NESTES TEMPOS DE TANTOS descalabros, que que a traição á Fé é explícita dentro da própria Igreja (situação que tende a piorar, vem aí o novo Sínodo), um dos temas mais discutidos diz respeito à infalibilidade do Papa e da própria Igreja. Temos diferentes interpretações para essas questões fundamentais para a nossa Fé, que dificultam a compreensão do leigo comum. Para elucidar a questão, parece-nos muito importante considerar o Tratado publicado pelo gigante Cardeal Billot, um verdadeiro santo e um dos maiores teólogos da história da Igreja, tendo sido inclusive o co-autor da importantíssima Encíclica Pascendi Dominici Gregis do Papa São Pio X. Segue.
Por Cardeal Louis Billot, S.J. Tractatus De Ecclesia Christi PP, T. I., Ed. 5a, Thesis XXII, Romae, 1927.
Tese XXII
O poder legislativo da Igreja tem por objeto as coisas da fé e da moral e também as questões referentes à disciplina. Mas nas coisas da fé e da moral se acrescenta a obrigação do direito divino à obrigação da lei eclesiástica; ao passo que em matérias de disciplina a lei é inteiramente de direito eclesiástico. No entanto, a infalibilidade sempre está ligada ao exercício do poder legislativo supremo, na medida que, em virtude da assistência de Deus, a Igreja jamais pode impor uma disciplina que seja oposta às regras da fé e da santidade evangélica.
§ 1. [A Lei Eclesiástica ratifica a Lei Divina]
Foi dito acima que são chamadas coisas da fé e da moral as coisas que, reveladas por Deus com uma intenção direta, estão contidas no depósito transmitido pelos Apóstolos. Distinguem-se as coisas que são prescritas por Deus somente para se crer daquelas coisas que são não só para se crer, mas também para se praticar, pois elas indicam uma regra que deve ser mantida pela fé e cumprida pelas obras. Pois bem, pode-se demonstrar de dois modos que o poder legislativo da Igreja se estende a esses dois objetos.
Demonstra-se, primeiro, a partir daquilo que foi declarado na proposição precedente (1). Com efeito, o poder de obrigar dentro da Igreja não se limita às coisas que não são prescritas pelo direito divino, posto que nada impede um inferior de obrigar em seu próprio domínio a observância das coisas já prescritas pela lei suprema. Logo, tudo o que está ordenado ao fim do reino dos céus é uma matéria própria em que o poder legislativo conferido por Cristo a Pedro e aos Apóstolos é exercido de pleno direito, se for entendido segundo as explicações dadas acima. Ora, entre as coisas que são ordenadas ao fim do reino dos céus, aquelas que são ditas da fé e da moral ocupam certamente o primeiro lugar. Logo, o poder legislativo da Igreja versa sobre essas coisas e primeiramente sobre essas coisas. — Isso também se verifica pelos fatos. Pois tudo o que é mandado ou proibido no foro eclesiástico sob ameaça de pena, é igualmente ordenado ou proibido por uma lei eclesiástica. É, portanto, necessário que sempre uma pena corresponda a uma lei, e que a lei divina é sancionada pelas penas da vida futura, como a lei eclesiástica pelas penas eclesiásticas, e como as da lei civil pelas penas civis e assim por diante. Ora, qualquer um que percorra o catálogo das censuras logo verá que algumas foram decretadas em matérias de fé e de moral, como é provado pelas excomunhões contra os hereges, cismáticos, duelistas, simonistas, aqueles envolvidos em aborto etc.
De resto, é evidente em si mesmo que a lei divina não é em nada diminuída ao se tornar igualmente lei eclesiástica. Toda obrigação de direito divino permanece imóvel e intacta, acrescentando-se a ela somente uma obrigação de direito eclesiástico, como foi visto na tese anterior. E isso não deve ser considerado como vão e inútil, sobretudo porque, em razão da obrigação acrescentada, o homem se sujeita à correção e a censura da Igreja; tal correção, quer por dissuasão em forma preventiva, quer por punição em consequência, ajuda muito a proporcionar a salvação e a evitar as penas do século futuro, que seriam incorridas em razão da violação da lei de Deus. Enfim, encontra-se a mesma razão na lei civil, sobre a qual ninguém diz que é vão que se proíba o roubo ou o homicídio, porque tais coisas já foram proibidas no Decálogo.
