O Venerável arcebispo Fulton John Sheen (8 de maio de 1895 – 9 de dezembro de 1979), se vivesse hoje, certamente seria chamado pelos jovens católicos de “mito”... Ele foi, poderíamos dizer, uma espécie de “Padre Paulo Ricardo norte-americano” (porém livre das lutas e dificuldades impostas a este em nossos tempos de crise na Igreja), isto é, um sacerdote fiel à Tradição e também um grande comunicador. Teve a felicidade de exercer a maior parte do seu ministério no período dito “pré-conciliar”, quando as coisas eram mais claras e a mesma Sã Doutrina era igualmente ensinada por todos os bispos, no mundo inteiro.
O artigo abaixo é o primeiro capítulo de um de seus 70 livros publicados, intitulado “Peace of Soul” (‘A Paz da Alma’, republicado pela Molokai em 2017, com revisão e projeto gráfico de Henrique Sebastião), que trata de psicologia e psicanálise, e da incapacidade do mundo moderno em as angústias de milhões que vivem atormentados por conflitos internos e frustrações sem fim, em uma sociedade dominada pela degradação moral e em que imperam as ideologias materialistas. Tenha uma proveitosa leitura!
SE AS ALMAS não forem salvas, nada se salvará. Não poderá haver paz no mundo se não houver paz na alma, em cada alma. As guerras mundiais não passam de projeções dos conflitos travados dentro das almas dos homens modernos, pois nada acontece no mundo exterior que não tenha primeiro acontecido dentro de uma alma.
Durante a Segunda Guerra Mundial, disse Pio XII que o homem do pós-guerra ficaria mais mudado do que o mapa da Europa do pós-guerra. É esse desiludido homem do pós-guerra –, ou a alma moderna –, que nos interessa neste estudo.
Ele se mostra, como o Santo Padre predisse, diferente dos homens de épocas mais remotas. E essa diferença está em que a visão moderna não mais procura descobrir Deus na natureza. Em outras gerações, o homem, contemplando toda a vastidão da criação, si beleza do firmamento e a ordem dos planetas, disso deduzia o poder, a beleza e a sabedoria do Deus que criou e manteve esse mundo. Infelizmente, porém, o homem moderno está impedido dessa aproximação por vários obstáculos, Mostra-se muito menos impressionado pela ordem da natureza do que pela desordem de seu próprio pensamento, tornado sua principal preocupação. A bomba utópica destruiu seu temor de uma natureza que o homem pode sora manipular, tanto para destruir outros homens, quanto para someter o suicídio cósmico. E, finalmente, a ciência da natureza é demasiado impessoal para esta era concentrada em si mesma. A antiga aproximação não só torna o homem mero espectador da realidade, em vez de seu criador, mas também exige que a personalidade do buscador da verdade não se intrometa a si mesma sua investigação. Mas é a personalidade humana e não a natureza que realmente interessa e perturba os homens de hoje.
Esta mudança em nossos tempos não significa que a alma moderna tenha abandonado a busca de Deus, mas que abandonou o mais racional – e mesmo o mais normal— caminho de descobri-Lo. Não a ordem no cosmos, masa desordem em si mesma; não as coisas visíveis do mundo, mas as desilusões invisíveis, os complexos e ansiedades de Sua própria personalidade; eis o ponto de partida do homem moderno, quando se volta interrogativamente para a religião. Em dias mais felizes, os filósofos discutiam o problema do homem; agora discutem o homem como um problema.
