‘Talvez tenhamos chegado ao Fim dos Tempos’: entrevista com Cardeal Burke

Cardeal Raymond Burke fala sobre divisão, o fim dos tempos e o que ele faria se fosse eleito Papa

Por Paolo Gambi 
Tradução: Fraternidade Laical São Próspero 


O CARDEAL RAYMOND BURKE tem estado presente em muitas notícias desde o ano passado. Em novembro de 2016, ele e outros três cardeais presentearam o Papa Francisco com o famoso documento Dubia – contendo cinco questões a respeito da exortação apostólica de Francisco sobre a Família, a Amoris Laetitia

Desde então, o Cardeal norte-americano viu-se envolvido em uma luta pelo poder dentro da Ordem de Malta, da qual é patrono. Isso foi seguido por sua nomeação surpresa para membro do Supremo Tribunal da Signatura Apostólica, o tribunal mais elevado da Igreja. Ele foi prefeito da mesma Signatura de 2008 a 2014, quando foi removido pelo Papa Francisco. 

Cardeal Burke tem falado frequentemente contra o que ele vê como uma crescente confusão dentro da Igreja em relação à Liturgia, à identidade Católica e até mesmo a Fé em si. Eu o encontrei um pouco antes do primeiro aniversário do Dubia, em uma celebração na Basílica de Sto. Apolinário em Classe, em Ravenna, organizado pelo Coordinamento Nazionale del Summorum Pontificum e pela associação cultural São Miguel Arcanjo [Segue a entrevista concedida por Sua Eminência Revma. ao jornalista Paolo Gambi, pelo noticioso Catholic Herald].


Paolo Gambi
Paolo Gambi – Sua Eminência, recentemente o senhor se referiu aos nossos tempos como “realisticamente apocalípticos”. E o senhor adicionou que a “confusão, divisão e erro” dentro da Igreja Católica, vindo dos “pastores” que se encontram até mesmo nas mais altas posições indica que nós “talvez” estejamos no Fim dos Tempos. O senhor nos ajudaria a compreender o que quis dizer com isso?

Cardeal Burke – No momento atual há confusão e erro sobre os mais fundamentais ensinamentos da Igreja, por exemplo em relação ao casamento e à família. Exemplifico com o seguinte, a ideia de que as pessoas que estão vivendo em uma união irregular podem receber Sacramentos é uma violação da verdade quanto à indissolubilidade do Matrimônio e a santidade da Eucaristia. S. Paulo nos diz em sua Primeira Carta aos Coríntios que antes de nos aproximarmos para receber o Corpo de Cristo, nós temos que nos examinar, ou então comeremos da nossa própria condenação, por recebermos a Eucaristia de modo indigno.

Agora, a confusão na Igreja vai ainda mais longe que isso, porque existe hoje uma confusão sobre se existem atos que são intrinsecamente maus e isso, é claro, é o próprio fundamento da lei moral!

Quando este fundamento começa a ser questionado dentro da Igreja, então toda a ordem da vida humana e a ordem da própria Igreja estão em perigo. Então, há um sentimento de que no mundo de hoje, que é baseado no secularismo com uma aproximação completamente antropocêntrica, pelo qual pensamos ser capazes de criar os nossos próprios significados da vida e o significado da família, e assim por diante, a própria Igreja parece estar confusa. Neste sentido, alguém pode ter a sensação de que a Igreja nos dá a aparência de não querer obedecer aos Mandatos de Nosso Senhor. Então, talvez tenhamos mesmo chegado ao Fim dos Tempos.


Paolo Gambi – O senhor poderia, por favor, nos dar uma atualização sobre a “correção formal” [de Amoris Laetitia]?

Cardeal Burke – Eu não posso dizer muito. Em 14 de novembro, completará um ano desde que o Dubia foi publicado. Toda a questão ainda está por ser determinada sobre como proceder, visto que não recebemos nenhuma resposta, nem mesmo um reconhecimento do Dubia, que são questões muito sérias. Penso que não posso dizer mais nada além disso no momento.


Paolo Gambi – Qual é a correta interpretação de sua recente nomeação para a Signatura Apostólica?