§ 2. [Harmonia da Lei Eclesiástica e da Lei Divina]
No entanto, as coisas necessárias para dirigir a ação dos fiéis não estão todas contidas no depósito das leis divinas. E, de fato, nas sociedades humanas se distinguem geralmente dois gêneros de coisas instituídas. O primeiro gênero corresponde a todas as coisas imutáveis e fundamentais. O segundo se estende como determinações das coisas fundamentais, segundo a diversidade dos tempos e lugares, tais determinações são necessárias ou úteis à sociedade, uma vez que a última se constitui e permanece dentro de uma mesma forma social. As leis divinas, tanto aquelas que constituem o direito natural e o direito conartural da graça, quanto aquelas que estabelecem a organização positiva da Igreja, como também a substância do culto no sacrifício e sacramentos, pertencem ao primeiro gênero. Mas todas as outras coisas, que se chamam propriamente de coisas disciplinares, foram simplesmente e absolutamente confiadas à determinação dos prelados, de tal sorte que elas não só podem ser retomadas para o acréscimo de uma sanção da lei eclesiástica, mas também se tornam obrigatórias primeiramente e em si pela prescrição dessa lei.
Um bem largo campo, pois, é deixado aqui ao poder legislativo, em matéria litúrgica, administrativa, contenciosa, ascética etc., como manifestam os decretos disciplinares dos Concílios, as bulas dos Pontífices, e o Código de Direito Canônico. Aqui, também, resplandece a diferença entre a Igreja e a Sinagoga.
Pois a Sinagoga foi instituída por um tempo limitado, e para um só povo: por um tempo limitado, até que venha a fé que deve ser revelada, como se diz na Epístola aos Gálatas (3, 23); para um só povo, onde o vínculo político coincidia igualmente com o religioso. Assim, não havia na Sinagoga esses elementos bastante diversos que exigem uma elasticidade suprema dentro do organismo social, os quais não permitem às disposições disciplinares aquela inflexibilidade ou imobilidade que é própria das instituições de direito divino. Ademais, a Sinagoga era uma escrava, simbolizada por Agar, para a qual, por conseguinte, todas as coisas deveriam ser prescritas em particular, mesmo os detalhes cerimoniais do culto. Mas a Igreja, que é senhora e livre, e que contém em seu seio todas as famílias da terra até o fim do mundo, é de uma condição bem diferente. E é precisamente aqui que se discerne a moderação admirável da lei cristã, conforme seu destino de abraçar todos os povos: fora os preceitos naturais e conaturais da graça, a Igreja possui muito poucas regras positivas instituídas pelo Cristo mesmo, que devem ser observadas por todos, por toda parte e sempre (2); deixou-se para a autoridade eclesiástica todas as outras coisas necessárias à administração da comunidade, devendo ser prescritas de acordo com as diversas exigências dos tempos e circunstâncias.
Mas, como nas coisas disciplinares toda obrigação é chamada de direito eclesiástico, daí não se segue absolutamente que tal obrigação não constranja a consciência. E a razão já foi indicada acima: a própria lei divina ordena que sejam observadas as coisas prescritas pelos poderes legítimos. Posto que ela, no entanto, não ordena imediatamente, mas somente na medida em que supõe a existência da lei humana, sem a qual ela não ordena nada, as duas coisas seguintes se conciliam admiravelmente: a obrigação engaja a consciência, de uma parte, e, no entanto, ela é dita ser, e é, de direito humano e eclesiástico.
§3. [A Infalibilidade Prática da Lei Eclesiástica]
Com respeito à infalibilidade das coisas que pertencem à disciplina, deve-se brevemente notar que ela consiste inteiramente em que a autoridade suprema da Igreja, em virtude da assistência do Espírito Santo, não pode jamais instituir leis que são de um modo ou de outro opostas aos preceitos revelados da fé e da moral. Pio VI exprime-o em poucas palavras na bula Auctorem Fidei, contra a proposição 78 do Sínodo de Pistoia: “A prescrição do Sínodo que concerne à ordem das matérias a serem tratadas nas conferências: pela qual diz primeiro que em cada artigo se deve distinguir o que é necessário ou útil para manter os fiéis no espírito do que é inútil ou mais oneroso do que suporta a liberdade dos filhos da Nova Aliança, e mais ainda, do que é perigoso ou nocivo, porque induz à superstição ou ao materialismo; na medida que, pela generalidade das palavras, o sínodo compreende e submete ao exame prescrito até a disciplina constituída e aprovada pela Igreja – como se a Igreja que é governada pelo Espírito de Deus pudesse constituir uma disciplina não só inútil e mais onerosa do que o suporta a liberdade cristã, mas também perigosa, nociva e que induza à superstição e ao materialismo – é [condenada como] falsa, temerária, escandalosa, perniciosa, ofensiva aos ouvidos pios, injuriosa à Igreja e ao Espírito de Deus pelo qual ela é governada, e pelo menos errônea.”
