Pelo Venerável Servo de Deus Fulton Sheen, Arcebispo
“Tenho sede.”
(Jo 19,28)
SE HÁ UM INDÍCIO mais claro do que qualquer outro da degeneração da sociedade, esse indício é o excesso de luxo do mundo atual. Quando os homens se esquecem da sua alma, passam a preocupar-se demais com seu corpo. Há mais academias de ginástica no mundo de hoje do que casas de retiro espiritual; e quem contará os milhões gastos em salões de beleza para glorificar os rostos que um dia serão a comida de vermes?
Não é difícil encontrar pessoas que gastam duas ou três horas por dia em exercícios físicos, mas se lhes pedirmos que dobrem o joelho diante de Deus para fazer cinco minutos de oração, reclamarão, e em seu íntimo acharão que é muito tempo. Somemos a isso a quantidade escandalosa que se gasta anualmente não no prazer normal da bebida, mas no seu excesso. E o escândalo aumenta ainda mais quando se consideram quantas necessidades básicas dos pobres poderiam ser supridas pelas quantias gastas nessa degradação. O julgamento divino do ricaço do Evangelho há de repetir-se forçosamente com muitos integrantes da nossa geração: eles terão de ver como os mendigos, a quem eles haviam ignorado para não terem de interromper sua vida de luxo, se assentarão no Banquete do Rei dos reis, enquanto eles mesmos mendigarão uma gota d'água.
Era preciso expiar de alguma forma toda essa gula, bebedeira e luxo excessivos. A reparação começou com o Nascimento de Nosso Senhor, quando Ele, que poderia fazer do Céu o teto da sua casa e das estrelas os seus candelabros, decidiu ser rejeitado pelos homens e expulso até das menores dentre as cidades de Israel, como um pária que tem de vagar pelos outeiros. Logo no primeiro sermão que pregou, proclamava o desapego: "Bem-aventurados os pobres de espírito, pois é deles o Reino dos Céus” (Mt 5, 3). Depois de iniciar a sua vida pública rios com um jejum de quarenta dias, exortou os homens: "Não vos preocupeis com a vossa vida, de que vos alimentareis, ou com o vosso corpo, com que vos vestireis" (Mt 6,25).
Quando percorria estradas como um profeta, admitiu que continuava tão desprovido de teto quanto por ocasião do seu Nascimento: "As raposas tem suas tocas e as aves do céu o seu ninho; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça" (Mt 8, 20). Também não havia luxo algum no modo como se alimentava; sabemos somente de uma refeição que Ele mesmo preparou, e essa consistia apenas de pão e peixe (cf. Jo 21, 9-10.12).
Finalmente, na Cruz, Ele foi despojado de suas vestes e privado de um sepulcro para sair deste mundo como nele tinha entrado: Senhor dele e, mesmo assim, nada possuindo nele. As águas do oceano eram d’Ele e todas as fontes tinham brotado ao comando da sua Palavra; foi Ele quem soltou as quedas de água da natureza e fechou o mar nas suas comportas: foi Ele quem disse: "Quem beber dessa água voltará a ter sede, mas quem beber da água que Eu lhe der não terá sede para sempre” e “Se alguém tiver sede, venha a mim e beba" (Jo 4. 13-14,7. 37).
Agora, porém, Ele deixa cair dos seus lábios o mais breve dos sete gritos da Cruz, aquele que expressa o mais agudo de todos os sofrimentos humanos em expiação por todas as saciedades humanas: "Tenho sede". Um soldado imediatamente pôs uma esponja cheia de vinagre em uma vara e a pressionou contra sua boca. Assim se cumpriu a profecia feita pelo salmista mil anos antes: “Na minha sede, deram-me a beber vinagre” (Sl 68, 22).
Ele, que alimentou as aves do céu, ficou sem comer; Ele, que transformou água em vinho, teve sede; secaram as fontes inesgotáveis: o Homem Deus soçobrou na indigência. Desde então o "divino "Lázaro está à porta do mundo e mendiga uma migalha e um gole, mas batem-lhe a porta da generosidade na face.
Assim expiou Cristo o luxo no comer e no beber. Quando Mirabeau morria, pediu ópio, dizendo: "Vocês prometeram me poupar sofrimento desnecessário... Apoiem essa cabeça maior cabeça da França". Quando Cristo morria, recusou a droga que aliviaria seu sofrimento (Mc 15, 23). Ele se dispõe deliberadamente a sentir a mais pungente das carências humanas, para que pudesse equilibrar na balança da justiça aqueles que consumiram mais do que precisavam.