Cardeal Burke – Como cardeal, eu tenho servido muitos dicastérios da Cúria Romana. Como questão de fato, eu estou agora servindo somente dois dicastérios, a Congregação para as Causas dos Santos e o Concelho Pontifício para Textos Legislativos. Certamente, eu tenho preparo em Lei Canônica e especialmente em Jurisprudência, então, de algum modo, minha nova nomeação é algo lógico. Além disso, eu não gostaria de especular sobre o que isso significa.


Paolo Gambi – O secretário-geral da Conferência Episcopal dos Bispos Italianos, Bispo Nunzio Galantino, recentemente declarou que a "Reforma" [ou revolução protestante] foi “um evento do Espírito Santo”[!], e todo dia nós lemos sobre prelados lançando piscadelas de olho [em sentido de aprovação] para o mundo protestante. Enquanto isso, nós lemos sobre uma comissão que está trabalhando com a hipótese de uma interpretação sacramental comum da Eucaristia [um rumor posteriormente negado pelo Vaticano]. Todos nós morreremos protestantes?

Cardeal Burke – Bem, eu não vejo como alguém pode dizer que a divisão da Igreja foi uma ação do Espírito Santo. Isso simplesmente não faz sentido. E eu não conheço qual é a natureza dessa comissão, mas não é possível ter uma celebração Eucarística comum com os luteranos, porque eles não creem na Eucaristia como a Igreja Católica ensina, e, muito significantemente, eles não creem na doutrina da Transubstanciação, que diz que a substância do pão e do vinho, no momento da Consagração da Missa, é modificada na Substância do Corpo e Sangue de Cristo.

Para os católicos se empenharem em algum tipo de "Eucaristia ecumênica" seria necessário abandonar a Fé Católica! Isso é um ecumenismo profundamente falso, que faria graves danos à Fé e às almas.


Paolo Gambi – Em uma homilia o senhor pontuou: “A natureza da reforma do Rito da Missa escureceu significativamente em certo sentido; a Ação divina na Santa Missa, que é a união do Céu e da Terra, tem levado alguns a erroneamente pensarem que a Santa Liturgia é uma ação que nós temos fabricado de certo modo e com a qual podemos, portanto, fazer experiências”. É verdade, como muitas pessoas pensam e dizem, que essa nova maneira de celebrar a Missa é uma consequência necessária do Vaticano II?

Cardeal Burke – A forma precisa do Rito da Missa revisado não é necessariamente uma consequência do Segundo Concílio Vaticano (CVII). De fato, a reforma do Rito da Missa como foi realizada não seguiu tão fielmente quanto deveria ter seguido aquilo que o CVII nos ensinou e queria. É por isso que estamos falando hoje em dia sobre a “reforma da reforma”: em outras palavras, nós devemos examinar de novo como o Rito da Missa deve ser mais fielmente reformado de acordo com o Concílio.

Certamente, o Concílio ordenou alguma reforma do Rito da Missa. Entretanto, alguns condenaram a reforma por ter sido feita de modo muito violento, de certa forma, em termos de remover muitos aspectos do rito, o que fez com que ficasse muito difícil de enxergar a continuidade entre os ritos antes e depois do Concílio.

É claro que a continuidade é essencial, porque o Rito da Missa veio até nós desde os primeiros séculos cristãos, como uma realidade organicamente viva; você não pode simplesmente ter uma Missa "nova", no sentido de um Rito da Missa totalmente novo. De alguma forma, nós devemos expressar a Tradição Apostólica como ela veio até nós.


Paolo Gambi – É possível, hoje em dia, pedir pela Liturgia tradicional e não ser considerado, por essa razão, um “inimigo” do Papa Francisco e talvez até mesmo da Igreja inteira?

Cardeal Burke – Sim. De fato, as celebrações de ambas as formas do Rito Romano – a forma mais antiga ou tradicional e a forma ordinária – devem ser consideradas normais na Igreja. Desde o motu proprio Summorum Pontificum de Bento XVI em 2007, os padres são livres para celebrar a forma extraordinária do Rito Romano. Portanto, não deve haver razão para acreditar que celebrá-la é sinal de ser, de algum modo, um manifestante ou um inimigo do Papa.


Paolo Gambi – Mas como podemos usar a palavra “católico” para descrever um cardeal que celebra a antiga Missa e defende os valores da família e, por exemplo, um bispo como François Fonlupt de Rodez et Vabres, que recentemente ordenou um padre seguindo um rito com elementos do hinduísmo? O que pode manter a todos nós juntos?