Obtém-se de início um argumento do que foi demonstrado acima sobre a santidade da Igreja. A santidade dos princípios na Igreja provém efetivamente de uma causa íntegra, e não é uma santidade qualquer, mas uma santidade fundada na verdadeira fé, que tem seu nome e regra no evangelho de Cristo. Ora, as leis disciplinares são os princípios sociais, os meios pelos quais a Igreja introduz sua seiva em seus membros. Se é, pois, necessário que a Igreja seja santa pela santidade dos princípios, jamais pode acontecer que a disciplina estabelecida e aprovada por ela seja contrária às regras de fé ou qualquer dos preceitos ensinados no evangelho. Donde se segue que a Igreja é infalível no estabelecimento da disciplina, entendida no sentido indicado anteriormente. — Ademais, as palavras de Cristo no Evangelho segundo São Mateus (28, 20) apresenta a Igreja como não menos infalível na interpretação concreta e prática da revelação que na interpretação dogmática: ensinando-os, disse ele, a observar tudo o que vos tenho mandado. E eis que estou convosco etc. Isso certamente não seria verdade, se os fiéis pudessem ser, pelas leis da Igreja, ocasionalmente desviados da retidão da lei evangélica (3) — Isso também nos remete ao que é dito em Mateus 16 e 18, onde se afirma absolutamente que será ligado no céu, tudo o que a Igreja ligará sobre a terra. Jamais, de fato, ratifica-se no céu o que for prescrito sobre a terra contra o direito divino, tanto em sua razão, como em seu modo.
E a mesma infalibilidade é válida quanto aos usos e costumes da Igreja universal. É por isso que Santo Agostinho tem o hábito de tirar deles os argumentos para confirmar os dogmas, apoiando-se sobre o princípio de que as regras de fé jamais podem ser dissonantes. Assim ele confirma o dogma do pecado original pelo costume de batizar as crianças: “Por que então – diz ele no Sermão 293, n.10 -, mesmo uma criança teria a necessidade de um libertador? Sem qualquer dúvida… nossa Santa Mãe Igreja mesma dá testemunho disso, ela que recebeu o pequenino para o purificar… Quem ousará elevar sua voz contra tal mãe?” E no primeiro livro contra Crescente, número 38, ele confirma o valor do batismo conferido por um herege, pelo costume mui antigo de não rebatizar àqueles que passam da heresia à Igreja Católica: “Não é um fato, diz ele, de pouca importância que… o que nós mantemos apraz ser observado na Igreja Católica universal espalhada por toda a terra”. E alhures, na Epístola 54, n. 6, diz que disputar se alguém deve aprovar ou não o que quer que toda a Igreja repete e conserva no mundo inteiro é uma loucura insolente.
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Fonte: Études Antimodernistes, L'Infaillibilité de l'Église dans la Discipline Universelle, disp. em:
etudesantimodernistes.fr/2017/02/l-infaillibilite-de-l-eglise-dans-la-discipline-universelle.html
Acesso 18/12/2022.
1. [Nota do tradutor francês: ver a Tese XXII do mesmo tratado.]
etudesantimodernistes.fr/2017/02/l-infaillibilite-de-l-eglise-dans-la-discipline-universelle.html
Acesso 18/12/2022.
1. [Nota do tradutor francês: ver a Tese XXII do mesmo tratado.]
2. “O povo da antiga servidão, vivendo sob a lei do temor, estava submetido a uma multidão de cerimônias misteriosas: isso foi necessário, a fim de fazer a graça de Deus mais desejável, cujos profetas celebrariam o advento futuro. Quando, por assim dizer, a Sabedoria de Deus se fez homem, chamando-nos para a liberdade, poucos ritos sagrados foram instituídos, mas todos eles se conservam livremente unidos a seu Deus. Quanto aquelas leis que tinham sido impostas ao povo hebreu e que uniam essa nação pelo temor ao mesmo Deus, muitas são abrogadas pela prática; sua memória tem sido preservada para explicar as nossas crenças. Hoje, pois, eles já não estão presos como escravos; eles exercem livremente o espírito.” Santo Agostinho, De Vera Religione. cap. 17.
3. Esse argumento proporcionalmente aplicado à regra da perfeição evangélica, mostra que a Igreja é igualmente infalível na aprovação das Ordens Religiosas, como o indica a sentença constante e unânime dos Doutores.
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