Um texto necessário de Igor Andrade
(Frat. Laical S. Próspero)
ESCREVO COMO MERO professor de filosofia sobre este assunto tão importante nestes tempos: a honestidade intelectual. A honestidade é uma virtude muito admirada; quem é desonesto é visto com maus olhos por qualquer um – porém, muitos, infelizmente, pensam nela como algo meio material. Para o vulgo, ser honesto consiste somente em entregar o troco certo, pagar as contas em dia e não roubar os cofres públicos.
Essa honestidade é importante, mas venho falar de uma mais importante ainda (porque mais importante que a matéria é a alma, da qual a razão e o intelecto são parte).
O homem é repleto de preconceitos desde a infância, e a biologia nos ensina que é graças a estes preconceitos que chegamos, através da História, até este estado de permanência e perpetuação da espécie humana – a palavra “preconceito”, aqui, deve ser bem entendida como um conceito prévio que se formula sobre algo ou alguém antes de conhecê-lo e de formular de fato um conceito definitivo e adequado após conhecê-lo.
Ponha-se o leitor no lugar de um homem pré-histórico que vivia numa civilização tribal, nas matas, e ainda não modificara o meio ambiente. Sua casa rústica servia apenas de abrigo do frio, das feras e de outros homens. Ao longo das gerações, esta tribo passou por diversas turbulências: ataques de animais, guerras contra outras tribos por alimento, água, território, etc. Assim, formou-se no imaginário comum que tudo aquilo que não pertencesse à tribo oferecia uma ameaça aos seus membros. Isto é, a tribo formou um pré-conceito sobre tudo aquilo de que não tinham um conceito formado. Um rugido perto, para eles, com certeza era uma fera que os atacaria; um grito humano era sinal de perigo, e assim por diante.
Aclarada a importância dos pré-conceitos (que são como que uma proteção do desconhecido), falemos do problema que geram: a ignorância comum.
Ponha-se o leitor, uma vez mais, no lugar de um outro membro da mesma tribo, porém algumas gerações à frente. Sua tribo cresceu, houve contato com outras tribos, formaram-se alianças, instauraram-se castas, desenvolveram-se técnicas. Finalmente era possível conhecer o que estava fora da tribo. Porém, estavam tão arraigados os pré-conceitos históricos que todo aquele que quisera conhecer mais além da mera realidade local era tido como louco, imprudente, desocupado. O preconceito, quando necessário para o bem (como no caso supracitado), é útil, mas quando cessa sua necessidade, torna-se um impedimento para o aprendizado do homem.
Assim aconteceu com Tales, o pai da filosofia ocidental. Tales fora habitante de Mileto, região da atual Turquia, e era fascinado pelo céu e pela natureza. Foi o primeiro a buscar a arché, o princípio das coisas. Como ficava mais tempo olhando as estrelas do que fazendo negócios comerciais, os demais habitantes de Mileto diziam que era um inútil, que aquilo não tinha futuro e coisas semelhantes. Conta-se que, certa vez, andando pelos campos, Tales estava tão distraído buscando no céu uma explicação para a realidade que caiu no fundo de um poço e lá ficou o resto da noite, preso. Quando o encontraram, caçoaram dele, provavelmente dizendo que deixasse daquilo porque os deuses cuidavam de tudo e que não havia mais nada a saber além de transações comerciais. “Você é um inútil, Tales, uma vergonha para sua família e para nós, habitantes desta rica cidade”, provavelmente lhe disseram.
Para dar uma lição aos seus concidadãos, segundo a narrativa de Diógenes Laércio, teria Tales empreendido diversos cálculos e observações dos astros, chegando à conclusão de que, naquele ano, a colheita de azeitonas seria maior que o normal.
Comprou, então, todos os moinhos da região. “Tales enlouqueceu mesmo, está comprando moinhos fora de época de colheita”, provavelmente disseram muitos. Mas, quando chegou a época certa, com a superprodução de azeitonas, não tinham onde deixá-las, e então tiveram que pagar a Tales a quantia que ele bem exigiu para que usassem os seus moinhos, o que fez dele o homem mais rico da região.
Depois disso, Tales foi deixado em paz e tido por todos como sábio. O povo de Mileto reconheceu que seus preconceitos eram vãos e teve a honestidade intelectual de dizer “Tales, ajude-nos, você conhece mais a natureza do que nós. Por favor, ensine-nos o que sabe!”.