Cardeal Burke – Melhor do que “o que” é “quem”. Quem nos mantém juntos é Jesus Cristo, que vem a nós na inquebrável Tradição da Igreja, em seu Ensinamento, em sua Oração sagrada, em seus discípulos e em seu Governo. Eu não ouvi sobre o episódio que você mencionou, mas um bispo que finge ordenar um padre de acordo com um rito estranho rompeu a comunhão com a Igreja.


Paolo Gambi – O senhor, como patrono da Ordem de Malta, tem alguma novidade sobre a situação incomum da ordem?

Cardeal Burke – Não. O Papa anunciou que seu único representante na ordem é o Arcebispo Becciu [da Secretaria de Estado do Vaticano]. Ele me deixou com o título de “Cardeal Patrono”, mas eu não tenho nenhuma função no momento. Portanto, não recebo nenhuma comunicação da Ordem de Malta ou do Papa.


Paolo Gambi – Perdoe-me uma última pergunta tola: o que o senhor faria, como primeiro ato, se fosse eleito papa?

Cardeal Burke – Não creio que haja algum risco de isso acontecer. Penso que, não me referindo a mim mesmo, a primeira coisa que qualquer Papa deve fazer é simplesmente a profissão de fé junto com toda a Igreja, como Vigário de Cristo na Terra [algo que Francisco não fez, optando por um secular 'boa noite' e, logo a seguir, um pedido pelas orações do povo]. A maioria dos Papas fez isso, geralmente por uma primeira Carta Encíclica, como o Papa S. Pio X com sua encíclica E Supremi. Também, a Redemptor Hominis, do Papa S. João Paulo II, é uma espécie de profissão de fé, lembrando novamente que a Igreja é o Corpo de Cristo, que a Igreja pertence a Cristo e que somos todos obedientes em seu serviço. 


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Fonte:
Catholic Herald, ‘Perhaps we have arrived at the End Times’: an interview with Cardinal Burke, em: 
http://catholicherald.co.uk/issues/december-1st-2017/perhaps-we-have-arrived-at-the-end-times-an-interview-with-cardinal-burke/
Acesso: 4/12/2017
www.ofielcatolico.com.br

Provas teológicas da existência do Inferno


DE TEMPOS EM TEMPOS ressurge uma corrente teológica que procura rediscutir/reinterpretar o tema (difícil, reconhecemos) do Inferno. Alguns outros procuram lidar com o problema desdenhando, porque o consideram inoportuno ou mesmo inadmissível para a sensibilidade das pessoas dos nossos tempos. Alguns "católicos do IBGE" (chamados também, especialmente pelos jovens, 'católicos-jububa'), chegam a dizer abertamente que não creem na existência do Inferno.

As Sagradas Escrituras, a Tradição da Igreja e o santo Magistério, porém, não deixam restar dúvida de que o Inferno, sim, existe[1], como confirmaremos no decorrer deste estudo. Não crer neste dado revelado, portanto, é afastar-se da Fé católica.

Saber que existe é um ponto de partida. Outro ponto fundamental é saber que o Inferno existe, mas não é uma criação de Deus, e sim uma invenção diabólica. Os seres humanos podem entrar nele, e dali não há mais saída, mas os que o fizerem o farão usando de sua total liberdade e escolha. Saber disto facilita bastante a compreensão do problema todo.

Na encíclica Spe Salvi, o Papa Bento XVI faz alusão a recentes episódios da história do mundo em que ficou evidente como o uso abusivo da liberdade pode levar, já neste mundo, a uma opção irremediável pelo mal:

Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora, perfis deste gênero. Em tais indivíduos, não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é já isto que se indica com a palavra 'inferno'.[2]

O Inferno não é, pois, uma mera hipótese, mas uma constatação teológica, cuja possibilidade se torna muito concreta se o ser humano olhar com sinceridade o seu próprio coração. Fatalmente, a criatura tem, sim, o poder de se afastar definitivamente de seu Criador plenamente amoroso.

Na verdade, são justamente as pessoas que deixam de crer no inferno as que terminam cometendo –, por causa disso –, as maiores atrocidades. Como creem que não haverá castigo, sentem-se "para além do bem e do mal", e assim tudo lhes parece permitido.