O Senhor chegou mesmo a humilhar-se até o fim, a fazer-se o último dos homens, pedindo-lhes uma bebida - mas não uma bebida de água terrena. Não era isto o que Ele queria, e sim uma bebida para o seu coração sedento - uma bebida de amor. “Tenho sede de amor”.
Essa palavra da Cruz nos revela que existem uma fome e sede duplas: uma do corpo, outra da alma. Em muitas ocasiões anteriores, Nosso Senhor as havia distinguido: "Ai de vós que estais fartos, pois haveis de ter fome. Ai de vos que agora rides, pois haveis de gemer e chorar”; "Bem-aventurados vós que agora tendes fome, pois sereis saciados. Bem-aventurados os que agora chorais, pois havereis de rir" (Lc 6, 21.25). A multidão que o seguiu através do mar, Ele disse: "Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que dura até a vida eterna, que o Filho do Homem vos dará" (Jo 6, 27).
À mulher samaritana que veio tirar água no poço de Jacó, Ele prometeu: "Quem beber dessa água voltará a ter sede; mas quem beber da água que Eu lhe der, não terá sede para sempre, mas a água que lhe darei se transformará nele em uma fonte de água que jorrará até a vida eterna" (Jo 4, 13-14).
Por fim – passagem importantíssima entre todas as referência à comida e à bebida do homem interior, em contraste com as do exterior – Ele prometeu o supremo Alimento de Si mesmo: "Pois a minha carne é verdadeira comida e meu sangue verdadeira bebida” (Jo 6,55).
À luz dessa fome e sede duplas, a distinção entre dieta e jejum fica clara. A Igreja jejua; as pessoas mundanas fazem dieta. Materialmente, não há diferença, porque tanto um como outro podem perder nove quilos. A diferença está somente na intenção. Os cristãos jejuam não pelo corpo, mas pela alma; o pagão jejua não pela alma, mas pelo corpo. O cristão não jejua porque o corpo é mau, mas sim para torná-lo flexível nas mãos da alma, como uma ferramenta nas mãos de um hábil artesão.
Isso nos traz ao problema básico da vida. É a alma um instrumento para o corpo, ou o é o corpo para a alma? Deveria a alma fazer o que o corpo manda, ou deveria o corpo fazer o que a alma quer? Ambos têm seus apetites e ambos são imperiosos na satisfação de seus desejos. Se agradamos a um, desagradamos ao outro, e vice-versa. Os dois não podem se sentar juntos no banquete da vida.
O desenvolvimento do caráter depende de qual fome e sede cultivamos. Fazer dieta ou jejuar – esse é o problema. Perder a papada para ficar mais bonito aos olhos das criaturas ou perdê-la para manter o corpo domado e sempre obediente às exigências espirituais da alma - essa é a questão. O quanto um homem vale pode medir-se pelos seus desejos.
Diz-me quais as tuas fomes e as tuas sedes, e eu te direi quem és. Tens fome de dinheiro mais que de misericórdia? De riquezas mais que de virtudes? De poder mais que de serviço? Então, és um egoísta, mimado e orgulhoso. Tens sede mais do vinho da vida eterna que do prazer? Do bem dos pobres mais que dos favores dos ricos? De almas mais que dos primeiros lugares às mesas? Então, és um cristão humilde.
A grande pena é que muitos se preocupam tanto com o corpo que descuidam da alma, e ao descuidarem da alma perdem o apetite para o espiritual. Assim como é possível, no âmbito psicológico, que alguém perca todo o apetite por comida, assim também é possível, no âmbito espiritual, que alguém perca todo o desejo pelo sobrenatural. Gulosas do perecível, essas pessoas tomam-se indiferentes ao eterno. Como ouvidos surdos, mortos para o ambiente da harmonia musical, e olhos cegos, mortos para o ambiente de beleza, assim almas tortas tomam-se mortas a para o ambiente do divino. Darwin nos diz na sua autobiografia que, no seu amor pelo biológico, perdeu todo o gosto que tivera pela poesia e pela música, e que lamentou essa perda todos os dias da sua vida. Nada insensibiliza tanto a capacidade para o espiritual como a dedicação excessiva ao material.
Um amor exagerado ao dinheiro destrói todo o sentido do valor; um amor excessivo pela carne mata os valores do espírito. Chega então o momento em que tudo parece se rebelar contra as leis mais altas do nosso ser. Como diz o poeta: "Todas as coisas te traem a ti, que me trais". A natureza é tão leal a seu Criador que ela sempre termina por ser desleal para com aqueles que abusam dela. "Uma veracidade traidora e um engano leal" é a melhor descrição poética disto, porque, em fidelidade a Deus, ela sempre será instável para conosco.