“Em virtude de seu ceticismo, o homem moderno foi repelido sobre si mesmo. Suas energias correm para sua fonte e fazem vir à tona aqueles conteúdos psíquicos que ali estão permanentemente, mas jazem ocultos na vasa, enquanto a corrente flui mansamente no seu curso. Quão totalmente diverso aparecia o mundo ao homem medieval! Para ele, a Terra estava eternamente fixa e em repouso no centro do Universo, cercada pela trajetória de um sol que lhe dispensava com solicitude seu calor. Os homens eram todos filhos de Deus, sob o cuidado amoroso do Mais Alto, que os preparava para a eterna bem-aventurança. E todos Sabiam exatamente o que deveriam fazer e como deveriam conduzir-se, a fim de erguer-se dum mundo corruptível a uma vida incorruptível e jubilosa. Vida semelhante não mais nos parece real, mesmo em nossos sonhos. A ciência natural de há muito que estraçalhou esse formoso véu. Essa era se acha tão distanciada no passado como a meninice, quando o pai da gente era inquestionavelmente o homem mais belo e mais forte da Terra”.[1]
Antigamente, Vivia o homem em um universo tridimensional onde, de uma Terra que ele habitava com seus vizinhos, avistava acima o céu e abaixo o inferno. Esquecendo Deus, a visão do homem ficou ultimamente reduzida a uma só dimensão. Acha agora que sua atividade esteja limitada à superfície da Terra: um plano sobre o qual se move, não subindo para Deus ou descendo para Satanás, mas somente para a direita ou para a esquerda. A velha divisão teológica dos que se acham no estado de graça e dos que não estão deu lugar à separação política entre direitistas e esquerdistas. A alma moderna limitou definitivamente seus horizontes. Tendo negado os destinos eternos, chegou a perder até sua confiança na natureza, pois a natureza sem Deus é traidora.
Para onde pode ir a alma, agora que um bloco de pedra foi lançado contra todas as saídas exteriores? Como uma cidade, cujos baluartes externos foram todos tomados, deve o homem retirar-se para dentro de si mesmo. Assim como uma massa líquida bloqueada se volta sobre si mesma, juntando espuma, resíduos e lama, da mesma maneira a alma moderna (que não tenha nenhum dos objetivos ou canais do cristão) se dobra sobre si mesma e, nessa condição de obstruída, recolhe todo o sedimento sub-racional, instintivo, negro e inconsciente que nunca se teria acumulado, se não tivessem sido fechadas as saídas normais dos tempos normais. O homem descobre agora que está encarcerado dentro de si mesmo, que é seu próprio prisioneiro. Encarcerado por si mesmo, tenta agora compensar a perda do universo tridimensional da fé, descobrindo três novas dimensões dentro de seu próprio pensamento. Acima do seu ego, seu nível consciente, descobre ele, em lugar do céu, um tirano inexorável a quem chama de superego. Abaixo de sua consciência, em lugar do inferno, aceita ele um mundo oculto de instintos e solicitações, desejos primitivos e necessidades biológicas, a que chama de id.
Essa concepção da pessoa humana, composta de três camadas ou regiões, foi posta em relevo por Sigmund Freud. Forma um elemento essencial na doutrina psicanalítica da natureza humana.
O traço mais importante dessa doutrina é a crença de que a vida mental consciente do homem, suas experiências e sua conduta São determinadas, não pelo que ele conhece, sente ou pretende, mas por forças em grande parte ocultas à sua percepção. Seu ego ou percepção interna é apenas o campo de batalha onde se trava uma guerra incessante entre suas necessidades biológicas e primitivas e os poderes corporificados no superego. Esses poderes tomam o lugar da consciência e se originam, não do conhecimento de uma lei natural e de uma obrigação do homem diante da lei divina, mas da pressão social, das influências ambientais postas a pesar sobre a mente plástica da criancinha. Uma vez que a satisfação das necessidades primitivas se acha colocada sob o mando da sociedade (como no uso de trajes), tornam-se elas “frustradas”. Seus objetivos originais não podem permanecer na nossa consciência por causa do seu intolerável conflito com os padrões do meio ambiente e por isso se tornam “recalcados”. De modo que a criança se assenhoreia de todas as leis, pontos de vista e valores do mundo adulto, quando aceita esses padrões como próprios. Faz isso identificando-se com a pessoa a quem veria como um antagonista em uma Sociedade primitiva. Assim, o superego se ergue e adquire seu conteúdo - as leis, tabus e ideais que sucedem ser os do mundo que cerca a criança.