Mas, na expressão de São Bernardo de Claraval, "impassibilis est Deus, sed non incompassibilis" – "Deus é impassível, mas não incompassível"[3]: embora não possa padecer, Deus Se compadece dos fracos e oprimidos neste mundo. Sua graça, adverte-nos mais uma vez o Papa Bento XVI, "não exclui a justiça", nem "muda a injustiça em direito".

Os que não creem no Inferno imaginam que tudo quanto se fez ou se omitiu nesta Terra –, de bem e de mal, de sacrifício e de prazer, de esforço e de indolência, por amor e por rancor, por altruísmo ou por pura maldade, com coragem heroica ou por covardia –,  termine por ter o mesmo valor, sendo recompensado de maneira exatamente igual. Contra um "Céu" e uma "Graça" deste tipo, protestou com razão, por exemplo, Dostoiévski, em seu romance Os irmãos Karamázov: "Ao final, no Banquete Eterno, não se assentarão à mesa indistintamente os malvados junto com as vítimas, como se nada tivesse acontecido."[4]

Mesmo diante de tantas razões, perguntarão pesquisadores do cristianismo e das religiões: "Quais são, especificamente, as bases bíblicas para se crer no Inferno?". De igual modo, questionarão outros, os racionais e os isentos: "Será ainda conveniente falar sobre o inferno ao homem de hoje?". Algumas respostas a estas questões veremos no correr deste artigo.


Sagradas Escrituras

As Escrituras claramente atestam um lugar de condenação eterna denominado Inferno, às vezes referido como Geena. Os exemplos são diversos: o Cristo disse que o homem que desprezar seu irmão “será condenado ao fogo da Geena” (Mt 5,22). Nosso Senhor também advertiu: “Não temais os que matam o corpo mas não podem matar a alma. Antes, temei Quem pode destruir tanto corpo como alma na Geena” (Mt 10,28).

Jesus disse ainda: “Se a tua mão te faz cair, corta-a. Melhor entrar na vida com uma só mão do que, mantendo ambas as mãos, ir para a Geena de fogo inextinguível” (Mc 9,43). Usando a parábola do joio e do trigo para descrever o Julgamento final, disse ainda: “Os anjos os lançarão [os malfeitores] na fornalha ardente, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13,42).

Semelhantemente, em outra ocasião Cristo falou do Julgamento final, em que ovelhas serão separadas dos lobos, Ele dirá ao mau: “Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo perpétuo preparado para o demônio e seus anjos” (Mt 25,41). Também vemos, no Livro da Revelação, cada pessoa sendo julgada individualmente, e os malfeitores sendo lançados em um “fosso de fogo, que é a segunda morte” (20,13-14).

Geena ('Gehenna') era o nome dado a um vale ao sul de Jerusalém, que era utilizado para sacrifícios pagãos de crianças pelo fogo. O profeta Jeremias amaldiçoou o lugar e predisse que seriam um lugar de morte e corrupção. Na literatura rabínica tardia, o termo identificava o lugar de castigo eterno com torturas e fogo inextinguível para os maus.

A partir das provas bíblicas, a Igreja consistentemente ensinou, desde sempre, que de fato o Inferno existe. Que as almas dos que morrem em um estado de pecado mortal imediatamente vão para o castigo eterno no Inferno. O castigo do Inferno é, principalmente, a separação eterna de Deus. Lá, se sofre um sentido de perda incomensurável, a perda do Amor de Deus, que para nós é a própria vida, a perda da vida em Deus que é a Fonte de todos os bens dos quais somos capazes de desfrutar nesta vida. Esta é a perda de qualquer possibilidade de felicidade, amor verdadeiro, plenitude, consolação ou paz, pois todas estas coisas estão relacionadas a Deus, e d'Ele dependem diretamente para existir. Só em Deus o homem encontrará realização (cf. CCE 1035).

