N. 50)
Assim o Concílio do Vaticano II esclareceu a veneração aos Santos como algo de logicamente inserido no patrimônio da genuína fé e algo de salutar, tendente a nos fazer mais e mais admirar a obra de salvação de Deus, que toma novas e novas facetas em cada Santo. Estes nos levam a Deus; são totalmente relativos a Deus, como bem dizia S. Agostinho:
“Ipse enim sine illis Deus est; illi sine ilio quid sunt? – Deus é Deus sem eles (os santos), mas eles, que são sem Deus?”
(Sermão 128, 3 de Santo Agostinho)
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Fontes e bibliografia na conclusão
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