De acordo com tal moderna concepção da vida subjetiva, aparece o homem como um escravo dentro de seu próprio pensamento e como uma vítima de forças que não pode reconhecer. Para libertar-se, se for isso possível, deve conhecer ainda mais a sua prisão.É essa uma das razões da grande popularidade de que goza hoje a psiquiatria. Esta ciência promete explicar o homem a si mesmo, capacitá-lo a ajustar-se melhor com sua trágica situação. Certo tipo de psiquiatria tenta explicar o homem por meio de uma teoria que afirma ser o consciente destituído de valor e somente graças ao inconsciente poderá ter o homem moderno a esperança de descobrir um meio de evadir-se de sua infelicidade. Segundo essa crença, o consciente é ao mesmo tempo impelido de baixo pelo id e comprimido de cima pela pressão do superego. O homem consciente fica assim desamparado entre eles. A psiquiatria tornar-se então uma espécie de lima de ferro, por meio da qual espera evadir-se dessa prisão mental onde ele próprio se aferrolhou, agindo como carcereiro de si mesmo.
Esta teoria psicanalítica vê a explicação de toda a conduta humana enterrada dentro das mentes dos homens individuais. Mas o paralelo entre as modernas teorias do mundo interior e do mundo exterior é chocante. Ambos os sistemas de pensamento exaltam a tensão e a possibilidade de uma explosão. O profeta de um é Marx, cuja filosofia tem como centro o conflito social; o profeta do outro é Freud, cujo principal interesse gira em torno dos conflitos individuais. Em ambas as concepções, afirma-se que o estado caótico e desgraçado dos negócios humanos se origina da tensão entre a aparência superficial de um lado e do outro as forças ocultas, negras e irracionais que, embora desconhecidas, são as verdadeiras determinantes de tudo o que acontece. Assim como no marxismo a condição manifesta social, política e cultural é apenas uma “superestrutura”, construída sobre as forças econômicas subjacentes, da mesma maneira no sistema de Freud a conduta consciente é apenas um produto de forças localizadas no inconsciente. “Em ambos, as situações humanas são Vistas em termos de interesses antagônicos. A psicologia de Freud analisou neuroses como resultados de um choque dialético entre o desejo e a lei. Ao mesmo tempo que lida Freud com contradições dentro dos processos psíquicos, seu método para explicar essas contradições segue uma estratégia materialista” [2].
Quando o conflito entre as forças inconscientes e o ego consciente atinge certa intensidade, o efeito, segundo Freud, é a comoção violenta, seguida de uma ruptura da vida e da conduta. Para Marx, de maneira análoga, a paz social se rompe quando o proletariado se levanta e isto ocorrerá quando as forças econômicas de baixo forem bastante fortes para derrubar a ordem social, política e econômica existente. Freud e Marx concordam ainda em que todos os acontecimentos, sociais e pessoais, são estritamente determinados. A liberdade espiritual é por ambos negada. O marxismo sustenta que a história é determinada pelas forças econômicas; o freudista, que o destino pessoal do homem depende de suas forças instintivas. Ambos encaram a abolição das inibições como o meio de atingir uma melhor condição de negócios. A própria existência deste paralelismo de pensamento indica como o homem moderno compreende ou não a si mesmo, dentro do “clima” geral cultural, intelectual e filosófico da época. O materialismo histórico, a filosofia de Marx, e o materialismo psicológico, a filosofia de Freud, são filhos da mesma era e exprimem as mesmas atitudes básicas.
Os complexos, ansiedades e temores da alma moderna não existiam com tal extensão em gerações anteriores, porque foram arrancados e integrados no grande organismo socioespiritual da Civilização Cristã. Formam, porém, tamanha parte do homem moderno que se pensaria estarem tatuados nele. Qualquer que seja a Sua condição, deve o homem moderno ser reconduzido a Deus e à felicidade. Mas como? Deveria o cristão, com suas verdades eternas, insistir para que o homem moderno deva regressar ao caminho tradicional, cujo argumento partiu da natureza? Que deva aproximar-se de Deus por meio dos cinco argumentos de São Tomás? Seria um mundo mais são, se ele o pudesse fazer. Mas é o objeto deste livro mostrar que devemos começar tomando o homem moderno como ele é e não como gostaríamos que ele fosse. Pelo fato de haver esquecido este ponto é que a nossa literatura apologética está atrasada cerca de cinquenta anos. Deixa fria a alma moderna, não porque seus argumentos não sejam convincentes, mas porque a alma moderna se encontra demasiado confusa para apreendê-los.
