Tradução de João Marcos – Associação São Próspero
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Pontos que precisam de clarificação
Vamos aos pontos que demandam esclarecimentos. No parágrafo 252, o Papa cita um famoso documento do Concílio Vaticano II, a constituição
Lumen Gentium, quando diz que “professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia”.
1. Os islâmicos “conosco adoram o Deus único e misericordioso” (parágrafo 252)
É preciso cautela neste ponto. É verdade que os islâmicos adoram o Deus único e misericordioso, no entanto, esta frase sugere que as duas concepções de Deus são iguais. No Cristianismo Deus é a Trindade, a pluralidade unida no amor: Ele é um pouco mais que clemência e misericórdia. Nós temos concepções bem diferentes de Deus: os islâmicos pensam Deus como inacessível, enquanto a visão cristã da Trindade enfatiza que Deus é Amor que se comunica: Pai e Filho e Espírito Santo, ou Amante - Amado - Amor, segundo Sto. Agostinho.
Além do mais, o que significa a misericórdia do Deus islâmico? Ele tem misericórdia de quem ele quer, mas não daqueles que pecam contra ele. “Para que Allah pudesse agraciar com sua misericórdia quem Lhe aprouvesse”: estas expressões estão, quase que literalmente, no Antigo Testamento, mas nunca concluem dizendo que “Deus é amor” , como disse S. João.
A misericórdia do Deus islâmico é aquela do homem rico que dá esmola ao pobre. Já o Deus cristão é Aquele que se rebaixa a si mesmo ao nível do pobre para elevá-lo; Ele não exibe a sua riqueza para ser respeitado (ou temido) pelos pobres, mas Ele dá a si mesmo para que os pobres vivam.
2. “Os escritos sagrados do Islã conservam parte dos ensinamentos cristãos” (parágrafo 252)
Esta é uma verdade ambígua. É verdade que os islâmicos conservam palavras ou fatos dos evangelhos canônicos, como a história da Anunciação, que é praticamente transcrita nos capítulos 03 (A Família de Inran) e 19 (Maria).
Mas o Corão se inspira mais frequentemente nas histórias piedosas dos evangelhos apócrifos, e assim não conseguem extrair deles seu sentido teológico, não por malícia, mas porque estes evangelhos não contêm a visão geral da mensagem cristã.
3. A figura de Cristo no Corão e nos Evangelhos (parágrafo 252)
O documento diz que no Corão, “Jesus Cristo e Maria são objeto de profunda veneração”. Na verdade, Jesus não é venerado na tradição islâmica. É Maria quem é venerada, especialmente pelas mulheres islâmicas.
A ausência de veneração por Cristo é provavelmente explicada pelo fato que, no Corão, Jesus é um profeta famoso por seus milagres em favor dos pobres e doentes, mas Ele não tem o mesmo status que Maomé. Apenas os místicos têm alguma devoção por Ele, bem como ao que eles chamam de “Espírito de Deus”.
O fato é que tudo que é dito sobre Jesus no Corão é o exato oposto dos ensinamentos cristãos. Ele não é o Filho de Deus, mas um profeta. Ponto. Ele não é nem mesmo o último dos profetas, porque o “último dos profetas” é Maomé . A revelação cristã é vista apenas como um passo na direção da revelação definitiva trazida por Maomé, ou seja, o Islã.
4. O Islã se opõe a todos os dogmas fundamentais do Cristianismo
A figura de Cristo como Segunda Pessoa da Trindade é condenada. No Corão está escrito sobre os cristãos:
“Ó adeptos do Livro, não exagereis em vossa religião e não digais de Deus senão a verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, foi tão-somente um mensageiro de Deus e Seu Verbo, com o qual Ele agraciou Maria por intermédio do Seu Espírito. Crede, pois, em Deus e em Seus mensageiros e não digais: Trindade! Abstende-vos disso, que será melhor para vós; sabei que Deus é Uno. Glorificado seja! Longe está a hipótese de ter tido um filho. A Ele pertence tudo quanto há nos Céus e na Terra, e Deus é mais do que suficiente Guardião.”
Assim, Deus salvou Jesus dos pecados dos judeus, mas Cristo não salvou o mundo! Em resumo,
o Corão e todos os islâmicos negam o núcleo da fé cristã: a Trindade, a Encarnação e a Redenção. É preciso dizer que
eles estão em seu direito, mas você não pode dizer que “os escritos sagrados do Islã conservam parte dos ensinamentos cristãos”. Você pode simplesmente falar do “Jesus do Corão”, que não tem nenhuma semelhança com o Jesus dos Evangelhos .
O Corão menciona Jesus porque ele pretende completar a revelação de Cristo para exaltar Maomé. Além do mais, o que Jesus e Maria fazem no Corão não é nada além de rezar e jejuar de acordo com o Corão. Maria certamente é a mais bela figura dentre todas do Corão: ela é a Virgem, que homem algum tocou. Mas ela não pode ser a Theotokos (Mãe de Deus), e sim apenas uma "boa islâmica".