As descrições dadas sobre o “fogo do Inferno” pela Constituição Apostólica Benedictus Deus (1336), do Papa Benedito XII, disseram que as almas “sofreriam a dor do Inferno”, e o Concílio de Florença (1439) decretou que as almas “seriam punidas com castigos diferentes”. Diversos santos tiveram visões de inferno. Ir. Faustina o descreveu como

um lugar de grande tortura; é terrivelmente grande e extenso! (...) A primeira tortura que constitui o Inferno é a perda de Deus; a segunda é o remorso perpétuo da consciência; a terceira é que aquela condição nunca mudará; a quarta é o fogo que penetrará na alma sem destruí-la, um sofrimento terrível, como é um fogo puramente espiritual, aceso pela Ira de Deus; a quinta tortura é a escuridão ininterrupta e um terrível e sufocante odor. Apesar da escuridão, os demônios e as almas dos condenados vêem todos os males, os próprios e dos outros; a sexta tortura é a companhia constante de Satanás; a tortura sétima é o horrível desespero, aversão de Deus, palavras vis, maldições e blasfêmias. Estas são as torturas sofridas por todos os condenados, mas isto não é o fim dos sofrimentos. Há torturas especiais dos sentidos. Cada alma sofre sofrimentos indescritíveis, terríveis, relacionados à maneira com que se pecou. Há cavernas e fossas de tortura onde uma forma de agonia difere da outra. Teria eu morrido na visão destas torturas se a onipotência de Deus não tivesse me apoiado. Escrevo isto no comando de Deus, de modo que nenhuma alma pode achar uma desculpa para dizer que não há inferno, nem que ninguém jamais esteve lá e por isso não se pode dizer como ele é.”

Teologia da Tradição e do Magistério

O papa S. João Paulo II, em "Cruzando o Limiar da Esperança" (pp. 185-6), lançou a pergunta: “Pode Deus, que tanto amou o homem, permitir que o homem que O rejeita seja condenado a tormento eterno?”. Citando as Escrituras Sagradas, nas passagens que vimos mais acima, respondeu repetindo o ensino inequívoco de Nosso Senhor. Lembrou-nos também que a Igreja nunca condenou uma pessoa particular ao Inferno, nem mesmo Judas; antes, a Igreja deixa todo julgamento nas mãos de Deus. Entretanto, o Papa, por uma série de perguntas, afirma que o Deus Amor é também o Deus Justiça, que nos faz responsáveis por nossos pecados e assim, por justiça, poderá nos punir.

Devemos suplicar pela Graça de resistir às tentações e seguir o caminho do Senhor, ao mesmo tempo procurando o perdão para qualquer queda em que venhamos a incorrer. Falando sobre a jornada da Igreja Peregrina, a Constituição Dogmática sobre a Igreja do CVII (n. 48) diz que “desde que não se sabe nem o dia nem a hora, devemos seguir o conselho do Senhor e vigiar constantemente, de modo que, quando o único curso de nossa vida terrena for completada, possamos merecer entrar com Ele na Festa das Bodas e sermos numerados entre os abençoados, e não com os serventes maus e preguiçosos, sermos enviados ao fogo eterno, na escuridão exterior onde ‘haverá pranto e ranger de dentes'.”. Por esta mesma razão, rezamos na primeira Oração Eucarística da Missa, “Pai aceitai esta oferenda de toda a vossa família. Concedei-nos vossa paz nesta vida, poupai-nos da condenação final, e contai-nos entre os escolhidos”.

Retomando a questão posta no início, será ainda conveniente falar sobre o inferno ao homem de hoje?  Tal assunto não poderia traumatizar as almas dos nossos tempos, óbvia e visivelmente mais sensíveis que as de tempos passados? A pedagogia divina, expressa na vida dos santos e místicos da Igreja, demonstra que não. Sta. Teresa de Ávila relata, em sua autobiografia, como a visão que teve do Inferno foi "uma das maiores graças" que o Senhor lhe concedeu[5]. Tal experiência, ao contrário de traumatizá-la ou afastá-la do fervor divino, fê-la inflamar-se de tal amor por Nosso Senhor que – como diz ela em seu "Caminho de Perfeição"[6] – estaria disposta a dar mil vidas pela salvação de uma só das almas que se precipitam no horrendo abismo eterno.

Em 1917, em Portugal, Nossa Senhora, nossa Mãe do Céu e a grande mestra da Igreja, também não hesitou em mostrar o Inferno aos pastorinhos de Fátima. "Algumas pessoas, mesmo piedosas" – disse Ir, Lúcia em suas memórias[7] –, "não querem falar às crianças do Inferno, para não as assustar. Mas Deus não hesitou em mostrá-lo a três crianças, e uma de 6 anos apenas, a qual Ele sabia que se havia de horrorizar a ponto de, quase me atrevia a dizer, definhar-se de susto".

