Igreja Católica à beira de um cisma? Muitos creem que sim, inclusive o Arcebispo Viganò


CADA VEZ MAIS bispos ditos "conservadores" (leia-se fiéis à Tradição), em particular nos Estados Unidos, manifestam-se preocupados pelo fato de o Papa Francisco preocupar-se quase que exclusivamente com problemas políticos, causas humanitárias envolvendo migrantes e "excluídos", desigualdades sociais e questões ecológicas, dando pouquíssima ou praticamente nenhuma atenção à Doutrina da Igreja, especialmente nos pontos sobre a família e a moral cristã, em um mundo que precisa desesperadamente ser (re)conduzido nesse sentido. Alguns desses clérigos de alto escalão chegaram a pedir a saída do Papa argentino, argumentando que ele semeia a confusão entre os crentes, ao invés de conduzi-los pelo reto Caminho que é Cristo.

    No ano 2011, o antecessor Bento XVI nomeou Núncio Apostólico nos Estados Unidos o arcebispo Carlo Maria Viganò, que desde 2016 voltou à vida privada. Viganò destaca-se entre esses que, pelo bem da Igreja, tentam sem sucesso admoestar Francisco. Com admirável persistência, o Arcebispo tem denunciado as heresias perpetradas no seio da Igreja desde as últimas décadas, as quais avolumaram-se a partir do Concílio Vaticano II (CVII) e avançaram para além de qualquer limite do tolerável no pontificado atual.

    Para Viganò, não se trata meramente de uma má interpretação do Concílio, mas sim do Concílio como tal. De fato, em suas últimas intervenções públicas, Viganò rejeitou como "tímida" e "vazia" a pretensão de alguns em corrigir o CVII apenas em determinados pontos, naqueles textos flagrantemente heréticos, como é o caso da declaração “Dignitatis humanae” sobre a liberdade religiosa. O que deveria ser feito, segundo Viganò, é esquecer totalmente esse Concílio, de uma vez por todas. Ao mesmo tempo e inevitavelmente, seria preciso "expulsar do sagrado recinto” todos os herdeiros de Judas, as autoridades da Igreja que, depois de serem identificadas como culpadas de tão graves erros e sendo plenamente aptas consertar o grande estrago pelo bem das almas, nada fazem. Antes, trabalham incessantemente numa piora da situação já gravíssima.

    Sempre segundo Viganò, o que desnaturalizou a Igreja a partir do Concílio foi essa espécie de “religião universal teorizada em primeiro lugar pela maçonaria”, cujo braço político é um governo mundial que poderes “sem nome e sem rosto” perseguem como objetivo, e que agora inclusive se aproveitam da pandemia do Coronavírus.

    No último 8 de maio, os cardeais Gerhard Müller e Joseph Zen Ze-kiun assinaram um chamado de Viganò contra essa iminente “Nova Ordem Mundial”. E o próprio Presidente dos Estados Unidos Donald Trump respondeu a uma carta aberta do mesmo Viganò, que o invocou a lutar  contra o poder das trevas que atuam tanto no “deep State” como na “deep Church”.

    Viganò lamenta que as tentativas de correção aos excessos conciliares tentadas por Bento XVI, o qual implorava por uma "hermenêutica da continuidade", tenham fracassado miseravelmente. O problema talvez, esteja justamente no fato de que o Papa alemão apenas implorava, pois, em que pesem todas as suas inegáveis qualidades, ele falhou desde sempre em impor-se pela autoridade de Sumo Pontífice que legitimamente recebera.

    A hermenêutica da continuidade – ou, mais exatamente, “a hermenêutica da reforma, da renovação na continuidade do único sujeito Igreja” – é, de fato, a pedra chave da interpretação que Bento XVI deu do Concílio Vaticano II em seu discurso à Cúria vaticana na vigília de Natal de 2005, primeiro ano do seu pontificado. Aí, o agora Papa emérito recordou que também depois do Concílio de Niceia (ano 325), a Igreja foi sacudida por enormes conflitos, os quais fizeram com que São Basílio escrevesse:

O grito rouco dos que pela discórdia levantam uns contra os outros, as falas incompreensíveis, o ruído confuso dos gritos ininterruptos enchera quase toda a Igreja, tergiversando, por excesso ou por defeito, a reta doutrina da fé...

    Verdade. Mas na comparação com aquilo que vivemos hoje, desgraçadamente, percebemos que estamos em desvantagem: já não contamos mais com um Santo Atanásio que defenda a Tradição sem medo de ser excomungado, exilado ou mesmo assassinado por sua adesão incondicional à Verdade do Evangelho. Mas por que as repercussões do Vaticano II foram tão conflitivas? A resposta de Bento XVI é que tudo dependeu de sua “hermenêutica”, isto é, da sua chave de leitura e de aplicação. Segundo ele, o conflito surgiu porque, desde antes do Concílio, passando por ele e chegando até os nossos dias, “duas hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram entre si”. Por um lado, houve uma “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura” e, pelo outro, uma “hermenêutica da reforma, da renovação dentro da continuidade do único sujeito-Igreja”.