Mas nós que somos herdeiros de vinte séculos de pensamento profundo não devemos lidar com o sobrenatural como um cachorro com um osso. Se a alma moderna quiser começar sua busca de paz pela psicologia, em vez de o fazer com a nossa metafísica, começaremos pela psicologia. A verdade de Deus teria poucas facetas, Se não pudesse emparceirar-se com a natureza humana em qualquer grau de perfeição ou mesmo de degradação. Se o homem moderno quiser ir do Demônio até Deus, por que, então, não começaremos mesmo com o Demônio? Foi por onde começou O Divino Mestre com Madalena e disse a Seus discípulos que, com oração e jejum, também eles poderiam começar ali sua obra evangélica.
O meio psicológico não nos oferece dificuldade, pois a teologia cristã é, em certo Sentido, uma psicologia, uma vez que seu principal interesse é a alma, a mais preciosa das coisas. Nosso Senhor pesou um universo em confronto com uma alma e achou a alma mais digna de ser ganha do que o universo. Estudar almas não é nada de novo. Em toda a gama da psicologia moderna nada há escrito a respeito de frustrações, temores e ansiedades que possa ser mesmo fracamente comparado, em profundeza ou vastidão, com o tratado de São Tomás sobre as Paixões, com as Confissões de Santo Agostinho ou com o tratado de Bossuet sobre a concupiscência.
Mas, pode-se indagar, não será a alma moderna tão diferente da de épocas anteriores que falte aos antigos escritores experiência de tal fenômeno e assim nem mesmo o Evangelho poderia oferecer um remédio? Não. Não há nada de realmente novo no mundo. Há apenas os velhos problemas afetando novas pessoas. Não há diferença, exceto a de terminologia, entre a alma desiludida de hoje e as almas desiludidas que se encontram no Evangelho. O homem moderno se caracteriza por três alienações: está separado de si mesmo, de seu próximo e de seu Deus. São estas as mesmas três características do moço desiludido da terra de Gerasa.
Separação de si mesmo — O homem moderno não é mais uma unidade, mas um molho confuso de complexos e nervos. Acha-se tão desassociado, tão alienado de si mesmo, que se vê menos como uma personalidade do que como um campo de batalha, onde uma guerra civil se trava raivosa entre mil e uma antagônicas lealdades. Não há um propósito único, a todos os respeitos, em sua vida. Sua alma pode ser comparada a uma jaula na qual numerosas feras, cada qual buscando sua própria presa, rolam umas sobre as outras. Pode ser ainda comparado a um rádio ligado para várias estações. Em vez de ouvir alguma delas claramente, recebe apenas uma estática intolerável.
Se a alma frustrada é educada, possui um Verniz de desconexos pedaços de informação, sem a filosofia que os unifique. Por isso a alma frustrada pode dizer a si mesma: “Penso às vezes que há dois eus em mim: uma alma viva e um doutor em filosofia”. Tal homem projeta sua própria confusão mental no mundo exterior e conclui que, visto não conhecer a verdade, ninguém pode conhecê-la. Seu próprio ceticismo (que ele torna universal numa filosofia da vida) o repele cada vez mais para aquelas forças que rastejam nas escuras e úmidas cavernas de seu inconsciente. Muda sua filosofia, como muda de roupa. Na segunda-feira, assenta os trilhos do materialismo; na terça, lê um livro afamado, arranca os Velhos trilhos e assenta os novos de um idealista; na quarta, sua nova estrada é comunista; na quinta, os novos trilhos do liberalismo são colocados; na sexta, ouve uma irradiação e decide viajar sobre trilhos freudianos; no sábado, toma uma demorada bebida para esquecer sua viagem e, no domingo, fica a matutar na tolice do povo em ir à igreja. Cada dia tem ele novo ídolo, cada semana, novo capricho. Sua autoridade é a opinião pública. Quando esta muda, sua frustrada alma muda com ela. Não há ideal fixo, grande paixão, mas apenas uma fria indiferença pelo resto do mundo. Vivendo num estado contínuo de referência a si próprio, os “eus” de sua conversa se repetem com crescente frequência, ao achar que todos os seus semelhantes se tornam cada vez mais enfadonhos por insistirem em falar a respeito de si mesmos, em vez de falar a respeito dele.
