Como católicos, somos sempre obrigados a obedecer às leis humanas?


SÃO PEDRO APÓSTOLO, primeiro Sumo Pontífice da santa Igreja de Cristo, disse em sua 1ª Epístola:

Por amor do Senhor, sede submissos a toda autoridade humana, quer ao rei como a soberano, quer aos governadores como enviados por ele para castigo dos malfeitores e para favorecer as pessoas honestas. Porque esta é a vontade de Deus que, praticando o bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos. (1Pd 2,13-16)


    Onde se traduziu "autoridade humana", a Vulgata traz omni creaturæ. Mas o sentido aí não é “a todos os homens”: esse mesmo substantivo, no grego, fora empregado por São Paulo para designar tanto o ato mesmo de criar (Rm 1,20), quanto o conjunto das criaturas (Rm 8,19ss) ou ainda uma criatura em particular (Rm 8,39). No grego clássico, porém, esse vocábulo tem por vezes o sentido de instituição, e é assim que se deve interpretar aqui: Sede submissos a toda a instituição humana, isto é, a todas as formas de governo que os homens tiverem adotado, sendo isso em si indiferente para a Fé. Tal obediência deve ser prestada propter Deum: por causa do Senhor, isto é, segundo a explicação mais provável, porque mesmo o Cristo se sujeitou ao poder civil e prescreveu que se lhe obedecesse (Mt 22,22 e outros). A autoridade estava, então, em mãos tão pouco dignas que se fazia necessária a autoridade do Messias para fazer compreender o seu valor e impor que a respeitassem.


    A expressão omni creaturæ é dessas que se devem restringir de acordo com a matéria de que se trata (vide Tg 5,16). mas de caso pensado São Pedro a usou nesse caso, para fazer compreender aos hebreus que, naquele contexto e circunstância, qualquer que fosse o superior que Deus lhes desse — hebreu, gentio ou cristão —, deviam lhe obedecer, atendendo não às qualidades pessoais, mas ao ofício e dignidade de que estavam revestidos.

    Não poucos usam destas passagens bíblicas para defender a ideia de que, se for para cumprir alguma lei humana, estão livres de pecado, mesmo que cometam algo gravemente imoral ou contrário às Leis de Deus e à Religião. Será? As passagens citadas são claras no sentido de que os cristãos devem obediência à toda autoridade humana, mas valem para nós, hoje, passados dois milênios desde essa admoestação, vivendo em uma realidade bastante diversa da daquele povo naquele lugar e naquele tempo? Para entender bem o assunto, importa recordar com São Tomás de Aquino que toda Lei é “uma determinação da razão em vista do bem comum, promulgada por quem tem o encargo da comunidade” (ST I-II 90, 4 ad 1)[1]. 

    Daí a lei positiva humana ser aquela sancionada pela autoridade, tendo em vista aplicar, concretamente, a Lei de Deus às circunstâncias em que vivem os homens. Via de regra, deve ser obedecida (cf. Mt 16,24; Lc 2,51; Mt 17,24-27; Mt 26,47-55), pois devido ao pecado original, que afeta a todos os seres humanos, é preciso ter normas seguras aptas ao cerceamento da maldade no mundo. Sem tais leis, os bons perderiam — por covardia própria ou por sedução dos maus — o ânimo na prática do bem ou seriam arrastados, por suas más inclinações, ao erro (cf. Rm 13,1-3).

    Isto posto, surge uma importante pergunta: devemos, enquanto católicos, seguir, indiscriminadamente, todas e quaisquer leis que provenham das autoridades civis, ou podemos nos opor a alguma(s)? A resposta será formulada em quatro breves tópicos:

        1. Somos, em consciência, obrigados a seguir todas as leis justas. Estas, pelo fato de, em sua natureza, serem justas, ajudam-nos a melhor professar a Lei de Deus, da qual são ecos fiéis (cf. Rm 13,1-5; Mt 22,21; 1Pd 2,13s; Tt 3,1; Pr 8,15). Quem as desobedece, há de arcar com as consequências no plano natural e sobrenatural.

    
    2. As leis que preceituam o impossível não obrigam. Entenda-se aqui como algo impossível aquilo que supera a capacidade física ou psíquica de alguém. Não devemos, contudo, confundir o impossível com o difícil. Pode, por exemplo, ser difícil para alguns a obediência a determinada autoridade, mas isso não isenta a pessoa de ser obediente. Deus dá a graça necessária para que cada um resista à tentação de desobedecer (cf. 1Cor 10,13). O impossível, algo como, por exemplo, o Estado querer obrigar uma pessoa que ganha um salário mínimo para sustentar a si e à família ter de pagar, além de todos os impostos embutidos no que usa, mais uma alta porcentagem de tributos extras. Em consciência, tal cidadão não está obrigado a esse pagamento, pois lhe seria impossível arcar com mais essa despesa sem deixar de suprir as necessidades realmente essenciais de sua família.


        3. As leis injustas não obrigam. Uma lei é injusta quando quem a fez (o legislador) ultrapassa os limites de sua competência, colocando-se no lugar de Deus. É injusto, do ponto de vista moral, por exemplo, o Estado intervir em matérias religiosas que fogem à sua alçada, como quando tenta impedir que os fiéis tenham liberdade de prestar culto a Deus ou não lhes permite viver – em seu ambiente familiar, de trabalho ou de lazer – de acordo com os princípios de sua reta fé e moral.

        4. As leis desonestas não obrigam a ninguém. Uma lei que obrigue a algo imoral (assassinar uma criança inocente e indefesa no ventre materno por meio do aborto, por exemplo) não tem poder moral de obrigar alguém a cumpri-la. Se todas as leis devem ser subordinadas à Lei Natural Moral, as que fogem dessa subordinação perdem a sua força.

    Portanto, as leis humanas devem ser sempre seguidas, desde que estejam em conformidade com a Lei de Deus ou, ao menos, não a contrariem. Não se pode, pois, forçar um ser humano livre a fazer algo contra a Lei do Criador gravada em sua consciência. O fiel que é colocado no difícil dilema de ter de obedecer à Lei Divina ou à lei humana, pode resistir a cumprir esta última, pois “mais vale obedecer a Deus do que aos homens” (At 5,29).

    Vemos assim que as Sagradas Escrituras devem ser compreendidas sob a condução e a luz da santa Igreja, que é a coluna e o sustentáculo da Verdade (1Tm 3,15) para todo verdadeiro cristão, e que nenhuma de suas passagens pode ser usada isoladamente para justificar quaisquer ideias humanas, mas o conjunto dos Livros Sagrados — que não podem se contradizer uns aos outros —, precisam ser compreendidos no seu contexto, com o devido discernimento e coerência, segundo o Magistério autêntico. O que expusemos aqui está em plena concordância com o atual Catecismo da Igreja Católica, em seus nºs 2242-2243, e também com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, números 393-395 (sobre Leis humanas e autoridades) e 396-398 (da Força moral das autoridades), e podem ser melhor estudadas em obras como o livro de Vanderlei de Lima[2], "Obedecer antes a Deus que aos homens: a objeção de consciência como um direito humano fundamental" (Cultor de Livros, São Paulo).


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[1] Apud D. Estêvão Bettencourt, OSB. Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2014, p. 417.

[2] Eremita de Charles de Foucauld na Diocese de Limeira (SP).

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