2. Razões teológicas
Eis como teologicamente se fundamenta a intercessão dos Santos por nós em atendimento às preces que lhes dirigimos:
A salvação cristã é comunitária, e não individualista, como atestam as Escrituras do Novo Testamento, as quais propõem a imagem do Corpo de Cristo, no qual cada membro tem uma função e desempenha papel indispensável (cf. 1Cor 12,12-17). É por isto também que os cristãos pedem a ajuda de seus irmãos na Terra; solicitam especialmente orações para que possam chegar ao seu Objetivo supremo, a exemplo do que os Apóstolos faziam e mandavam fazer (cf. Tg 5,16; 2Cor 1,3.7.9; Fl 1,9; Cl 4,3). Há, pois, comunhão e solidariedade entre os cristãos, assim expressa pelo Apóstolo: "Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram. Tende a mesma estima uns pelos outros" (Rm 12,15s).
Ora, Deus, que é o Autor dessa comunhão solidária, não permite que ela se extinga com a morte; na verdade, a chamada "morte" não é extinção da vida, mas transição de uma modalidade de vida para outra (no caso, superior). Ao contrário, a morte liberta o cristão dos entraves do pecado e da sedução das paixões, permitindo que o seu amor a Deus e aos irmãos se torne mais puro. Disto se segue que a comunicação de amor fraterno entre vivos e defuntos não somente seja possível, mas venha a ser mesmo uma consequência do aperfeiçoamento do amor dos que passaram para o além. O Senhor Deus se encarrega de os tornar cientes das necessidades dos seus irmãos na Terra, já que sem essa intervenção de Deus não haveria intercâmbio entre cristãos peregrinos e cristãos consumados. Por conseguinte, a oração dos Santos pelos viandantes deste mundo é o desdobramento do seu amor a Deus e ao próximo, que caracterizou a sua vida na Terra e agora é pleno ou livre de obstáculos. Os justos falecidos querem ajudar-nos a atingir o termo de nossa vocação, que é "participar da sorte dos Santos na luz" (Cl 1,12). O amor e a bondade dos Santos, isto é, aquilo que constitui a santidade, permanecem para sempre.
Foi esta argumentação que moveu os mestres da Tradição cristã a professar a intercessão dos Santos pelos irmãos na Terra. Eis aqui três testemunhos:
Orígenes de Alexandria (+250), no seu Tratado sobre a Oração, recolhe as passagens bíblicas que falam da intercessão dos Santos e dos Profetas, e propõe a seguinte reflexão: as virtudes cultivadas nesta vida são definitivamente aperfeiçoadas no além. Ora, a mais valiosa de todas é a caridade; esta, portanto, na outra vida é ainda mais ardente do que na vida presente. Por conseguinte, os Santos falecidos exercem seu amor para com os irmãos na Terra mediante a intercessão dirigida a Deus em favor das necessidades desses peregrinos.
Sto. Tomás de Aquino (+1274) professa semelhante doutrina. Pergunta, na Suma Teológica (ll/ll 83, 11), se os Santos na Pátria celeste rezam por nós. E responde afirmativamente; sim, a oração pelos outros decorre do amor ao próximo. Ora, quanto mais perfeitos no amor forem os Santos na outra vida, tanto mais hão de rezar pelos peregrinos na Terra, a fim de os ajudar a chegar à vida eterna[2].
Até mesmo o pensador protestante Gottfried W. Leibniz (+1716) declara não entender por que não se deve recorrer aos Santos na oração. Mais: chama a atenção para a estrutura cristocêntrica e teocêntrica dos nossos pedidos aos Santos, que, conforme Leibniz, obedecem ao seguinte modelo: "Considera, ó Deus, as tribulações que eles (os Santos) suportaram por tua Graça em prol do teu Nome; ouve as suas orações, às quais o teu Filho unigênito conferiu força e valor"[3].