Esse é um exemplo de que o preconceito pode atrapalhar no conhecimento das coisas – e como é importante a honestidade intelectual. Tales fora o primeiro a conhecer melhor os astros, a geometria e a natureza de modo geral. Foi o primeiro do ocidente que postulou a imortalidade da alma (algo extremamente importante para as discussões sobre a dignidade humana nos tempos atuais); foi ele quem firmou paz entre Ciro e Mileto; foi ele quem por primeiro dividiu o ano em quatro estações e que almejou explicar o princípio das coisas.
Sua explicação não é das melhores (segundo ele, a água é o princípio de tudo e está presente em tudo), porém o mérito está não na resposta, mas no fato de ter feito a pergunta (qual é o princípio das coisas?).
Hoje em dia, vergonhosamente, vemos isso impregnado na forma mentis vulgar. Não há, no vulgo, a honestidade de dizer “não sei”. Ainda muito pior, parece que a “elite” intelectual também não sabe dizer “não sei” quando realmente não sabe alguma coisa.
Recentemente, o candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro, participou de uma sabatina no programa "Roda Viva", da TV Cultura. Nenhum dos jornalistas que o entrevistou teve honestidade intelectual de conceder ao entrevistado o benefício da dúvida, algo como admitir para si que “talvez ele não seja tão ruim quanto eu penso”. Manteve-se a práxis preconceituosa marxista: "Se qualquer um disser algo que contrarie aquilo que eu penso sobre esses assuntos, com certeza é um 'burguês' que deve ser superado a qualquer custo pela dialética".
Que um marxista pense assim não é novidade alguma, pois seguem cegamente o seu profeta (Hegel), que anuncia seu deus: Marx, “aquele que salva”.
O problema é que, do outro lado, da parte da chamada “direita”, o modus operandi foi exatamente o mesmo. De toda a entrevista, o único acerto foi quando um jornalista disse que “Jesus também foi um refugiado”. E o que fez o pessoal da “direita”? Ignorou a narrativa bíblica (na qual dizem crer) e taxou o jornalista de idiota. Não nego que, de fato, aquele jornalista seja um idiota, mas a informação em questão é verdadeira, não podemos negar isto.
Na época em que Jesus nasceu, Judá era governada por um rei, Herodes (conivente com os romanos, mas rei); era um reino independente do Egito (que, embora província do Império Romano, era um país separado de Judá, com língua, cultura e leis diferentes), aonde a Sagrada Família buscou refúgio quando o Rei mandou matar todos os meninos com menos de um ano de idade. Assim, buscar refúgio em outro país tornam S. José, a Virgem Maria e Jesus Menino refugiados, e ponto final.
É evidente que o jornalista quis comparar a situação da Sagrada família à dos muçulmanos de hoje em dia (uma comparação totalmente absurda); assim, nesse caso específico, a melhor argumentação é a mais honesta, isto é, aquela que aponta para a verdade dos fatos: uma coisa não tem absolutamente nada a ver com outra, e o problema da migração em massa dos nossos tempos envolve uma série de graves problemas totalmente diversos e que nada tem a ver com o apresentado na narrativa evangélica. Mesmo assim, não podemos negar os fatos na tentativa de ter razão: só assim é que poderemos separar um fato da "forçação de barra" que se faz usando de um fato.
É preciso ter a honestidade intelectual para admitir erros, equívocos e acertos – nossos e de nossos opositores. Por suposto, honestidade intelectual não significa fazer crítica cega ao que comumente se tem por sabido. Crítica cega àquilo que já é conhecido não passa de petulância e de idiotice.
Honestidade intelectual teve Sócrates, que reconheceu saber unicamente que nada sabia. Também a tiveram boa parte dos filósofos. Tiveram-na os Padres Capadócios, que deixaram claro que devemos estudar os pagãos, porque estes, embora tivessem errado quanto à religião, acertaram em muitos outros pontos. Honestidade intelectual teve Santo Tomás de Aquino, em cuja Suma Teológica diversas vezes citou muçulmanos (Avicena e Averróis), mostrando que eles também acertam. Honestidade intelectual teve Santo Agostinho, que publicou suas Retratações, obra na qual reconhece todos os erros filosóficos que cometera até então.
Tenhamos o bom senso de saber que não sabemos de tudo para que, antes de criticarmos o desconhecido, aprendamos e o conheçamos. Essa honestidade intelectual é o mínimo necessário para aprender – é a filha mais velha da Humildade. Saber que não se sabe é o primeiro passo para aprender.
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