** Ler a primeira parte deste estudo
VIMOS EM NOSSO ARTIGO anterior que todo cristão intelectualmente honesto se vê forçado a admitir que existem diversas passagens na Bíblia Sagrada que não admitem uma interpretação literal, muitas vezes por motivos bastante óbvios. Todavia temos a Fé e por isso não consideramos a simples hipótese de que o Texto Sagrado, que cremos inspirado por Deus, seja falso, contenha mentiras ou ensine enganos. Também não é sensato admitir que, sendo assim, para continuar crendo à letra na Escritura eu deveria tentar moldar a realidade àquilo que literalmente está escrito – até porque fazer isso vai levar a obstáculos intransponíveis: o maior exemplo disso está no caso dos "terraplanistas", que por motivos religiosos se recusam a crer na simples realidade observável dos fatos. Este é um fundamentalismo doentio que deve sempre ser rechaçado e que já está condenado.
A solução possível, então, só pode ser a de admitir que a minha compreensão ou interpretação literal do Texto sagrado não esteja correta e, com honestidade, abandonar essa literalidade (que vigorou por um longo período histórico na Igreja, antes de as ciências naturais demonstrarem que certas concepções bíblicas não correspondem ao que se observa da natureza). Mas como fazer isso sem perder a Fé e sem perder de vista a coerência com aquilo que simplesmente está escrito?
Ora somos católicos e, sendo assim, é de fundamental importância saber que sempre foi a postura da Igreja respeitar o valor das ciências e as descobertas realmente científicas, no seu campo: no correr de sua longa história, somente se posicionou com firmeza diante das afirmações que pudessem contrariar a Fé e a moral ou causar dano à vida humana. Casos famosos e muito usados pelos inimigos da Igreja, como o de Galileu e o de Giordano Bruno, quase sempre nos chegam sempre cercados de mitos; a realidade dos fatos é distorcida e muito mal compreendida pela maioria das pessoas que nunca se aprofundaram no estudo dessas questões.
Giordano Bruno, por exemplo, foi perseguido em razão de suas concepções heréticas em relação à divindade de Cristo, não porque propôs a infinitude do Universo, como pensam muitos. O fato é que a maioria dos historiadores contemporâneos refuta a ideia ultrapassada de que a Idade Média teria sido uma "idade das trevas" ou um tempo de pouco avanço científico. Ao contrário, na verdade, foi nesse período que se lançaram os fundamentos da ciência empírica moderna e que se proporcionou o desenvolvimento de diversas áreas do conhecimento humano. Para obter melhores conhecimentos a respeito e confirmá-lo com a devida apresentação das fontes e dados históricos abundantes, sugiro a leitura da obra do Dr. Thomas E. Woods Jr., PhD, intitulada "Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental" (Quadrante, 2019) e/ou conhecer a obra mais ampla de Ronald Numbers, outro PhD em História, autor de "Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião" (Thomas Nelson Brasil, 2020) e outros livros relacionados, ainda sem tradução para o português. Recomendo também a leitura do artigo de Letícia Yazbek para o portal Aventuras na História, intitulado "A Igreja atrapalhou o desenvolvimento da Ciência?", disponível neste link.
Dito e entendido isso, como é que podemos entender a infalibilidade da Bíblia, quando ela parece afirmar coisas que hoje sabemos que não são exatas? E o que isso tem a ver com a questão trazida por nossa leitora, sobre as aparentes contradições que ela contém, como nos muitos episódios de violência contidos no Antigo Testamento, atos que hoje consideramos como verdadeiros crimes contra a humanidade – matanças, genocídio, estupro coletivo, assassinatos de crianças –, apresentados como se fossem admitidos ou até ordenados por Deus?
A relação que tentamos estabelecer aqui situa-se na diferença que somos forçados a admitir entre a inerrância das Sagradas Escrituras e exatidão científica. A Bíblia não é e nem nunca foi um manual de ciências naturais. Não foi escrita para ensinar sobre biologia, astronomia, física, geologia ou coisa parecida. A Bíblia é o Livro da Revelação divina para a humanidade, e os seus conteúdos devem ser compreendidos sempre a partir de uma visão predominantemente espiritual. A grande Verdade que ela contém não se resume a fatos históricos ou descrições exatas de eventos localizados no tempo, mas está relacionada à grande jornada do homem sobre a Terra, desde as origens até o fim dos tempos: aí está a sua essência. A abordagem simbólica, analógica e metafórica da Bíblia transcende a forma puramente literal, alçando a alma para a aproximação dessas grandes e maravilhosas verdades mais altas.