O motivo pelo qual os bem-aventurados respondem às nossas preces, é o seu amor muito vivo:
“Os bem-aventurados olham agora para as nossas vicissitudes muito mais do que durante esta vida terrena e vêem tudo de mais perto. (...) O seu amor e a sua vontade de ajudar são muito mais ardentes e as suas orações muito mais eficazes do que durante a vida terrena. É certo que Deus escuta também as orações dos vivos e que nós esperamos proficuamente que as nossas orações se unam às dos irmãos. Não vejo, por isto, razão pela qual devamos duvidar da idéia de invocar um bem-aventurado ou um anjo santo e de implorara sua intercessão e a sua ajuda.”
(obra citada, p. 190)
Merece especial atenção o fato de que a oração aos Santos e a intercessão dos Santos não derrogam à unicidade do Salvador e Mediador Jesus Cristo. Ao contrário, esse intercâmbio entre vivos e mortos decorre da obra redentora de Cristo e dá glória ao Salvador; é expressão da excelência dessa salvação. Mais ainda: os Santos são relativos a Jesus Cristo; tudo devem a Este e em tudo encaminham os seus irmãos para Jesus, como notava o Concílio do Vaticano II citado à primeira parte deste estudo.
Os Santos não são doadores nem fontes de graças; são como advogados, que intercedem por eficácia da mediação salvífica de Jesus Cristo.
1. À luz destas verdades, compreende-se também a legitimidade do culto das relíquias. Estas são fragmentos dos ossos dos Santos ou objetos que serviram ao seu uso. Ora, todas as culturas praticaram o respeito e a veneração tanto dos despojos mortais como dos pertences de seus heróis. Que se pode objetar a uma viúva que tenha diante dos olhos a fotografia do marido e conserve carinhosamente os objetos usados por ele? Como seria violento e antinatural impedir tal viúva a veneração das relíquias do marido, é também violento, para um cristão, impedir-lhe que guarde a estima aos sinais materiais que lembram os heróis da fé.
É certo outrossim que a profissão de que os homens ressuscitarão no fim dos tempos incutiu grande apreço aos despojos mortais dos Santos, elevados à dignidade de templos do Espírito Santo durante a vida presente (cf. 1Cor 6,15-20). Verdade é que Deus não recolherá as cinzas esparsas do cadáver para provocar a ressurreição, mas a matéria primeira (no sentido aristotélico-tomista) unida à alma do indivíduo assumirá as feições do respectivo corpo, tornando-se a carne gloriosa correspondente a tal alma.
Os abusos registrados no decorrer da História quanto ao culto dos Santos não são razão suficiente para se condenar a devoção aos mesmos e às suas relíquias.
2. É claro, porém, que a veneração dos Santos em suas diversas modalidades fica sendo algo de facultativo para cada fiel católico. Contudo seria (no mínimo) muito estranho que um católico não tivesse devoção alguma a Maria Santíssima, a mais bendita dentre todas as mulheres (cf. Lc 1,42), como lhe chamou o mensageiro de Deus, e a Mãe da Vida, a nova Eva. A devoção a Maria decorre da própria vocação do cristão a ser "um outro Jesus" (cf. Rm 8,29). Com efeito; quanto mais alguém é um "outro Jesus", tanto mais também é devoto filho de Maria, pois Jesus foi todo Filho do Pai (como Deus) e todo filho de Maria (como homem). Assim a devoção a Maria resulta logicamente do Cristocentrismo da piedade cristã.
3. Ainda uma observação: há Santos tidos como protetores em especiais situações de necessidade: assim Santa Edwiges seria a intercessora dos endividados; Santa Rita de Cássia a dos fiéis envolvidos em problemas insolúveis; Santo Antônio de Pádua o tutor dos namorados e noivos, etc. Essa relação entre o Santo e determinada carência dos irmãos peregrinos deve ter fundamento na vida do respectivo Santo; é de crer que este tenha obtido grandes graças de Deus, outrora, em ocasiões semelhantes às que os seus devotos vivem no presente. Tal relacionamento é aceitável, mas não deve degenerar em superstição.
