Bíblia, escravidão, matança de crianças e outros problemas difíceis... parte IV: significação dos mitos bíblicos

Às vezes é preciso saber ler com um olhar de criança... de curiosidade maravilhada...

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APRESENTAMOS ATÉ AQUI alguns exemplos de histórias aparentemente fantásticas ou extraídas de mitos que encontramos na Bíblia. Muitíssimos outros poderiam ser citados, mas na realidade nada disso nos incomoda. Que podemos concluir a partir daí? Que a leitura católica da Bíblia não é literal? É o que veremos na continuação deste estudo. 

    O atual 
Catecismo da Igreja Católica oferece uma resposta correta e bastante interessante para essas perguntas (negritos nossos):

Segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois [grandes ou principais] sentidos das Escrituras: o sentido literal e o sentido espiritual, sendo este último subdividido em sentidos alegórico, moral e anagógico. A concordância profunda entre os quatro sentidos garante toda a sua riqueza à leitura viva da Escritura na Igreja.

Sentido literal
. É o sentido significado pelas palavras mesmas das Escrituras, descoberto pela exegese que segue as regras da correta interpretação. “Omnes sensus fundantur super litteralem – Todos os sentidos (das Sagradas Escrituras) devem estar fundados no literal”.

Sentido espiritual. Graças à unidade do projeto de Deus, não somente o texto da Escritura, mas também as realidades e os acontecimentos de que fala, podem ser sinais.
    1. O sentido alegórico. Podemos adquirir uma compreensão mais profunda dos acontecimentos reconhecendo a significação deles em Cristo; assim, a travessia do Mar Vermelho é um sinal da vitória de Cristo, e também do Batismo. 
    2. O sentido moral. Os acontecimentos relatados nas Escrituras devem nos conduzir a um justo agir. Eles foram escritos “para a nossa instrução” (1Cor 10,11).

    3. O sentido anagógico. Podemos ver realidades e acontecimentos em sua significação eterna, conduzindo-nos (grego anagogé) à nossa Pátria celeste. Assim, a Igreja na Terra é sinal da Jerusalém celeste.

Um dístico medieval resume a significação dos quatro sentidos: "Littera gesta docei, quid credas allegoria; moralis quid agas, quo tendas anagogia A letra ensina o que aconteceu, a alegoria, o que deves crer; a moral, o que deves fazer; a anagogia, para onde deves caminhar".

É dever dos exegetas esforçar-se, dentro dessas diretrizes, por entender e expor com maior  aprofundamento o sentido das Sagradas Escrituras, a fim de que, por seu trabalho como que preparatório, amadureça o julgamento da Igreja. Pois todas estas coisas que concernem à maneira de interpretar a Escritura estão sujeitas, em última instância, ao juízo da Igreja, que exerce o divino ministério e mandato do guardar e interpretar a Palavra de Deus.

(CIC §§115–119)

    Quando o Catecismo diz que o sentido literal “é o expresso pelas palavras das Escrituras e descoberto pela exegese segundo as regras da reta interpretação”, e especialmente que “todos os sentidos (das Sagradas Escrituras) se fundamentam no literal”, não quer significar que toda Escritura deva ser interpretada num único e mesmo sentido. O gênero, as formas literárias, os idiomas, os contextos históricos, etc, tudo deve ser levado em conta para encontrar este “sentido literal”. 

    De volta aos exemplos clássicos, porque serão sempre inescapáveis: se o autor de Gênesis quis expressar metaforicamente a tarde e a manhã do primeiro dia, quando ainda não havia Sol e Lua, bem como os “seis dias da Criação” (tudo indica que sim), então ler e entender como metáfora é o sentido literal nesses casos (por isso a Igreja nunca concordou com leituras fundamentalistas da Bíblia).

    Pensadores materialistas como o conhecido poeta inglês Robert Graves, um notável especialista dos mitos, em suas reflexões parece querer nivelar tudo, reduzindo a verdade da Revelação a apenas mais um mito entre tantos outros. É humanamente compreensível que estudiosos materialistas tratem a Bíblia como um mito em tudo igual aos demais, por questão de método. E quando fazem isso, até são capazes de inteligir coisas interessantes, às vezes. Mas isso cria o maior de todos os problemas aos se lidar com a Bíblia – o mesmo erro que cometem os fundamentalistas, só que "invertido" –, que é dar as costas à realidade objetiva e perder aquilo que é essencial e decisivo no Texto. 

    Destacamos a seguir algumas reflexões do professor e autor Francisco Escorsim[1] em entrevista ao jornalista Adalberto de Queiroz, para o Jornal Opção[2], porque se configuram em uma boa síntese do conjunto das coisas em que creem (e que apregoam) os teólogos católicos tradicionais mais moderados atualmente, os que admitem uma visão mitológica (sendo o ‘mito’ subentendido aqui enquanto gênero literário, e neste sentido estrito) da Bíblia. Segue:

O centro da Bíblia está na Encarnação de Jesus Cristo: isto é um fato inegável e que transforma a Bíblia no ‘Mito dos mitos’. Todos os demais (mitos), a partir da Encarnação, têm de ser encarados à luz desse fato, e não como iguais. A diferença entre a Bíblia e outros mitos é a mesma que há entre um ser humano e um desenho seu.

