HÁ ALGUM TEMPO, a professora Cíntia Chagas (Letras pela UFMG) classificou como “uma espécie muito estranha de esquizofrenia linguística” o uso do chamado “gênero neutro”, que quer eliminar as referências masculina e feminina nas palavras dos idiomas, trocando, por exemplo (no português), os artigos ou as letras finais “a” e “o” pelo “e” ou pelo “x”, como em: “Todes estão convidades para a festa...”, ou “Xs canditatxs devem comparecer ao local no dia...”. De modo semelhante, a Académie Française (equivalente francesa da Academia Brasileira de Letras) classificou a linguagem de “gênero neutro” como “uma aberração pseudoinclusiva”.
O problema, todavia, é ainda muito maior e pior do que uma mera ameaça à coerência da linguagem, e não são novas as tentativas de se mudar o jeito de pensar de uma sociedade por meio da mudança das palavras, como denunciou com maestria o Mons. Dr. Henri DELASSUS (1836–1921) há mais de um século. O texto que publicamos a seguir é um trecho de sua obra antológica, “La conjuration antichrétienne: le temple maçonnique voulant s’élever sur les ruines de l’Église Catholique” (1910). Não é de hoje que um grande meio empregado para corromper as ideias seja perverter a linguagem. Segue.
A Franco-maçonaria soube fazer adotar pelo público a palavra laicização no lugar de descristianização; secularização no lugar de separação entre a ordem religiosa e a ordem civil, na família e na sociedade; neutralidade escolar no lugar de ensino ateu; separação entre Igreja e Estado no lugar de ateísmo no governo e nas leis; denúncia da Concordata no lugar de espoliação da Igreja; desafetação no lugar de confisco; leis vigentes no lugar de decretos arbitrários e ilegais; tolerância em lugar de licenciosidade ou da licença dada aos piores erros, etc., etc. – Ela construiu as palavras clericalismo, inalienabilidade etc.: são espantalhos; seduções, como as palavras liberdade, igualdade, fraternidade, democracia, etc. “São”, dizia Bonald, “expressões de sentido dúbio, nas quais as paixões encontram primeiro um sentido[...]: as paixões atêm-se ao texto e rejeitam o comentário”[1].
A Importância das palavras para a revolução anticristã
“Apesar dos ensinamentos da razão e da evidência produzida por nossas catástrofes”, disse Le Play:
“...essa fraseologia que embrutece fornece alimento diário às tendências revolucionárias encarnadas na nossa raça. Sob essa influência, penetram cada vez mais, nas camadas inferiores da sociedade, o desprezo pela Lei de Deus, o ódio às superioridades sociais e o espírito de revolta contra toda autoridade.”
(cf. Réforme Sociale, t. IV)
Mazzini não pensava diferente sobre esse ponto. Dizia:
“As discussões eruditas não são necessárias, nem oportunas. Há palavras regeneradoras [no sentido maçônico] que contêm tudo o que é necessário repetir frequentemente ao povo: liberdade, direitos do homem, progresso, igualdade, fraternidade. Eis o que o povo compreenderá, sobretudo quando opusermos a estas as palavras: despotismo ou fascismo (qualquer semelhança com o que ocorre hoje não é mera coincidência), tirania, etc.”.[2]
O sentido inteiro das palavras liberdade, igualdade, progresso, espírito moderno, ciência, etc., que reaparecem sem cessar nos discursos e nos artigos dos políticos e nas profissões de fé dos candidatos patrocinados pelas lojas maçônicas, é revolução, destruição da ordem social, [...] o desaparecimento de toda autoridade que limite a “liberdade”, a destruição de toda hierarquia que rompa a “igualdade”, o estabelecimento de uma nova ordem de coisas através da “fraternidade”, na qual todos os direitos e todos os bens serão comuns.
Os iniciados, ao pronunciarem essas palavras, sabem que estão anunciando um programa contra as leis de Deus e seus representantes na Terra; sabem que estão exprimindo o conceito de Estado social cuja fórmula foi dada por J.-J. Rousseau. Os outros (os 'idiotas úteis'), repetindo-as tolamente, preparam para a aceitação desse Estado social aqueles que a franco- maçonaria não poderia atingir diretamente. De que é a direção suprema da maçonaria que escolhe essas palavras, que as lança e que encarrega seus adeptos de propagá-las, não há a menor dúvida. – “Vamos começar”, tinham dito as Instruções secretas, “a pôr em circulação os princípios ‘humanitários’”. Reforma, melhoramento, progresso, república fraterna, harmonia da humanidade, regeneração universal...: todas essas palavras enganosas são lidas nas Instruções.