Isolamento do próximo – Esta característica revela-se não só pelas duas guerras mundiais, num espaço de vinte e um anos, e pela constante ameaça de uma terceira; não só pelo aumento do conflito de classes e do egoísmo no qual cada homem procura apenas a sua satisfação; mas também pela quebra do homem com a tradição e a herança acumulada dos séculos. A revolta da criança moderna contra seus pais é uma miniatura da revolta do mundo moderno contra a memória de 2000 anos de cultura cristã e das grandes culturas hebraica, grega e romana que os precederam. Qualquer respeito por essa tradição é chamado de “reacionário”, dando em resultado haver-se a alma moderna transformado em uma mentalidade comentadora que julga o ontem pelo hoje e o hoje pelo amanhã. Nada é mais trágico para um indivíduo que foi sábio outrora, do que perder sua memória e nada é mais trágico para uma civilização do que a perda de sua tradição. A alma moderna, que não pode viver consigo mesma, não pode viver com seus semelhantes. Um homem, que não está em paz consigo mesmo, não estará em paz com seu irmão. As guerras mundiais não passam de sinais macrocósmicos das guerras psíquicas que se travam no íntimo das turvas almas microcósmicas. Se já não houvesse batalhas em milhões de corações, nenhuma haveria nos campos de batalha do mundo.
Numa alma alienada de si mesma, logo a desordem se segue. Uma alma que mantém uma luta dentro de si mesma, em breve manterá luta fora de si mesma contra outras. Uma vez que um homem deixa de ser prestativo a seu vizinho, começa a tornar-se uma carga para este. Basta um passo, de recusar a viver com os Outros, para recusar a viver para os outros. Quando Adão pecou, acusou Eva, e quando Caim assassinou Abel, fez a pergunta antissocial: “Serei o guardião de meu irmão?” (Gn 4,9.) Quando Pedro pecou, saiu sozinho e chorou amargamente. O pecado de orgulho de Babel terminou em uma confusão de línguas que tornou impossível a manutenção da convivência.
Nosso ódio pessoal de nós mesmos sempre se torna ódio ao próximo. Talvez seja esta uma das razões da atração básica do comunismo, com sua filosofia da luta de classes. O comunismo possui especial afinidade pelas almas que já têm uma luta travada dentro de si mesmas. Associada a este conflito íntimo, existe uma tendência a tornar-se hipercrítico: as almas infelizes quase Sempre censuram os outros, que não a si mesmas, por suas misérias. Fechadas dentro de si mesmas, estão necessariamente fechadas para os outros, exceto para criticá-los. Desde que a essência do pecado é a oposição à vontade de Deus, segue-se que o pecado de um indivíduo é forçado a opor-se a qualquer outro indivíduo, cuja vontade esteja em harmonia com a vontade de Deus. O afastamento do próximo que daí resulta é intensificado, quando se começa a viver só para este mundo. Então os bens do vizinho são olhados como algo que foi injustamente arrebatado da gente. Uma vez que o material se torna o alvo da vida, nasce uma sociedade de conflitos. Como disse Shelley: “O acúmulo de matéria da vida externa excedeu a quantidade de força para assimilá-la às leis internas de nossa natureza”.
A matéria divide, assim como o espírito une. Divida uma maçã em quatro partes e sempre haverá possibilidade de uma questão para saber a quem deve caber a parte maior. Mas se quatro homens aprendem uma oração, nenhum deles priva o outro de possuí-la, tornando-se a oração a base de sua unidade. Quando o objetivo de uma civilização consiste, não na união com o Pai Celestial, mas na aquisição de coisas materiais, há um aumento nas potencialidades da inveja, da cobiça e da guerra. Divididos, os homens procuram então um ditador que os ajunte, não na unidade do amor, mas na falsa unidade dos três Pês – Poder, Polícia e Política.