A quinta palavra de Cristo na Cruz é o apelo de Deus ao coração humano para que busque a sua satisfação somente nas fontes que podem satisfazer. Deus não pode obrigar os homens a terem sede do que é sagrado em vez de daquilo que é vil, ou do divino em vez do humano, por isso seu pedido é uma simples afirmação: "Tenho sede”, significando: "Tenho sede de que tenham sede de Mim”... E a sua sede é a nossa salvação.
Uma dupla recomendação esconde-se neste sermão pregado a partir da Cruz: a primeira é que mortifiquemos a fome e a sede corporais; a segunda, que cultivemos a fome e a sede espirituais.
Devemos mortificar a fome e a sede corporais, não porque a carne é má, mas porque convém que o espírito sempre exerça domínio sobre ela, para que assim ela não se torne uma tirana. Muito além de evitar qualquer excesso, a Cruz exige que minimizemos os nossos gastos com luxo em favor dos pobres. Quantos alguma vez pensam em abster-se de um jantar sofisticado ou de uma ida ao teatro com os amigos por simpatia e afeição genuínas pelos pobres de Cristo? O ricaço da parábola (Lc 16,19ss.) não o fez, e perdeu a sua alma por conta desse esquecimento. Quantos, em circunstâncias mais apertadas, até se negam o prazer de assistir a um filme por mês para depositar o equivalente da entrada na caixa dos pobres, a fim de que Ele, que vê em segredo, possa recompensá-los em segredo?
Não há a menor dúvida de que Deus nos aconselha a continência desses apetites corporais. Em certa ocasião, quando Nosso Senhor foi convidado a uma refeição em casa de um principal entre os fariseus, Ele se dirigiu ao anfitrião dizendo: "Quando deres uma ceia, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os parentes, nem os vizinhos ricos, porque eles também te convidarão, por sua vez, e assim te retribuirão. Mas, quando deres uma ceia convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz, porque eles não têm com que te retribuir, e assim terás a retribuição na ressurreição dos justos" (Lc 14, 12-14).
O dinheiro que gastamos nos excessos da fome e da sede corporais não nos servirá de nada no último dia; mas os pobres que ajudamos, graças à nossa temperança e mortificação, se levantarão como advogados diante do Tribunal da Justiça divina e pedirão ao Senhor que tenha misericórdia para com as nossas almas, ainda que elas, alguma vez, tenham estado pesadamente carregadas de pecado. O divino Juiz não pode ser comprado com dinheiro, mas pode ser convencido pelos pobres. Naquele último dia –, o único que realmente conta –, hão de se cumprir as belas palavras proféticas da Mãe de Nosso Senhor: ”Encheu os famintos de bens e dispensou os ricos de mãos vazias” (Le l, 53).
Quando praticarmos esses atos de abnegação do alimento e da bebida supérfluos em favor da nossa alma, devemos realizá-lo em espírito de alegria. "E quando jejuardes, não fiqueis tristes como os hipócritas; porque eles desfiguram os rostos para que apareça aos homens que jejuam. Em verdade, vos digo: já receberam a sua recompensa. Mas vós, quando jejuardes, ungi vossa cabeça e lavai a vossa face; para que não apareça aos homens que jejuais, mas apenas ao vosso Pai, que habita em segredo. E vosso Pai, que vê em segredo, vos recompensará” (Mt 6, 16-18).
Por outro lado, devemos cultivar uma fome e uma sede espirituais. A mortificação dos corporais é só um meio, não um fim; o fim é a união com Deus, o grande desejo da alma. “Provai e vede como o Senhor é bom!" (SI 33, 9).
A grande tragédia da vida não é tanto o que os homens sofreram, mas o que perderam de vista. Só uns poucos podem satisfazer os seus apetites terrenos graças à sua riqueza, mas todos os homem vivos, se o quisessem, poderiam gozar da comida e bebida espirituais que Deus serve a todos os que as pedem(!). No entanto, como são poucos os que alguma vez pensam em alimentar as suas almas! Deveria haver pouquíssimos homens desses em Jerusalém para arrancar do Senhor a suave queixa: "Quantas vezes quis reunir os teus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos debaixo de suas asas... e tu não quiseste!" (Mt 23, 37). Quando escutamos a exclamação "Tenho sede", bem poderíamos ouvir o Salvador dizer-nos as palavras dirigidas à mulher no poço de Jacó: "Se conhecesses o Dom de Deus, e quem é que diz: 'Dá-me de beber', tu lhe pedirias, e Ele te daria a Água viva” (Jo 4, 10). Mas, quantos a pedem?