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    Segundo a primeira hermenêutica, seria preciso seguir dando espaço “aos impulsos para o novo”, os quais estariam implicados nos texto. Porém, com isso, objetou o Papa, “ignorou-se em sua raiz a natureza de um Concílio como tal. Desta maneira, se o considera como uma espécie de Assembleia Constituinte, que elimina uma Constituição antiga e cria uma nova”, quando na realidade “a Constituição essencial da Igreja vem do Senhor”; e os bispos devem ser, simplesmente, seus “administradores” fiéis e sábios.

    Até aqui, Bento XVI atribuiu a hermenêutica da descontinuidade à corrente progressista da Igreja. Porém, mais adiante no discurso, analisando a fundo a vontade do Concílio de “determinar de maneira nova a relação entre a Igreja e a Idade Moderna”, afrontou também a questão defendida desde sempre não pelos progressistas, mas pelos tradicionalistas, alguns dos quais chegaram ao ponto de romper com Roma, como fizeram os seguidores de Marcel Lefebvre e como hoje Viganò parece estar a ponto de fazer. É a questão da liberdade religiosa, sobre a qual se pronunciou a declaração conciliar “Dignitatis humanae”. Uma declaração a qual Viganò repudia com veemência: “Se a Pachamama pôde ser adorada em uma igreja, devemos isso à Dignitatis humanae”.

    De fato, é inegável que sobre a liberdade religiosa o Concílio Vaticano II marcou uma clara descontinuidade, para não dizer uma verdadeira ruptura com o ensinamento ordinário da Igreja – não um ensinamento do século XIX e início do XX, como querem fazer crer os partidários da "diversidade" e da "abertura", que tanto desejam ver "uma Igreja em saída" (sabe-se lá para onde), mas inegavelmente desde os tempos dos Apóstolos.

    Bento XVI, reconheceu e fez seu o decreto sobre a liberdade religiosa, como “um princípio essencial do Estado moderno”, para que, no seu entendimento, se retomasse novamente “o patrimônio mais profundo da Igreja”, e o “do próprio Jesus” e “dos mártires da Igreja primitiva”, que “morrem pela liberdade de professar a própria fé, uma profissão que nenhum Estado pode impor, mas sim que somente pode se fazer própria com a graça de Deus, em liberdade de consciência”.

    “Precisamente neste conjunto de continuidade e descontinuidade, em diferentes níveis consiste a natureza da verdadeira reforma”, disse o papa Ratzinger naquele discurso. “O Concílio Vaticano II, com a nova definição da relação entre a fé da Igreja e certos elementos essenciais do pensamento moderno, revisou ou inclusive corrigiu algumas decisões históricas, porém nesta aparente descontinuidade manteve e aprofundou sua íntima natureza e sua verdadeira identidade”. Com otimismo, dizia Bento XVI naquela ocasião:

Também no nosso tempo a Igreja permanece um 'sinal de contradição' (Lc 2, 34). Não sem motivo, o papa João Paulo II, ainda Cardeal, tinha dado este título aos Exercícios Espirituais pregados em 1976 ao Papa Paulo VI e à Cúria Romana. Não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em relação aos perigos e aos erros do homem. Era, porém, realmente a sua intenção deixar de lado contradições errôneas ou supérfluas, para apresentar a este nosso mundo a exigência do Evangelho em toda a sua grandeza e pureza. O passo dado pelo Concílio em direção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como 'abertura ao mundo' pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas. A situação que o Concílio devia enfrentar é comparável aos acontecimentos das épocas precedentes. São Pedro, na sua primeira Carta, tinha exortado os cristãos a estar sempre prontos a responder (apo-logia) a quem quer que perguntasse o logos, a razão da sua esperança (3,15).
[Discurso do Papa Bento XVI aos Cardeais, Arcebispos e Prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos de Natal. Quinta-feira, 22 de Dezembro de 2005]

    Esperança, parece que Bento XVI tinha, tanta que o fez até transparecer certa ingenuidade. Nos nossos dias, Francisco, por sua vez, tem respondido repetidamente sobre a possibilidade de um novo cisma na Igreja. Em 2019, em uma de suas temerárias conversas com jornalistas durante seus vôos, quando de retorno a Roma após visitar Moçambique, Madagascar e Ilhas Maurício, defendeu-se dizendo que tudo o que faz e que provoca polêmicas é inspirado em João Paulo II. Disse também não temer um cisma. "Rezo para que não haja cisma, mas não tenho medo", declarou à Imprensa, no avião. E admitiu: "As críticas não vêm só dos americanos", mas provêm também "de outras partes e também da própria Cúria (governo do Vaticano)". Mas "as coisas sociais que digo são as mesmas que disse João Paulo II. As mesmas coisas. Eu as copio", insistiu.

O que virá pela frente, só a Deus pertence. Rezemos e façamos penitência. E mantenhamo-nos firmes na fé.

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