Isso não quer dizer que as Escrituras não sejam literais em muitos pontos, ou que não contenham narrações de fatos históricos. Em tudo aquilo que é de Fé, nós cremos, sim, literalmente na Bíblia: Deus é o Criador do Céu e da Terra, e de tudo o que contém; Deus é Um só, mas é três Pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo; Jesus Cristo, o Filho de Deus e Deus Ele mesmo, o Verbo divino, por Quem todas as coisas foram feitas, quis fazer-se homem e nasceu do seio da Virgem Maria, caminhou entre nós, ensinou o Evangelho da salvação, padeceu, foi crucificado e morreu pela nossa salvação. Ressuscitou no terceiro dia, apareceu aos seus discípulos, ascendeu aos Céus, enviou-nos o Espírito Santo e continua com a Igreja até a consumação dos séculos, quando virá a julgar os vivos e os mortos.
Aí está o fundamento do Credo, mas há muito mais em que cremos literalmente. Ponto. Mas também é verdade que a Igreja admite, já há mais de um século – embora eu saiba que essa afirmação ainda tem potencial de escandalizar a alguns mais fracos –, que a Bíblia também contém mitos. Como assim??
A Bíblia contém mitos?
Para que se possa começar a abrir caminho para a compreensão da resposta (correta) à pergunta que dá título a este intrincado capítulo, por óbvio, é preciso primeiro compreender de modo inequívoco o significado da palavra “mito”.
Comumente, as palavras são carregadas de sentidos diversos e, muitas vezes, fazem despertar naqueles que as escutam sentimentos distintos, muitas vezes incompatíveis com os seus significados próprios: de fato, “mito” é uma palavra que se enquadra bem nessa categoria, na medida em que pode representar ideias diferentes conforme o contexto e até segundo a intenção de quem a está empregando. Para nós, porém, é de importância capital conhecer bem o conjunto dos diversos significados que esse vocábulo detém. Vejamos.
No contexto acadêmico mais comum, “mito” frequentemente significa uma narrativa épica, considerada historicamente verdadeira ou não por uma determinada nação, povo ou cultura, geralmente simbólica e eivada de elementos sobrenaturais, transmitida pela tradição oral e que retrata a visão de mundo da comunidade que a produziu (ou em que se insere) sobre os aspectos essenciais da natureza humana e/ou “explica” fenômenos naturais.
A palavra geralmente alude a narrativas fictícias, mas também pode ser usada para se referir a histórias reais exageradas/acrescidas de elementos tipificados; muitas vezes são, por tradição, aceitas como literalmente reais. "O mito normalmente simboliza uma ideia ou princípio com lastro na realidade objetiva dos fatos, mas em si mesmo é fantasioso"[1].
O exposto até aqui é mais ou menos o mesmo que podemos encontrar como definição para “mito” nos dicionários da língua portuguesa, porém geralmente com ênfase maior para a falsidade literal das histórias míticas: “Narrativa fantasiosa, simbólica (...)”[2]; “História fantástica de transmissão oral; (...) fábula, lenda, mitologia. (...) Interpretação ingênua e simplificada do mundo e de sua origem”[3].
Aqui, os mitos são meras estórias, narrativas imaginárias, inventadas para explicar conceitos difíceis (as origens do universo e dos seres humanos, especialmente). Nessas definições, “fabuloso”, “fantasioso”, “imaginário”, “irreal” e outras expressões semelhantes são recorrentes. Depois disso, é fácil entender porque geralmente nos indignamos quando lemos ou ouvimos algum acadêmico incluindo em uma mesma frase as palavras “Bíblia” e “mito”: de imediato entendemos que esse autor, professor ou palestrante esteja negando a veracidade das narrativas bíblicas. E não poderia ser diferente: o efeito que as afirmações de tantos “especialistas” sobre a Bíblia, enquadrando suas histórias na mesma categoria das fábulas das religiões pagãs, não pode ser positivo. Com razão, não pode ser aceito passivamente por algum de nós.