Consideremos o maior dom de Deus para os homens: o Pão da Vida. Quão poucos se valem da divina Presença para comungar diariamente o divino Alimento da alma! Quantos têm consciência suficiente de que Nosso Senhor está no Tabernáculo para ao menos visitá-lo diariamente na sua prisão de Amor? Se não o fazemos, o que testemunha isso senão a morte da nossa visão sobrenatural? Nosso corpo parece sentir mais falta de uma sobremesa do que nossa alma, da Comunhão.
Não é de espantar que nosso Redentor Crucificado tenha tido sede de nós na Cruz. Ele teve sede dos nossos corações indiferentes e das nossas almas idiotizadas. E não julguemos que sua sede é uma prova de carência da parte d'Ele (o que seria absurdo), mas sim da nossa. Ele não necessita de nós para a sua perfeição (pois Ele já é perfeito e fonte de toda perfeição) mais do que precisamos nós, por exemplo, de uma flor que se abre fora da janela para a nossa perfeição.
Na estiagem, desejamos chuva para a flor plantada num vaso, não porque precisemos dela, mas porque aquela flor, sim, precisa de nós para ser cuidada. Do mesmo modo, Deus tem sede de nós, não porque Ele necessite de nós para sua felicidade, mas porque nós carecemos d'Ele para a nossa. Sem Ele, o progresso é impossível para nós. Exatamente como certas doenças, como o raquitismo e a anemia, aparecem no corpo por uma deficiência de vitaminas necessárias, assim também o nosso caráter se ressente da falta do Espírito. A imensa maioria dos homens e mulheres no mundo de hoje é tão atrasada espiritualmente que, se tal deficiência se mostrasse nos seus corpos, eles seriam monstruosidades físicas.
Quantos milhões de mentes estão, hoje, desprovidas de uma única verdade gratificante que possam levar consigo em meio a suas tristezas e com que se possam consolar na hora da morte? Quantos milhões de vontades ainda não encontraram a meta para a sua vida e, por estarem despojadas dela, voam como borboletas de uma emoção para outra, incapazes de achar repouso? Que ao menos cultivem o gosto por algo mais que pão e circo; que perscrutem as profundezas do seu ser para descobrir os desertos áridos que clamam pelo regresso das fontes inextinguíveis.
É claro que essas almas macilentas não são completamente culpáveis. Elas ouviram pregadores clamando sem "lde a Cristo!" Mas o que significa isso? Voltar para dois mil anos atrás? Se sim, não teriam elas o direito de duvidar da palavra de Alguém que não consegue se projetar através dos tempos? Olhar para o Céu, então? Se é este o sentido da frase, então o que aconteceu com a sua bênção, o seu perdão dos pecadores, a sua Verdade, que Ele disse que duraria até o fim do mundo? Onde está a sua autoridade hoje? Seu poder? Sua vida? Se não está em algum lugar da Terra, então por que veio Ele à Terra? Teria deixado apenas o eco de suas palavras, o registro de seus feitos, e depois ido embora, legando-nos somente uma história e seus professores?
Em algum lugar da Terra, hoje, encontra-se a sua verdade: ”Aquele que vos ouve, a mim me ouve" (Lc 10, 16). Em algum lugar da Terra está o seu poder: "Eis que vos dei poder...” (Lc 10. 19). Em algum lugar da Terra está a sua vida: "O pão que Eu vos darei é a minha carne para a vida do mundo" (Jo 6,51). Onde encontrá-los? Há uma instituição na face da Terra que alega possuir todas essas coisas, e que aqueles que, sedentos, bateram às suas portas, receberam o elixir da vida divina e, com ele, a paz dos que bebem e não sentem mais sede, comem e não têm mais fome.
Nosso Senhor pergunta a cada um de nós em particular, dentro e fora da Igreja: "Aceitas a Bebida do meu Amor?". Ele tomou nosso cálice de ódio e amargura no Getsemani, e a borra depositada no fundo desse cálice foi tão amarga que o fez exclamar: "Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice"" (Mt 26. 39).
Mas Ele bebeu cada gota dele. Se Ele bebeu nosso cálice de ódios, por que não bebemos seu Cálice de Perdão? Por que, então, quando chora: "Tenho sede", nós ainda continuamos lhe dando vinagre e fel?
____
Fonte:
SHEEN, Fulton. A Cruz, vitória sobre os vícios. São Paulo: Molokai, 2015, pp. 50-58.
Magnifico, belíssimo, extraordinário texto. Senhor dai-me dessa fonte de água viva, agua que jorra para a vida eterna AMÉM .
ResponderExcluirAh, meu Deus, como sou pecador! Como sou falho. Tem piedade de mim. Dá-me de beber da Sua fonte, meu querido Jesus e aceita-me entre os Seus. Não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo. Amém
ResponderExcluir