Afastamento de Deus – A alienação de si mesmo e do próximo tem suas raízes na separação de Deus. Uma vez perdido o eixo da roda, que é Deus, os raios, que são os homens, caem soltos. Deus parece bastante distante do homem moderno. Isto se deve, em grande parte, a sua própria conduta sem Deus. A Divindade sempre aparece como uma censura àqueles que não estão vivendo direito e esta censura da parte do pecador se expressa em ódio e perseguição. Existe raramente uma alma dilacerada e frustrada a criticar e a invejar o seu próximo, que não seja ao mesmo tempo um homem antirreligioso. O ateísmo organizado da hora presente é assim uma projeção do ódio de si mesmo. Nenhum homem odeia a Deus sem que primeiro odeie a si mesmo. A perseguição à religião é um sinal da indefensibilidade da atitude antirreligiosa ou ateística, pois pela violência do ódio espera ela escapar à irracionalidade do ateísmo. A forma final desse ódio à religião é um desejo de desafiar Deus e manter o seu próprio mal em face de Sua Bondade e de Seu Poder. Revoltando-se contra a existência inteira, tal alma pensa que a refutou; começa a admirar seu próprio tormento, como um protesto contra a vida. Tal alma não quererá ouvir falar de religião, com medo de que o alívio se torne uma condenação de sua própria arrogância. Desafia-a, em vez. Incapaz sempre de dar sentido à sua própria vida, universaliza sua discórdia íntima e vê o mundo como uma espécie de caos em face do qual desenvolve a filosofia de “viver perigosamente”, “Funciona como um átomo perplexo em um caos crescente empobrecido pela sua riqueza, esvaziado pela sua plenitude, reduzido à monotonia pelas suas autênticas oportunidades de variedade”.[3]
Existe tão confusa alma no Evangelho? Estará a psicologia moderna estudando um tipo de homem diferente daquele que o Divino Mestre veio redimir? Se consultarmos S. Marcos, acharemos um jovem da terra de Gerasa, descrito como tendo exatamente as mesmas três frustrações da alma moderna.
Estava afastado de si mesmo, pois quando Nosso Senhor perguntou: “Qual é o teu nome?”, o jovem respondeu: “Meu nome é Legião, porque somos muitos” (Marcos 5,9). Note o conflito de personalidade e a confusão entre “meu” e “somos muitos”. Está claro que ele é um problema para si mesmo, entorvelinhada ressaca de mil e uma ansiedades antagônicas. Por isso chamou a si mesmo de “Legião”. Nenhuma personalidade dividida é feliz. O Evangelho descreve esta infelicidade ao dizer que o jovem estava “gritando e ferindo-se com pedras” (5,5). O homem confuso é sempre triste. É seu próprio pior inimigo, uma vez que utiliza indevidamente o intento da natureza para sua própria destruição.
O jovem estava também separado de seus semelhantes, pois o Evangelho assim o descreve: “E sempre de dia e de noite andava pelos sepulcros e pelos montes”. (Marcos 5:5). Era uma ameaça para os outros homens. “Pois tendo sido muitas vezes amarrado com grilhões e cadeias, havia rebentado as cadeias; despedaçado os grilhões e ninguém podia dominá-lo”. (Marcos 5,4). O isolamento é uma qualidade peculiar ao ateísmo, cujo habitat natural é afastado dos outros homens, entre os túmulos, na região da morte. Não há cimento no pecado. Sua natureza é centrifugal, divisiva e dilacerante.
Estava separado de Deus, pois quando viu o Divino Salvador, gritou: “Que tens Tu comigo, Jesus Filho de Deus Altíssimo? Eu Te esconjuro por Deus que me não atormentes”. (Marcos 5,7). Quer isto dizer: “Que temos nós em comum? Tua presença é a minha destruição”. É um interessante fato psicológico o ódio das almas frustradas contra a divindade e seu desejo de separar-se dela. Todo pecador oculta-se de Deus. O primeiro assassino disse: “E eu me esconderei da Tua face e serei vagabundo e fugitivo na Terra” (Gn 4,14).
Parece, afinal de contas, que a alma moderna não é lá tão moderna assim. Como o moço de Gerasa, está afastada de si mesma, de seu próximo e de seu Deus. Mas há, não obstante, uma diferença: o jovem de Gerasa era pré-cristão, a alma moderna é pós-cristã. Fundamental como é a distinção, deixa ainda de pé o problema: Como tratar com o homem de hoje?