Picollo-Tigre acrescenta a “felicidade da igualdade social” e os “grandes princípios da liberdade”. Nubius acrescenta a “‘injusta repartição’ dos bens e das honras”. Resumindo tudo, Gaétan regozija-se de ver o mundo lançado no caminho da democracia. No relatório do 3° Congresso das Lojas do Leste, em Nancy, 1822, lê-se:
“Nos últimos graus [da hierarquia maçônica], está condensado um trabalho universal de uma grande profundidade. Não seria desses cumes que nos chegam as palavras misteriosas que, partidas não se sabe de onde, atravessam às vezes as multidões em meio a uma grande convulsão, e as levanta para a felicidade(!) da humanidade? É de notar que a maçonaria se serviu da língua francesa para forjar suas fórmulas revolucionárias.”[3]
Essas fórmulas pérfidas foram criadas há dois séculos. Hoje, o que está mais em voga, juntamente com “clericalismo” (tão atacado por Bergoglio-Francisco), é “ciência”, “democracia” e “solidariedade”: a “ciência” contra a Fé, a “democracia” contra toda hierarquia religiosa, social e familiar; a “solidariedade” dos plebeus contra todos os que opõem obstáculo ao livre usufruto dos bens do mundo, os ricos que os possuem e os padres que proíbem a injusta cobiça; “solidariedade” também entre todos os povos que, de uma extremidade à outra do mundo, se devem auxiliar mutuamente para quebrar o “jugo” da propriedade, de toda autoridade e da Religião.
Acima de todas essas palavras, reina há um século a divisa: “Liberdade, igualdade, fraternidade”. A grande seita fez com que ressoasse por toda parte, conseguiu inscrevê-la nos edifícios públicos, nas moedas, nos atos da autoridade legislativa e civil. [...]Weishaupt[4] e os seus disseram abertamente o que pretendiam tirar dessa fórmula: primeiro a abolição da Religião e de toda autoridade civil; depois a abolição de toda hierarquia social e de toda a propriedade. Eis o que essas três grandes palavras dizem aos iniciados; eis o que eles têm no pensamento; eis aonde querem nos fazer chegar. Fizeram com que as palavras fossem adotadas: pelas palavras insinuam as ideias, e as ideias preparam o caminho para os fatos.
Não devemos, então, espantar-nos se, por ocasião da admissão nas lojas, os postulantes ao carbonarismo devem dizer, no juramento a que são obrigados:
"Juro empregar todos os momentos de minha existência em fazer triunfar os princípios de liberdade, de igualdade, de ódio à tirania, que constituem a alma de todas as ações secretas e públicas da Carbonara. Prometo propagar o amor a igualdade em todas as almas sobre as quais me for possível exercer alguma ascendência. Prometo, se não for possível restabelecer o reino da liberdade sem combate, fazê-lo até à morte".
(cf. Saint-Edme [Edme Theodore Bourg], Constitution et Organisation des Carbonari, apud DELASSUS, p. 279)
Eis o dever bem marcado, e eis bem traçadas as etapas para realizá-lo inteiramente: espalhar as palavras adulteradas, propagar as ideias, fazer a coisa triunfar, pacificamente se possível, se não, por uma guerra de morte.
Não é somente entre as classes degradadas, ignorantes ou sofredoras que essa fraseologia exerce suas devastações. Ela causa igualmente vertigem nas classes superiores da sociedade, fato que a seita considera bem mais vantajoso para a finalidade pretendida. Graças à confusão de ideias introduzidas nos espíritos, reina atualmente nas classes que são chamadas por sua posição a dirigir a sociedade a mais deplorável divergência de pontos de vista, a mais perfeita anarquia intelectual. Voltamos à confusão de Babel; todas as ideias estão confusas e, nessa confusão, numerosos cristãos são arrastados mais facilmente [vide o recente caso envolvendo o padre apóstata Júlio Lancelotti, que ao usar o nome de uma santa da Igreja para defender o pecado das práticas homossexuais, ainda foi defendido por muitos supostos católicos, que apelavam para palavras como 'caridade', 'igualdade', 'fraternidade', etc.].