4. Verifica-se assim a legitimidade e até mesmo a conveniência do culto dos Santos. Quem compreendeu bem o que é o Cristianismo não o pode imaginar sem essa comunhão viva entre os membros do Corpo de Cristo, quer estejam ainda peregrinando na Terra, quer já se achem na glória do Céu. Somente os abusos e as caricaturas puderam desfigurar essa tão bela realidade, levando muitos a negá-la; negam-na, simplesmente, porque estão equivocados a seu respeito.
5. A imagem do Santo deve pairar nitidamente ante os olhos do cristão, pois o Santo é o reflexo mais límpido de Deus e é o ser humano realizado por excelência. O bom médico, o bom músico, o bom cientista podem ser homens maus, mas o Santo será sempre um ser humano bom; será um homem ou mulher tão perfeito(a) quanto possível dentro das limitações humanas. Há, pois, necessidade enorme de Santos em nosso mundo; são o tesouro e a riqueza da Igreja (a concretização dos méritos de Cristo, fonte de toda santidade) e o autêntico patrimônio da humanidade. Por isto o mundo não pode deixar de clamar: "Senhor, dá-nos Santos!".
A propósito, muito se recomenda o livro de Wolfgang Beinert, "O Culto aos Santos" (Paulinas, São Paulo 1990).
Apêndice: Um testemunho eloquente
Para ilustrar as verdades da fé, são muito significativos os exemplos dos próprios Santos e justos que as viveram e vivem concretamente. Daí a conveniência de se citar aqui o testemunho de fim de vida do Pe. Júlio Fragata S.J., que faleceu em Portugal aos 27/12/1985.
Nascido em 1920, o Pe. Fragata S.J. foi professor universitário em Braga e no Porto e Superior Provincial da Província Portuguesa da Companhia de Jesus. Era homem de grande erudição associada à modéstia e discrição. Revelou a riqueza de sua vida espiritual no fim da sua existência terrestre, como se poderá depreender dos trechos e notícias que se seguem:
1. Às vésperas de ser operado de um câncer no estômago, registrava em seu ''Diário Espiritual":
“Tenho sentido certa alegria em deixar este mundo –, como, quando e onde o Senhor quiser –, entregando-lhe totalmente todo o meu fim de carreira aqui. Mas hoje, na Eucaristia, senti que, assim como Jesus, deixando este mundo, começou a fazer ainda maior bem n'ele, também só desejo deixar este mundo para que, do outro mundo, tenha ocasião de fazer ainda maior bem. Só 'passando a fazer bem' se dá real glória a Deus; e creio que o Senhor disporá que termine a minha vida neste mundo quando estiver em circunstâncias de fazer, do outro mundo, maior bem neste mundo. Quero pedir a Nossa Senhora que me ampare nesta vida, para que nela seja de tal modo purificado que, ao sair deste mundo, possa logo começar a fazer maior bem aqui. Senti rápida mas elevada consideração neste pensamento.”
(Braga, 30/05/85)
2. Frequentemente sublinhava que o sofrimento era uma riqueza que não se podia desperdiçar, que a sua partida para Deus ia ser benéfica, uma graça para ele e para os irmãos. Assim, afirmava no seu Depoimento, transbordante de esperança e otimismo cristãos:
“Na expectativa de tudo o que me pode acontecer, desejo evitar esbanjar aquilo que mais se esbanja neste mundo, que é o sofrimento. Porque o sofrimento sem amor é um esbanjamento. No Calvário, três estão crucificados: o mau ladrão, que não aceita o sofrimento, apesar de padecer; o bom ladrão, que o aceita e por isso ouve de Jesus as consoladoras palavras: 'Hoje estarás comigo no Paraíso'. Mas há também o sofrimento de Cristo, onde culmina o amor numa eficácia de Redenção. Pedir-Te-ei demasiado, Senhor, se o sofrimento que me espera for mais que mera aceitação, tornando-se entrega voluntária como a Tua, em holocausto pela salvação do mundo? Tu conheces a minha fragilidade e como preciso do Teu perdão; penetras também a minha ânsia de ser contigo 'cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo'. Aceita, Pai, a minha entrega e dá-me a força do Teu Espírito para que habite em mim a fortaleza de Cristo.”
