Bíblia, escravidão, matança de crianças e outros problemas difíceis... Introdução: a Fé e as ciências naturais

No alto: ilustração representando a antiga concepção hebraica do Universo, reproduzida da Bíblia da ed. Vozes. Acima: a gravura "Flammarion", de 1888, que retrata um homem prostrado sob a "borda do firmamento", a espiar o misterioso além. Uma legenda nessa gravura diz: "Um missionário medieval narra ter encontrado o ponto onde o Céu e a Terra se encontram...".


SAMANTA
É UMA LEITORA fiel d'O Fiel Católico que trouxe – já há um bom tempo –, uma pergunta que encerra uma questão maior e muito importante, difícil e recorrente na Teologia. É uma questão teimosa, que não se contenta: de fato, trata-se de uma gama de questões que se podem resumir em uma só, e sempre haverá alguém, em algum lugar do mundo, fazendo-se essa mesma pergunta. Alguns perderam a Fé por causa dela, outros desafiam os que têm Fé por causa dela, e ainda outros buscam honestamente pela resposta, na tentativa de acalmar suas consciências. Há também os que não têm a Fé ou a perderam mas querem recuperá-la ou tê-la, e inconscientemente lançam esse desafio numa busca desesperada por uma solução pela qual anseiam.


    A pergunta que Samanta fez foi esta: 

Olá, Henrique. Tudo bem?

Gostaria de saber como responder uma pessoa que acusa a Bíblia dizendo que ela defendeu a escravidão e matança de crianças.

Como contextualizar essas situações e entender o motivo de Deus ordenar isso? Muito obrigada desde já!


    Essa é uma daquelas perguntas que precisamos dividir em partes para poder responder bem, e que exige muita seriedade para não se faltar com a verdade e não correr o risco de, ao tentar esclarecer, confundir mais. Aí vamos nós.


1. Cuidado: não entenda tudo literalmente!


Em primeiríssimo lugar é preciso saber e manter sempre em mente que a Bíblia nem sempre é literal. Especialmente quando consideramos os relatos do Antigo Testamento, há muita simbologia e muita figura de linguagem (tropologia) sendo usada ali. Isso inclui  recursos linguísticos como comparação ou símile, catacrese, sinestesia estilística, antonomásia, perífrase, hipérbole, oxímoro retórico, etc, etc. Muito material já se produziu a respeito e, se eu quisesse ser exaustivo aqui, poderia produzir uma longa série de artigos só para falar disso. Mas esse não é o objetivo e não se preocupe se você não é um(a) expert nessas coisas, ou mesmo se não conhece o sentido de boa parte dessas palavras. Basta saber que muitos (talvez até a maior parte) dos textos veterotestamentários não são literais e nem são historicamente – nem biologicamente ou geograficamente ou geologicamente ou astronomicamente – exatos.

    Aqui é que reside, exatamente, o grave erro do fundamentalismo e do literalismo adotados por tantas comunidades protestantes. A Fé, por um lado, não pode de maneira nenhuma conflitar com a realidade que nos cerca; por outro, a pessoa que tem Fé não pode, jamais, temer as descobertas e demonstrações  empíricas que as ciências naturais venham a nos oferecer. Se a Fé é verdadeira, jamais poderá contrariar a ciência honesta.

    Assim, se o que está escrito no Texto sagrado parece contrariar aquilo que eu observo e comprovo indubitavelmente como verdadeiro [por exemplo, se o texto dissesse que os elefantes voam, mas eu, por óbvio, percebo que elefantes não podem voar], então as opções que tenho para resolver o problema são poucas; poderíamos resumi-las em três, deste modo:

    1) o que está escrito é falso, ou

    2) a minha concepção da realidade é falsa, ou

    3) a minha compreensão/interpretação do texto não está correta.


    Se eu creio e aceito – pela Fé à qual aderi, por dom de Deus –, que a Bíblia é verdadeira, que é "Palavra de Deus" e que não erra, mas vejo a mesma Bíblia apresentando, por exemplo, uma concepção geocêntrica do Universo, e mais do que isso, que o céu que vemos acima de nossas cabeças é uma imensa abóbada ou domo posto por Deus para separar as águas que estão "acima do firmamento" daquelas que banham a Terra, como conciliar essas coisas?

    Somos, assim, encaminhados a nos debruçar sobre um problema preexistente, antes que possamos responder diretamente às intrigantes perguntas feitas por Samanta: a velha questão do debate Fé X Ciência. Por quê? O que isso tem a ver com o problema levantado? Logo veremos. 


    Por muito tempo acreditou-se que Deus, literalmente, habitava algum lugar físico acima das nuvens. Com o advento da aeronáutica e o lançamento de foguetes que romperam as órbitas terrestres, as pessoas intelectualmente honestas foram forçadas a reconhecer que a concepção literal da Bíblia estava equivocada. Bem, mas todos nós sabemos que nem todas as pessoas são honestas e, assim, o que tivemos? Adesões àquelas três posturas citadas, é claro:

    1) O que está escrito é falso: alguns simplesmente perderam a Fé: não havia um Deus no céu, afinal, e o Sol e a Lua na verdade não eram "luzeiros" postos lá no alto para iluminar o dia e a noite dos homens, como diz o Gênesis, mas sim a Terra é que gravita em torno do Sol, junto com muitos outros planetas, e fora desta nossa galáxia há uma imensidão de outras, inclusive bem maiores que a nossa. Somos, enfim, um ínfimo pontinho azul que "flutua" perdido num Universo infinito, que nem parece ordenado. Era tudo um engano, no fim das contas, a Bíblia estava errada e eu já não acredito mais em nada do que ela diz.

   2) A minha concepção da realidade é falsa: outros estacionaram no segundo estágio do luto, a negação, e optaram por simplesmente renegar a realidade observável dos fatos para que pudessem se manter presos à letra do Texto. Emocionalmente fracos, estes precisam se prender à interpretação literal para ter (uma falsa) paz de espírito, e assim preferem "acreditar", por exemplo, que a Terra é plana e que todos as conquistas espaciais alcançadas pelo homem nas últimas décadas não passam de mentiras engendradas por uma imensa conspiração global para enganar as pessoas comuns: o homem nunca foi à Lua, as cenas dos astronautas no satélite da Terra são armações elaboradas (eles têm 'provas' disso!), todas as imagens que mostram a Terra esférica são "montagens", as sondas enviadas ao espaço e as imagens que elas nos enviam são todas falsas, etc., etc.

    3) A minha compreensão/interpretação do texto não está correta: outra parte reagiu com honestidade e se viu forçada a concluir que a antiga interpretação literal das coisas estava comprometida e precisava ser revista. Mas como fazer isso sem perder a Fé e sem perder de vista a coerência com aquilo que simplesmente está escrito?

    ** Ler a continuação

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2 comentários:

  1. Muito bom! Aguardando ansioso a continuação! (quero fazer a assinatura do seu curso, só esperando liberar meu cartao :))

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  2. Muito obrigada pela resposta, Henrique. Vou ler com muita atenção!

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