5. Ética no Islã e no Cristianismo (n. 252)
A última frase desse parágrafo da Evangelii Gaudium diz sobre os islâmicos: “Reconhecem também a necessidade de Lhe responder com um compromisso ético e com a misericórdia para com os mais pobres”. Isto é verdade. A compaixão com o pobre é um requisito do Islã. Mas existem, em minha opinião, duas diferenças entre a ética islâmica e a ética cristã.
A primeira é que a ética islâmica não é sempre universal. Frequentemente ela é uma questão de solidariedade com a comunidade islâmica, enquanto, de acordo com a tradição cristã, a solidariedade é universal. Por exemplo: quando um desastre natural atinge uma região do mundo, os países cristãos enviam ajuda independente da religião do país atingido, enquanto países islâmicos ricos (como a Arábia Saudita) não fazem isso.
A segunda é que a ética islâmica é legalista. Aqueles que não jejuam no mês do Ramadan são considerados criminosos e acabam presos (em vários países). Se você jejua, do amanhecer ao anoitecer, você é perfeito, mesmo que você coma do pôr-do-sol até o nascer do dia seguinte, e coma mais e melhor do que o normal: “Os melhores alimentos, em imensa quantidade”, como me diziam alguns amigos egípcios muçulmanos. O jejum do Ramadan perde todo o sentido se ele se torna o período em que os islâmicos comem mais, e comem as melhores coisas. No dia seguinte, dado que ninguém dormiu porque passaram a noite toda comendo, ninguém trabalha. Entretanto, do ponto de vista formal, todos eles jejuaram por várias horas. É uma ética legalista: se você fizer X, você está correto. É uma ética exterior.
Já o jejum cristão pretende nos aproximar do Sacrifício de Cristo, em solidariedade com os pobres, e não permite comermos em outro período para “compensar” o jejum.
Para o Islã, enquanto os fiéis observarem a lei islâmica, tudo está em ordem. O fiel nunca procura ir além da lei. A justiça é requerida pela lei, mas nunca é superada. É por isso que não existe no Corão a obrigação de perdoar, enquanto no Evangelho Jesus nos diz para perdoar um número infinito de vezes. No Corão a misericórdia nunca chega a ser amor.
O mesmo se aplica à poligamia: você pode ter até 4 esposas. Se eu quero ter uma quinta esposa, tudo que eu preciso é repudiar uma das outras esposas, talvez a mais velha, e me casar com a mais nova. E como eu me mantive com 4 esposas durante todo o tempo, tudo isso é perfeitamente legal.
O Corão se opõe ao Cristianismo em relação ao homossexualismo. Todas as religiões consideram o homossexualismo pecado, mas para islâmicos é também um crime, punido com a morte. No Cristianismo isso é pecado, não crime. O motivo é óbvio: o Islã é um sistema religioso, cultural, social e político; uma visão integral da realidade. Isso é afirmado várias vezes no Corão. O Evangelho, por sua vez, claramente distingue as dimensões espirituais e éticas da vida sociocultural e política.
O mesmo acontece com a pureza, como Cristo ensina aos fariseus: “Não é aquilo que entra pela boca que mancha o homem, mas aquilo que sai dele. Eis o que mancha o homem”.
6. “...os fundamentalismos de ambos os lados” (n. 250 e 252)
Finalmente, existem dois pontos que eu gostaria de criticar. O primeiro é onde o Papa ajuntou todos os fundamentalismos. No parágrafo 250 ele diz: “Uma atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes das religiões não-cristãs, apesar dos vários obstáculos e dificuldades, de modo particular os fundamentalismos de ambos os lados”.
O outro ponto é a conclusão da seção sobre as relações com o Islã: “Frente a episódios de fundamentalismo violento que nos preocupam, o afeto pelos verdadeiros crentes do Islã deve levar-nos a evitar odiosas generalizações, porque o verdadeiro Islã e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a toda a violência” (n. 253).
Pessoalmente eu não colocaria os dois fundamentalismos no mesmo nível: fundamentalistas cristãos não carregam armas; o fundamentalismo islâmico é criticado primeiramente pelos próprios muçulmanos, porque esse fundamentalismo armado tenta reviver o modelo maometano. Maomé lutou mais de 60 guerras, e se ele é o modelo perfeito (como diz o Corão 33:21), não surpreende que alguns islâmicos usem de violência para imitar o fundador do Islã.
7. Violência no Corão e a vida de Maomé (n. 253)
Finalmente, o Papa menciona a violência no Islã. No parágrafo 253 ele escreve: “O verdadeiro Islã e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a toda a violência”.
É uma bela frase, que expressa uma atitude extremamente benevolente do Papa com o Islã. Entretanto, em minha humilde opinião, ela expressa mais um desejo do que uma realdade. Pode ser verdade que a maioria dos islâmicos se oponham à violência, mas dizer que “o verdadeiro Islã se opõe a qualquer violência” não parece verdade: há violência no Corão. Portanto, a frase do Papa precisa de muitas explicações.