Por que permitiu Deus que aquelas frágeis crianças tivessem, diante de si, realidade tão aterradora? Certamente podemos considerar que sua Graça as fortaleceu sobrenaturalmente, mas a razão é que, segundo a própria vidente, Deus quis excitar-lhes o temor. Não uma espécie de temor servil, como o medo que o escravo tinha de seu dono, mas o temor filial, o respeito e a reverência de um filho. De fato, depois de contemplarem o Inferno, Francisco, Jacinta e Lúcia, ao contrário de definharem de pavor, sentiram-se inflamados por um grande amor a Deus, uma disposição nunca experimentada e também uma serenidade absolutamente inexplicável em crianças tão pequenas, mesmo diante de grandes tribulações que viveram. Passaram, a partir daí, a se penitenciar e rezar continuamente pela salvação das almas da condenação eterna. É o que devemos fazer, também nós.


Estará vazio o Inferno?

Mais recentemente, o reconhecido teólogo Hans Urs von Balthasar, considerado um dos pensadores cristãos mais importantes do século XX, aventou uma interessante possibilidade: o Inferno, embora exista, talvez estivesse vazio ('l'inferno vuoto'). 

Será? Este seria, não podemos negar, um pensamento consolador para muita gente. Mesmo os grandes monstros da humanidade, como Judas, Nero e Calígula, Hitler ou Stalin, teriam se arrependido de todas as suas maldades em seus últimos suspiros e, assim, escapado da condenação eterna, resvalando para o Purgatório de purificação – que no caso destes, evidentemente, seria duríssimo.

Ainda que possamos ter esta hipótese teológica como esperança, o fato inescapável é que a Tradição da Igreja não pode corroborar esse pensamento, por várias razões. Primeiro porque Satanás e seus anjos rebeldes já estão condenados no inferno[8]; depois porque Cristo, ao encerrar o seu "sermão escatológico", não deixa dúvidas ao afirmar que os maus "irão para o castigo eterno" (Mt 25, 46).

Devemos lembrar que Deus não deseja que ninguém seja condenado, mas nos confere a Graça atual, que ilumina o intelecto e fortalece a vontade de modo que possamos fazer o bem e nos desviar do mal. Entretanto, uma pessoa, com o consentimento do seu intelecto, pode escolher praticar o mal e, com essa escolha, cometer pecado mortal, e assim rejeitar Deus. Se uma pessoa não se arrepende do pecado mortal, não tem qualquer remorso e persiste por vontade própria neste estado, então esta rejeição consciente e voluntária de Deus continuará para a eternidade. Em resumo: as pessoas não são condenadas, mas condenam-se, elas mesmas, ao Inferno.

Permanecer na fé da Igreja, portanto, é o caminho seguro, a única garantia que temos. Os pregadores da Palavra deveriam voltar a falar do Inferno, e dizer o que e como é, não para aterrorizar o povo, mas para fazer as pessoas crescerem no zelo e na caridade. A caridade não pode ser levada a sério se não se tem uma verdadeira repulsa pelo mal e pelo eterno afastamento do Sumo Bem, que é Deus.

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1. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1033.
2. Papa Bento XVI, Carta Encíclica Spe Salvi (30 de novembro de 2007), III, 45.
3. Sermones in Cantica Canticorum, 26, 5 (PL 183, 906).
4. Papa Bento XVI, Carta Encíclica Spe Salvi (30 de novembro de 2007), III, 44.
5. Livro da Vida, 32, 4.
6. Cf. Caminho de Perfeição, 1, 2; Livro da Vida, 32, 6.
7. ALONSO, Joaquín María; KONDOR, Luigi; CRISTINO, Luciano Coelho. Memórias da Irmã Lúcia. 13. ed. Fátima, 2007, p. 123.
8. Cf. Papa João Paulo II, Audiência Geral (28 de julho de 1999), n. 4.

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Ref.:
• Padre Paulo Ricardo. O inferno existe?, disp. em:
https://padrepauloricardo.org/episodios/o-inferno-existe

Acesso 30/11/2017
• Veritatis Splendor. Sim, existe um Inferno,  disp. em:
http://www.veritatis.com.br/sim-existe-um-inferno/

Acesso 30/11/2017
www.ofielcatolico.com.br
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