Progredir na vida espiritual – parte II


DO CAPÍTULO PRECEDENTE (leia) pode-se inferir que eu fiz no pensamento uma espécie de mapa da vida espiritual. Dividi-a em três regiões de extensão bastante desigual e de interesse muito diverso. Primeiro, temos região dos principiantes, fase tão maravilhosa que ninguém pode abranger na mente todos os encantos que contém, senão depois de tê-la superado e poder olhar para trás. Em seguida, dilata-se a vasta extensão do deserto cheio de tentações, lutas e cansaços – lugar de trabalho e de sofrimento com anjos bons e maus por todos os lados. Os caminhos são incertos e escorregadios, e Jesus com sua Cruz encontra-nos em cada esquina. Essa região é dez ou doze vezes mais extensa que a primeira.

Temos, pois a região das montanhas belas, arborizadas, banhadas d'água, porém pedregosas, selvagens e sujeitas a tempestades horríveis e a esses súbitos escurecimentos da natureza que caracterizam os distritos montanhosos. É terra de alta espiritualidade, das crucifixões próprias, dos místicos, das alturas do desapego sobre-humano e do altruísmo, cuja atmosfera rarefeita só as almas elevadas podem respirar.

Conheci uma alma que, saindo da região dos principiantes, acaba de entrar nas grandes regiões do deserto, cujas longas planícies de areia estéril ligam os verdes campos dos principiantes às montanhas arborizadas das almas longamente provadas e bem mortificadas. Deus chama alguns a Si nos primeiros fervores, outros, só depois de amadurecidos na Graça e chegados ao cume da montanha. A maior parte morre no deserto, nesse ou naquele ponto da peregrinação. Naturalmente há só uma hora para cada qual morrer, e é a hora exata em que Deus manda que a morte nos leve.

Como, porém, a grande maioria dos homens devotos morre quando ainda está no deserto central, é desse deserto que quero falar: o deserto da paciência longa e perseverante nas práticas humildes da sólida virtude.

As pessoas que aspiram à perfeição, embora em grau mínimo, constituem a porção escolhida da Criação de Deus, e lhe são caras. Tudo, portanto, que se lhes refere é de suma importância. Por isso carecem de certos sinais pelos quais possam avaliar o progresso que estão fazendo na vida espiritual. Muitas vezes, porém, eles tomam como sinal de progresso coisas que, em si, nada provam, e assim caem em ilusões que as levam a desvios fatigantes, para retornarem novamente ao caminho à grande distância do lugar de onde se desviaram. Esses falsos sinais formam o assunto do presente capítulo. Considerá-los é de máxima importância, tanto mais que nos ensinam diversos fatos sobre a vida espiritual que muito nos interessam. Duas tentações opostas cercam a alma nessa fase da viagem. Ora é atacada por uma, ora por outra, conforme as disposições do gênio e o tipo do caráter. Essas tentações são o desânimo e a presunção, e a nossa principal ocupação nesse período consiste em acautelar-nos contra ambos.

O desânimo é a tendência para desistirmos de toda tentativa de vida devota, tanto pelas dificuldades que a cercam como pelas nossas já numerosas falhas em praticá-las. Falta-nos coragem e, em parte por mau humor, em parte por desconfiar já da nossa habilidade em perseverar, tornamo-nos primeiro queixosos de Deus, aborrecidos com Ele, para depois relaxarmos nos esforços em relação à mortificação e a tudo que fazemos para agradar-lhe.

É como o pecado do desespero, ainda que na realidade não seja pecado algum. É uma espécie de sombra de desespero que há de nos induzir a cometer inúmeros pecados veniais desde o momento em que cedemos a ele. Prova que contávamos demais com a nossa própria força e tínhamos, de nós mesmos, uma opinião por demais alta e injustificável. Fôssemos verdadeiramente humildes, ficaríamos admirados de não ter procedido ainda pior, em vez de ficarmos desapontados de não ter procedido melhor. Muitas almas são chamadas à perfeição e falham, unicamente pelo mal imenso que lhes causa o desânimo.

As pessoas que almejam a espiritualidade são especialmente sujeitas ao desânimo, por causa da grande sensibilidade que têm. Sua atenção firma-se, como nunca até então se firmara, em dois pontos: pequenas regras e obrigações e motivos interiores; duas coisas que as tornam excessivamente sensíveis. A consciência, sob a ação do Espírito Santo, torna-se tão fina e delicada que sente o choque mesmo de leves enfermidades, das quais antigamente nem se dava conta. E não somente a percepção do pecado se aviva, como também a sensibilidade da dor que o pecado inflige é mais sutil.

A obra difícil e o trabalho penoso em que estão empenhadas aumenta-lhes mais a sensibilidade, sobretudo porque ainda estão longe de receber auxílio visível dos que a cercam e que, ao contrário,
são taxadas de entusiastas e indiscretas, de afetadas, mesmo que sejam pessoas boas a seu modo, e não ao modo de Deus.

Além disso, a piedade nova nunca é criteriosa. E como havia de ser, se unicamente a experiência pode lhe dar critério? O mundo queixa-se dos erros dos principiantes na piedade, não percebendo
que erram tão somente porque ainda não estão tão desapegados do mundo e avessos ao mundo quanto serão mais tarde.

Um desses erros mais comuns é exagerar as próprias faltas. Isso leva ao desânimo. Aspiram demais a elevados modelos. Querem fazer, nada menos, como os santos mais heroicos e, quando já fizeram tudo quanto puderam –, o que para eles é muito –, continuam tão abaixo do almejado que se sentem desapontados, frustrados...

Desanimados. Haverá algo mais penoso para o espírito e o caráter do que invariavelmente perder o jogo? Poderá, porém, esperar outra coisa quem resolveu se assemelhar ao Crucificado?

Mas o resultado desse desânimo é nos tornar lânguidos e tristes, e nada nos poderia acontecer de pior, pois tal coisa impossibilita qualquer ação realmente valorosa de nossa parte. Se, num exercício de luta, quem estiver subjugando o adversário de repente se entrega à moleza, perde a partida, pois a vitória dependia do ação dos músculos e firmeza dos gestos. Nos campos de batalha da Antiguidade, um exército podia derrotar outro muito superior em número e em armas, pela confiança e convicção da vitória, que constitui grande força moral e se reflete nos resultados concretos.

Assim, a languidez e a tristeza, sobretudo no começo da jornada, são fatais para nós. Nessas duas coisas é que aparece o veneno do desânimo.

Quanto à presunção, creio que é muito menos comum que o desânimo, ao menos entre os que verdadeiramente buscam a santidade, porém igualmente venenosa . Sobre ela falaremos na continuação desta.

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** Baseado na obra imortal do Padre Frederick Willian Faber, 'Progresso na vida espiritual' (Vozes, 1939).
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