Uma coisa é certa: a alma moderna não conseguirá encontrar paz enquanto estiver aprisionada dentro de si mesma, remoendo a escória e o sedimento de seu pensamento inconsciente, presa de forças inconscientes cuja natureza e existência glorifica. É interessante que Freud, que julgava tal Solução de auto-concentração a verdadeira, tenha tomado como epígrafe de um de seus primeiros trabalhos, a frase: “Se não puder curvar os deuses lá no alto, lançarei o inferno todo em algazarra”. Não é a resposta! Destronando os valores conscientes do mundo, lança-se, de fato, o inferno em algazarra e acaba-se em neuroses ainda mais complicadas.
A verdadeira resposta é libertar o homem de sua prisão íntima. Ficará louco se tiver de contentar-se em perseguir a cauda de seu próprio pensamento, sendo ao mesmo tempo perseguidor e perseguido, lebre e lebréu. A paz da alma não pode provir do próprio homem, da mesma maneira que não pode ele erguer-se, puxando suas próprias orelhas. O auxílio deve vir de fora e não deve ser auxílio meramente humano, mas divino. Nada, fora de uma invasão divina que restaure o homem na realidade ética, pode tornar o homem feliz, quando está só e na escuridão.
O desiludido jovem de Gerasa só ficou curado quando Nosso Senhor o restaurou para si mesmo, para seu próximo e para Deus. Então recuperou ele o objetivo da vida. Não mais se chamou “Legião” e o Evangelho o descreve “sentado, vestido e são do juízo” (Marcos 5,15). Na nossa linguagem, estava ele se sentindo “como ele próprio”. Em vez de estar isolado da Vida da comunidade, nós o vemos restaurado para a fraternidade por Nosso Senhor, Que lhe disse: “Vai para tua casa, para os teus”. (Marcos 5,19). Finalmente, em vez de odiara Deus, nós vemos que ele começa a “publicar pela Decápole quão grandes coisas lhe tinha feito Jesus: e todos se admiravam” (Marcos 5,20). O mesmo se dá com o homem de hoje. Se a alma moderna está demasiado atormentada por temores e ansiedades para vir a Deus, graças à beleza de uma estrela, poderá então chegar até Ele graças à solidão de um coração, dizendo com o salmista: “Desde o mais profundo clamei a Ti, Senhor”. (Salmos 129). Se não pode encontrar Deus por meio do argumento do movimento, pode alcançá-lo por meio de seus próprios desgostos — ai! – e mesmo com o cabo de seus pecados.
A questão importante não é: “O que será de nós”, mas “O que seremos nós”. A bomba atômica tirou-nos das mentes a existência e a sua finalidade. Contudo, é ainda hoje Verdadeiro que não é tão importante saber como sair do tempo, quanto saber como se está na eternidade. A bomba atômica nas mãos de um Francisco de Assis seria menos perigosa do que uma pistola na mão de um estrangulador. O que faz a bomba perigosa não é a energia que ela contém, mas o homem que a utiliza. Por conseguinte, é o homem moderno quem deve ser refeito. A menos que consiga parar as explosões dentro de seu próprio pensamento, provavelmente - armado com a bomba – prejudicará o próprio planeta, como advertiu Pio XII. O homem moderno trancou-se na prisão de seu próprio pensamento e somente Deus pode pô-lo em liberdade como fez Pedro sair de sua prisão. Tudo quanto o próprio homem deve fazer é contribuir com o desejo de libertar-se. Deus não faltará. Só o nosso desejo humano é que é fraco. Não há razão para desencorajamento. Foi o cordeiro balindo nas moitas, mais do que O rebanho nas tranquilas pastagens, que atraiu o Coração e a Mão prestante do Salvador. Mas a recuperação da paz por meio de sua Graça implica uma compreensão da ansiedade, a grave queixa do homem moderno aprisionado.
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1. C. G. Jung, Modern Man in Search of a Soul, p. 135.
2. Harry Slochower, No Voice is Wholly Lost, p. 316. Creative Age Press, Inc., 1945.
3. Refere-se a passagem do endemoniado geraseno ou gadareno, conf. Mc 5,1-20 (N. E.).
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Fonte:
SHEEN. Fulton John. A Paz da Alma 2ª ed. São Paulo: Molokai, 2018, pp. 9-24.
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