Um exemplo clássico encontramos no mundo greco-romano da época do Novo Testamento, com os seus mitos, que são lendas inventadas para explicar conceitos não compreendidos sobre o mundo, avançando até ganhar grande importância e complexidade. A mitologia dos gregos e romanos apresentava uma multidão de deuses e heróis fantásticos – ainda que admiráveis em certo sentido, e ainda que suas histórias permaneçam até hoje apaixonantes – possuidores de características – sejam vícios ou virtudes, qualidades ou defeitos morais –, iguais às dos seres humanos.
Será, então, que os mitos pagãos têm algum sentido ancorado na realidade? Têm eles alguma utilidade prática, ou mesmo alguma finalidade moralmente mais elevada além da diversão que proporcionam? – As respostas a essas perguntas são sim e sim, e não se pode negar que os mitos tenham cumprido um papel importante no desenvolvimento de determinadas culturas, com exemplos de coragem e persistência, e de docilidade e paciência, para meninos e meninas em formação. Os heróis sempre funcionaram como modelos e fonte de inspiração para se fazer aquilo que o senso comum indica como o bom e o justo. Mas não é esse nosso tema central, aqui.
O que nos interessa de momento é conhecer o significado de “mito” para a Religião, e saber como é que esse conceito aparece – se aparece – nos textos Bíblia Sagrada.
Avancemos, enfim, para o correto significado da palavra no contexto em que aparece na Bíblia. Ora nas Sagradas Escrituras a palavra não tem, nem de longe, algum desses sentidos neutros, acadêmicos ou puramente racionais. A Bíblia pode, sim, servir-se de linguagem figurada e de analogias, comparações, metáforas e simbologias, além de muitas e evidentes hipérboles, com vistas a conferir ênfase e alcançar clareza na apresentação de uma realidade maior, seja espiritual ou de difícil compreensão – isto, de passagem, já o vimos –, mas não contém nunca e em nenhuma parte, falsidades ou meras fábulas e fantasias. Realmente, os mitos pagãos, na Bíblia, são retratados como simples falsidades e enganos humanos em contraste com a divina Revelação da Verdade.
Vejamos então alguns versículos em que aparece no Novo Testamento a palavra grega mito (mythoi – μυθοις), traduzida por “fábula” (negrito nosso):
Se eu te recomendei permanecer em Éfeso, quando estava de viagem para a Macedônia, foi para admoestares alguns a não ensinarem outra doutrina, nem se ocuparem com fábulas e genealogias sem fim, as quais favorecem mais as discussões do que o desígnio de Deus, que se realiza na fé.
(1Tm 1,4)
Rejeita, porém, as fábulas ímpias, coisas de pessoas caducas. Exercita-te na piedade.
(1Tm 4,7)
Virá um tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo os seus próprios desejos, como que sentindo comichão nos ouvidos, se rodearão de [falsos] mestres. Desviarão os seus ouvidos da verdade, orientando-os para as fábulas. Tu, porém, sê sóbrio em tudo, suporta o sofrimento, faze o trabalho de um evangelista, realiza plenamente o teu ministério.
(2Tm 4,3-5)
Este testemunho é verdadeiro; repreende-os, severamente, para que sejam sãos na fé, e não deem ouvidos a fábulas judaicas ou a mandamentos de homens desviados da verdade.
(Tt 1,13-14)
Com efeito, não foi seguindo fábulas sutis, mas por termos sido testemunhas oculares da sua majestade, que vos demos a conhecer o poder e a Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.
(2 Pd 1, 16)
O “Apóstolo das Gentes” e o primeiro Papa, inspirados pelo Espírito Santo, deixam claríssimo o quanto a verdadeira Religião, o cristianismo católico, é distinta das religiões baseadas em mitos ou fantasias meramente humanos. E não havia como eles fazerem de modo diferente, se o próprio Jesus Cristo fizera antes essa mesma distinção, por outras palavras, quando elogiou a confissão de São Pedro: a revelação que recebera aquele de quem Jesus profetizara que seria “pescador de homens” não veio de nenhum mito enquanto estória inventada por homem, mesmo se bem intencionado e ainda que elaborada por alguma admirável inteligência humana (‘carne ou sangue’), mas do próprio Criador e Doador de todos os bens, o Pai que está nos Céus:
Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos Céus. (Jesus Cristo a S. Pedro em Mt 16, 17)
Os mitos, no contexto da Bíblia, são simplesmente o oposto da verdade (por isso corretamente traduzidos por 'fábulas'). E não somente os mitos pagãos, mas também os mitos dos próprios judeus (Tt 1,13) devem ser rejeitados. São Paulo Apóstolo, é claro, não está a falar assim das narrativas bíblicas, pois ele mesmo reafirma com grande propriedade a origem divina das Sagradas Escrituras (2Tm 3,16-17). As “fábulas judaicas” a que se refere em sua Epístola a Tito são certamente os muitos mitos e misticismos elaborados por falsos profetas, talvez relacionados ao gnosticismo judaico, ou uma elaboração de lendas fora das narrativas do AT, similares às do Aggadah rabínico, o Livro dos Jubileus e os ensinos de Filo de Alexandria, entre outros.