[Nota do editor: objetivamente falando, não é verdade que a maioria dos islâmicos se opõem à violência; diversas pesquisas e censos internacionais demonstram este fato concreto, e até os próprios islâmicos o reconhecem, como se pode ver
neste vídeo de Razeel Haza, jornalista paquistanesa radicada no Canadá. Este, na realidade, é um dos maiores obstáculos para a adoção de medidas eficientes contra o terrorismo e a extrema violência praticada em nome do Islã: a recusa dos grandes líderes mundiais – como se vê, até mesmo do Papa – em reconhecer um fato simples e evidente]
É o bastante ler os capítulos 02 e 09 do Corão.
(O que o Papa diz sobre uma 'interpretação adequada' do Islã é verdadeiro. Alguns teólogos escolheram esse caminho, mas não são muitos o bastante para contrariar o poder da maioria. Essa minoria de teólogos está tentando reinterpretar textos corânicos que falam de violência, mostrando que eles se referem ao contexto da Arábia daquela época e à visão político-religiosa de Maomé)[1]
Se o Islã pretende continuar com a visão dos tempos de Maomé, então sempre haverá violência. Mas se o islã – e existem alguns místicos que fizeram isso – pretende alcançar uma espiritualidade mais profunda, a violência não é aceitável.
O Islã está numa encruzilhada: ou é uma religião para a política e a organização política da sociedade, ou uma religião para inspirar a viver e amar mais plenamente.
Aqueles que criticam o Islã pela sua violência não fazem uma generalização injusta, como provam os conflitos sangrentos do mundo Islâmico.
Aqui no Oriente nós compreendemos muito bem que o terrorismo islâmico é religioso, com citações, orações e fatwas de imãs que encorajam a violência. O fato é que não existe uma autoridade central islâmica para conter essa manipulação. Isto significa que cada imã é considerado um mufti, isto é, uma autoridade nacional que pode julgar inspirado pelo Corão ou ordenar execuções.
Conclusão – Uma 'interpretação adequada' do Corão
O ponto realmente importante é a “interpretação adequada”. No mundo islâmico, o debate mais caloroso – e mais proibido – é precisamente sobre a interpretação do livro sagrado. Islâmicos acreditam que o Corão foi revelado a Maomé completo, do jeito que conhecemos. Existe o conceito de inspiração do texto sagrado, que deixa margem à interpretação do elemento humano presente na Palavra de Deus.
Vejamos um exemplo. Nos tempos de Maomé, das tribos que viviam no deserto, a punição a um ladrão era a amputação das suas mãos. Qual o propósito dessa prática? Impedir que o ladrão roubasse novamente. Então devemos perguntar: como podemos preservar esse propósito hoje, impedindo o ladrão de roubar? Podemos adotar outros métodos ao invés da amputação das mãos?
Todas as religiões de hoje têm esse problema: como reinterpretar os textos sagrados, que têm valor eterno, mas foram escritos há séculos ou até milênios?
Quando encontro amigos islâmicos, eu sempre explico que hoje devemos nos perguntar qual o “propósito” (maqased) das indicações do Corão. Os juristas e teólogos islâmicos dizem que você deve procurar pelos “propósitos da lei de Deus” (maqasid al-shari’a). Esta expressão corresponde ao que nós, cristãos, chamamos de “espírito do texto”, comparado à “letra”. Devemos buscar o propósito do texto sagrado do Islã.
Vários teólogos islâmicos falam sobre a importância de descobrir “o propósito” dos textos corânicos para ajustá-los ao mundo moderno. E isto, me parece, é muito parecido com o que o Santo Padre quis dizer ao escrever sobre a “interpretação adequada” do Corão.
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1. Nota do Editor: parece evidente que um aspecto essencial envolvido neste último tópico foi deixado em aberto pelo autor. Refiro-me ao questionamento que certamente se fará, da parte dos islâmicos, quanto à autoridade do Papa, líder da Igreja Católica, em apontar a 'interpretação adequada' do Corão. Ora, realisticamente falando, mesmo que alguns autores islâmicos concordem com o Santo Padre, quais as chances de os grupos que adotam interpretações mais radicais (que lamentavelmente, como já demonstramos, são maioria), venham a mudar de opinião mediante uma exortação do Pontífice dos cristãos? Mal comparando, isto seria o mesmo que o Magistério da Igreja resolver reavaliar algumas das suas interpretações doutrinais das Sagradas Escrituras, definidas dogmaticamente, baseado na opinião de algum imã islâmico.
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• O texto de Samir Khalil Samir foi publicado originalmente pela agência internacional Asia News, e encontra-se disponível em:
http://www.asianews.it/news-en/Pope-Francis-and-his-invitation-to-dialogue-with-Islam-29858.html
Acesso 17/8/016. www.ofielcatolico.com.br