É perfeitamente possível aprofundar o estudo dos mitos sem perder a fé no Cristo. Aliás, para um cristão, é o oposto o que deve acontecer. Quanto mais se estuda os mitos, mais a fé em Nosso Senhor Jesus Cristo se fortalece. Não há nada, absolutamente nada comparável a Ele.

Faço a comparação com a passagem na Odisseia em que Odisseu encontra Aquiles no Hades e comenta que se ele fôra o maior dos heróis em vida, certamente seria grande na morte, ao que Aquiles responde que se soubesse como seria a morte teria preferido ser um pastor humilde ao grande guerreiro que foi. O sentimento de Aquiles, ali, é o mesmo de Salomão no Eclesiastes, que conclui que, se não há Deus, tudo é vão. Isso tem importância crucial, porque, na comparação, constatamos a limitação da tradição greco-romana e a ilimitação do Cristianismo em razão da sua dimensão salvífica. O encaixe entre ambas está magistralmente feito por Dante em sua Comédia. Virgílio é da tradição greco-romana, mas só pode auxiliar Dante até uma etapa do caminho. E o que há para além de onde Virgílio consegue ir é exatamente aquilo que resolve o dilema de Aquiles e Salomão. Sem Jesus Cristo, tudo é vão e tanto faz o que se foi e o que se quer ser. 

A vacina contra a idolatria está em ter uma vida cristã mínima constante, ou seja, frequentar as Missas, confessar, rezar, jejuar, dar esmolas. Se tem isso, dificilmente se cairá na idolatria. Para além da vacina, é preciso nunca parar de ler sobre as vidas dos santos. Quanto mais, melhor. Só corre risco de idolatria quem conhece poucos, porque quando se conhece muitos não há como se enganar em sua devoção. Nenhum santo aponta para si. Costumo dizer que ninguém saberia quem é Tomás, Agostinho, Tereza, Francisco, sem o ‘São’/Santo antecedente aos nomes. E esse ‘São’ só existe e só é compreensível quando referido ao único Santo de verdade: Jesus Cristo. E não há vida de santo que não aponte para Ele.


Como o Sr. contrapõe o critério mitológico e o histórico ou historicista na Literatura e na leitura da Bíblia por fiéis e incrédulos?

Não contrapondo. Um princípio basilar de interpretação de literatura é considerá-la como um todo harmônico. Não se trata de separar essas camadas, mas de distingui-las dentro do mesmo todo a que pertencem. Os exemplos (...) do que fizeram Dante e Auerbach são perfeitos para ilustrar isso. Dante fez uma obra literária contendo a história, sem confundi-las, nem as contrapôs. Auerbach não fez uma obra de literatura, mas toma a literatura como o princípio maior, a base e o destino de sua análise, enxergando a história a partir dela, não o contrário. Com isso, compreende mais e melhor da história sem contrapô- la aos mitos ou à própria literatura. Seja você fiel ou incrédulo da Bíblia: se quer realmente lê-la, tem de tomá-la como uma unidade harmônica e compreendê-la primeiro assim para poder fazer qualquer consideração histórica ou comparativa com outros mitos. 


O Sr. fala em densidade, valor e profundidade que o leitor católico pode descobrir se ampliar a visão do Livro para aspectos propriamente, digamos, literários. Como isto pode acontecer?

Com um olhar de criança. Quando algo parece inverossímil, a criança questiona, ela quer entender, e a Bíblia, já no primeiro capítulo do Gênesis, nos desnorteia. Por exemplo, como poderia a Terra estar informe e vazia se tinha abismo e água? Se tem abismo, alguma forma há de ter; se tem água, vazia não está. Como entender isso? Olhar de criança significa um olhar de curiosidade maravilhada, não de suspeita maliciosa. Mas a melhor forma de responder sua pergunta é recomendar a leitura d[o livro] “O menino que conheceu Jesus”, de Immaculée Ilibagiza, que conta a história verdadeira de Segatashya de Kibeho, que era um pagão, desconhecendo tudo de religião, e nunca tinha ouvido falar de Jesus Cristo até que Este lhe apareceu. Adivinha como o menino se portou? Perguntando coisas assim para Jesus: ‘Senhor, me parece que todo o problema no qual vive o homem agora começou há muito tempo, lá no Céu. Como Deus pode culpar o homem por arruinar o mundo por causa de seus pecados quando foi realmente culpa do Céu ter deixado Satanás vir a este mundo e vaguear pela Terra como se fosse dono dela?’[3].

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[1] Professor autônomo de português, literatura, redação e educação da imaginação, tema sobre o qual profere conferências e cursos. É também pesquisador independente e colunista do jornal Gazeta do Povo e Co-fundador da confraria ‘Os Náufragos’ (osnaufragos.com.br).
[2] Disp. em:
https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/a-biblia-como-mito-dos-mitos-143112/
Acesso 28/9/2023.
[3] ILIBAGIZA, Immaculée; ERWIN, Steve. O menino que conheceu Jesus. Campinas-SP: Ecclesiae, 2013.

Um comentário:

  1. Esses estudos são simplesmente maravilhosos! Fico impressionado de ver com tanto conteúdo bom e a maioria está acessando aquela história do tal do padre Oliveira ali. Lamentável, vamos estudar pessoal!

    Ani

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