Já o primeiro Papa vai declarar, com todas as letras, o absoluto contraste entre as fábulas inventadas pelos homens e a Mensagem revelada por/em Jesus, reafirmando que ele mesmo viu (e logo ouviu) o glorioso Salvador, o Cristo do Deus Vivo, com os seus próprios olhos. A única conclusão possível, pois, não pode ser outra: ainda que possamos tirar dos mitos antigos certos aprendizados, e mesmo que possamos fazer deles um uso construtivo; mesmo se por meio deles os pagãos aprenderam coisas boas e desenvolveram certos princípios morais válidos, fazendo uso da luz natural da razão, o cristão, todavia, precisa de verdadeira e infalível orientação para a sua vida: precisamos da Revelação que nos foi dada por Deus mesmo, e dela não podemos nos desviar por motivo algum, menos ainda trocá-la por qualquer produção da sabedoria humana.
Não nos bastam as interpretações baseadas em elucubrações de homens sábios. Católicos necessitamos do conhecimento concreto das coisas de Deus e da sua Vontade, com humildade sincera para aprender e trilhar esse árduo caminho até o fim de nossas vidas neste mundo.
Essa premissa essencial, porém, não encerra a questão; é preciso avançar além e procurar saber de qual ou de quais explicações dispomos para certas histórias aparentemente absurdas e/ou contraditórias ou ainda aparentemente incompatíveis com a Doutrina cristã (como as trazidas por nossa leitora) contidas na Bíblia.
*** Ler a continuação deste estudo
Você que não veio ainda para a nossa plataforma de conteúdos restritos (ofielcatolico.com), assine agora por um valor simbólico e tenha acesso aos doze volumes digitais (material completo) do nosso Curso de Sagradas Escrituras, mais a coleção completa em PDF da revista O Fiel Católico (43 edições), mais a nossa Formação Teológica Integral e Permanente (com as 4 disciplinas fundamentais da Teologia: Dogmática, História da Igreja, Bíblia e Ascética & Mística), mais materiais exclusivos e novas atualizações constantes. Para assinar agora por só R$13,90, acesse este link
________
[1] ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo: Brasiliense. 2012, p.12.
[2] Dicionário AULETE digital.
[3] Dicionário MICHAELIS online.
Boa tarde! Queria agradecer pelo apostolado de vocês. Seus artigos têm me ajudado bastante! À luz de que a bíblia não contém mitos, como podemos compreender algumas narrativas como a de Noé e arca?
ResponderExcluirEntendo que, metaforicamente, Noé e a Arca são visões, no velho testamento, do surgimento de Jesus e da Igreja, no NT.
Porém, se eu quiser analisar a veracidade histórica e a plausibilidade física do dilúvio, como eu faço a pesquisa? Eu preciso partir do pressuposto de que, uma vez que a história está na bíblia, ela já é verdadeira, e? Portanto, não posso buscar meios de "falsear a hipótese", como orienta o método científico de Karl Popper?
Creio que Deus é o mestre de todas as leis da física, e que poderia manejá-las conforme sua vontade para ser possível, naquele momento, algo que hoje não conseguimos enxergar como sendo possível. Ainda assim, talvez por mera curiosidade estéril, típica dos nossos tempos, queria ler a opinião de outra pessoa em quem confio sobre o assunto.
Abraços e muito obrigado!
Grato pelo comentário e confiança. Chegaremos às respostas das suas questões com estes estudos, se a graça de Deus assim nos permitir.
ExcluirFraternidade Laical São Próspero
Outro absurdo propalado aos quatro ventos: "A Igreja impunha a sociedade que o Sol girava em torno da Terra". Ora, antes de se descobrir o que realmente acontecia, todos (dentro e fora da Igreja) acreditavam nisso, simplesmente porque a ciência ainda não tinha elementos para mostrar que era o contrário.
ResponderExcluir