Muitas pessoas não desconfiam dessas correntes e se deixam levar pelas suas ondas mansamente, porque a maior parte das palavras que as arrastam podem servir (também) para exprimir ideias cristãs, assim como se prestam a exprimir as ideias mais opostas ao espírito do cristianismo. [...] Nenhuma fórmula composta de palavras definidas conseguiria satisfazer simultaneamente aqueles que creem em Deus e aqueles que consideram a Fé como o princípio de todas as degradações. Mas aquilo que não pode ser obtido por um arranjo de palavras torna-se fácil com palavras que comportam, segundo a disposição de espírito dos que as leem ou ouvem, sentidos absolutamente opostos.
Entre essas palavras hoje em voga, nenhuma há da qual se faça um uso mais frequente e pernicioso do que “liberdade”. Ela tem duas faces, pode ser ao mesmo tempo cristã e maçônica. “A liberdade”, diz Leão XIII, “é um bem, bem excelente, apanágio exclusivo dos seres dotados de inteligência e de razão”. A inteligência dá o conhecimento, a razão faz com que se descubra os meios de alcançar o bem, o livre arbítrio permite escolhe, dentre os meios, aqueles que convêm, e de empregá-los para atingir o bom objetivo. Se todos os homens vissem e colocassem seu fim último lá onde ele verdadeiramente está, e reclamassem liberdade para isso, todos pediriam que o caminho em direção ao Soberano Bem fosse largamente aberto, que não fosse obstruído por nenhuma dificuldade e que eles próprios não fossem entravados na sua ascensão a Deus. Mas os fins a que os homens se propõem são numerosos, tão diversos quanto diversos são os objetos de suas paixões!..
Assim, o apelo à “liberdade” pode jorrar simultaneamente dos corações dos maiores santos e dos maiores lunáticos; mas, pedindo-a com uma mesma voz, parecem ambos desejar a mesma coisa. Na realidade, eles querem coisas tão diversas e mesmo tão opostas quanto são eles mesmos opostos; de uma parte, os infinitos degraus que conduzem o homem à mais alta virtude, e de outra parte, os degraus não menos numerosos que os fazem descer até à pior corrupção. Ao grito de “liberdade”, tanto o filho indócil como o servidor orgulhoso sentem crescer no coração o desejo de independência em relação aos pais e aos mestres: os esposos infiéis veem luzir o dia em que o laço conjugal será dissolvido; a pessoa ruim aspira a um estado político e social no qual o mal não será mais coibido. Esse grito une todas as rebeliões, excita todas as cobiças. O próprio cristão, a esse grito, sente tornar-se mais pesado o jugo do Senhor, porque a concupiscência original não está extinta no coração de ninguém e todo homem é mais ou menos amigo, no seu fundo mau, da liberdade perniciosa. Para todos, o grito “liberdade” tem uma atração doentia, atração que o Pai da Mentira pôs na origem de todas as coisas na sua primeira tentação: "Dii eritis! Sereis como deuses, sereis vossos próprios senhores, não dependereis de ninguém!". E, como não existe independência em nenhum lugar, este grito torna-se, em toda parte, um apelo à revolta, revolta dos inferiores contra a autoridade, dos pobres contra a propriedade, dos esposos contra o casamento, dos homens contra o Decálogo, da natureza humana contra Deus.
________
[1] Bonald, no Instituto Nacional, sess. 29/6/1805. Mons. Darbois, Arcebispo de Paris, refém, lembrava aos que o levavam ao paredão que ele sempre defendera a liberdade. Um dos seus executores respondeu-lhe: ‘Cala a boca! Dane-se a paz. Tua liberdade não é a nossa!’.
[2] Op. cit.
[3] Ibidem.
[4] Adam Weishaupt (1748 – 1830), professor de Direito Canônico na Universidade de Ingolstadt (Baviera), foi o fundador da seita gnóstica denominada ‘Ordem dos Perfeitos’, conhecida como a ordem Illuminati.
Fonte: DELASSUS, Henri. A conjuração anticristã. O tempo maçônico que quer se erguer sobre as ruínas da Igreja Católica. São Paulo: Castela, 2021, pp.277-282.
Há um paralelo com o método que o diabo usou para tentar a Jesus, ao mostrar ao Senhor os reinos do mundo e a sua glória, dizendo: "tudo isso me pertence, e te darei se te prostrares diante de mim e me adorares". A armadilha era inaugurar o reino sem a cruz.
ResponderExcluir