(25/09/85)
3. Atesta o Pe. Manuel Morujão, Superior da Comunidade Jesuíta na Faculdade de Filosofia de Braga, de que o Pe. Júlio Fragata era membro: “Das ideias que mais frequentemente lhe ouvi repetir nos seus últimos meses era o sublinhar insistente que a sua partida para a Casa do Pai ia ser um bem para nós, que por nós iria interceder junto de Deus, que de lá nos poderia ser mais útil e fazer maior bem. Poucos meses antes da sua partida, conversávamos à mesa sobre qual seria a nossa ocupação na eternidade. De súbito nos interrompeu, com voz de quem conhece a Verdade por dentro: 'No Céu, ama-se! O descanso eterno é sumamente ativo em amor, em Deus-Amor!'”.
Demos a palavra ao Pe. Fragata através desta página do seu 'Diário Espiritual':
“Tenho recebido tantas visitas, telefonemas, cartas, mostras de dedidação e carinho por parte de médicos, pessoas que me tratam, que não sei como demonstrar o meu reconhecimento...
Bem sei que tudo é graça tua e que Tu és Aquele que compensa todo o bem que se faz. Julgo que me prometeste compensar todas as atenções para comigo nesta doença, dum modo muito singularmente especial, como se elas fossem dirigidas diretamente a ti. Obrigado! Mas também sei que, assim como neste mundo toda a dedicação deve ser reconhecida por aquele que a recebe, no outro mundo Tu me darás possibilidades misteriosas, mas eficazes e reais, de poder mostrar este reconhecimento. Julgo que isto é uma consequência necessária da nossa unidade em ti, em comunhão de Santos.
Momentos depois tive a convicção de que o Senhor me atendia este desejo e que faria com que, do Céu, fizesse muito bem em união com Cristo. Também senti que Ele estará comigo até a morte dando-me grande fortaleza.
Acredito, Senhor, nas surpresas do Teu Amor, mesmo quando estas são dolorosas. Entrego-me à Tua vontade, que quero fazer minha'.”[4]
(05/10/1985)
O padre Fragata partiu para chegar mais até nós. Separou-se de nós para se tornar mais próximo nosso. Perdeu a vida para a ganhar mais em plenitude... Mais perto de Deus, mais perto de nós. Partiu com um propósito: fazer maior bem. Quem está em Deus, não pode[4] deixar de cumprir!
Eis um dos mais belos comentários de quanto foi dito sobre a comunhão e a intercessão dos Santos. O Pe. Júlio Fragata S.J. teve consciência destas realidades transcendentais e quis vivê-las plenamente; elas o ajudaram a considerar a "morte" com um olhar diferente, profundamente cristão; ele sabia que não se tornaria estranho a seus irmãos peregrinos na Terra, mas exerceria viva solidariedade com eles!
[1] Canonizar é inserir no cânon ou catálogo dos Santos.
[2] Leibnizens System der Theologie. Nach dem Manuskripte von Hannover ins Deutsche übersetzt von R. Räss und Dr. Weis. Mogúncia, 3a edição 1825, p. 158.
[3] 'Cum oratio pro aliis facta ex caritate proveniat. . . quanto sancti qui sunt in patria sunt perfections caritatis, tanto magis orant pro viatoribus, qui orationibus adiuvari possunt'.
[4] Passagens extraídas de 'COMMUNIO', edição portuguesa, janeiro/fevereiro 1986, pp. 87-89.
____
Fonte:
BETTENCOURT, Estevão, Revita PR, disp. em:
http://www.pr.gonet.biz/kb_read.php?num=59
Acesso 30/1/017
www.ofielcatolico.com.br
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